Quando me levanto pela manhã e ligo o computador há várias, em certas ocasiões, dezenas de ofertas de leilões de antiguidades, joias ou de “obras de arte”, como costumam anunciar, parte delas anunciada como do espólio de alguém famoso. Neles há uma quantidade imensa de objetos de pouco interesse para colecionadores de pinturas, desenhos e esculturas de artistas consagrados, mas interessante para quem gosta de uma xicara, um vaso chinês, paliteiros de prata ou uma cigarreira, que pertenceram a médico, advogado, general, ou de algum intelectual conhecido de todos.
Os textos de cada lote de pinturas estão disponíveis com frases sedutoras que fazem o leitor jurar que as peças são de alta qualidade, tendo em vista que, em geral, o “de cujus” viveu e se profissionalizou na melhor fase da arte brasileira. Espera-se que o espólio seja um resumo dos anos 1930/1940/1950 da nossa arte. Mas isso não acontece. As famílias dos herdeiros não se interessam mais por aquilo que os pais ou avôs foram apaixonados e colecionaram durante uma vida. Filhos e netos colocam tudo à venda e dividem o dinheiro apurado. Se algum deles está interessado em alguma peça em particular, recomenda-se que a compre no próprio leilão. Como a quantia paga por ele será dividida entre todos, o que ele realmente despenderá será uma parte, com a vantagem de levar a peça legalizada em relação aos demais herdeiros.
O que mais surpreende e é incompreensível aos olhos de qualquer colecionador mais experiente é a má qualidade dos trabalhos à venda, bem como a ausência daquilo que chamei acima de a melhor fase da arte brasileira: o modernismo. Os mortos tiveram oportunidades de comprar de artistas consagrados de pintores como Portinari, Di Cavalcanti, Pancetti, Guignard, Tomie, Gomide, Vicente do Rego Monteiro e tantos outros. Na avassaladora maioria destes leilões, não há um único quadro dos modernistas. O que vemos é uma enxurrada de pinturas do mais puro academicismo, de pintores pouco valorizados artisticamente na ocasião da compra e que hoje estão mais que esquecidos, são desconhecidos pelo público em geral e seus trabalhos são acadêmicos demais, cansativos demais e não oferecem qualquer resistência ao olhar diário. É incompreensível como o mesmo “de cujus” e seus familiares ignoraram aqueles artistas e não desenvolveram a sensibilidade e o olhar, se realmente estavam interessados em formar uma admirável coleção em pintura.
Pode-se imaginar que o valor das obras cobrado pelos modernistas naquelas décadas fosse tão alto que a maioria da classe alta brasileira não poderia comprar. A suposição não é verdadeira. Nos anos 1940 um quadro do excelente acadêmico Oswaldo Teixeira era vendido pelo dobro do preço de um Portinari e um Guignard na década de 1950, em Belo Horizonte, era vendido por valores baixíssimos ou oferecido como escambo na conta da pensão ou do bar. O velho mestre literalmente saia com um quadro debaixo do braço e o oferecia como se estivesse com o pires na mão “compre, é muito bonito”. Os modernistas ficaram “caros” em meados de 1950 até final dos anos 1960, quando produziam menos, eram consagrados e morreram logo em seguida, como Portinari e Guignard em 1962. Mas alguns deles foram mais longevos e todos viveram das vendas de suas peças.
Dito isso e com a certeza de que os modernistas produziram muito, mesmo vendendo pouco, fica a pergunta: onde estão os milhares dessas peças, cujos contemporâneos do morto compreenderam e sentiram a importância desses pintores e escultores e as compraram, pelo preço que fosse? Respondo: estão em várias casas das famílias que sempre souberam a importância deles. As peças foram e são passadas para as novas gerações, sem que qualquer de seus integrantes tenha interesse em vendê-las e sentem ciúmes delas até para comodato. Elas não vão a leilão de espólio algum. Ocasionalmente, por certo, uma ou outra é apregoada, em especial nesta época de pandemia, na qual algumas famílias precisaram recorrer à venda de algum patrimônio devido ao aumento das despesas e diminuição das receitas.
Seria ótimo se pudéssemos expor as centenas de peças que jamais saíram das paredes das casas de certas famílias, agora que comemoramos o centenário da Semana de Arte de 1922. Mas, para essas obras-primas saírem de onde estão e se tornar parte do acervo de alguma exposição ou instituição como doação ou comodato, serão necessárias as construções de museus governamentais confiáveis nas capitais dos estados nas quais eles não existem e cujas doações por particulares seriam identificadas com gratidão e não correriam riscos de ser levadas como “empréstimos” para decorar a casa de algum político inescrupuloso.