O Brasil em geral e os mineiros em particular já santificaram Alberto da Veiga Guignard. Falta o Papa Bento XVI canonizá-lo. Por isso, deveríamos ter aproveitado a última visita do Pontífice ao Brasil, ter-lhe exposto o curriculum do pintor e seus milagres pictóricos, todos pendurados em museus e pinacotecas particulares. Com a biografia que Guignard tem, não há risco de alguém se apresentar como advogado do diabo. Mesmo que aparecesse um, teria dificuldades de encontrar no artista pecados maiores que a paixão pela pintura e pelos seus alunos, a humildade para acreditar que há sempre algo para aprender e ensinar, a dedicação ao desenho e o amor pelo Brasil e por Minas Gerais. Belas virtudes do ponto de vista humano, imaginem-se do divino.
Foi pensando naquela possibilidade de canonização que, noite dessas, escondi-me atrás de uma de suas tênues palmeiras e peguei uma carona no primeiro anjo que passou. Juntos percorremos os delicados caminhos que ele pintou nas telas de Vila Rica e saímos à sua procura. Encontramos o velho pintor cercado de gente consagrada que ainda o considera o seu professor celestial: Amílcar de Castro, Wilde Lacerda, Heitor Coutinho, Iberê Camargo, Álvaro Apocalypse e todas as suas ex-alunas que já se foram deste mundo terreno. Todas permanecem ao seu lado com a mesma juventude como ele as conheceu. Na cena todos pintam ou desenham, enquanto Celina Ferreira rascunha o último poema e Amalita dedilha uns acordes de Debussy. Os balões da festa de São João estavam soltos pelo chão, aguardando que ele os colocasse nos pontos de fuga de uma composição divina própria do local.
Freqüentadores do Parque Municipal de Belo Horizonte garantem que ele, como um potencial canonizado, de vez em quando dá plantão naquele local e, ocasionalmente, pode ser visto, preocupado com os bambuzais que estão cada dia mais cheios e crescidos em comparação com os de sua época. Quem o conhece, sabe que ele pintou várias cenas daquele local depois de 1944 com esse conteúdo, e se o leitor tem um desses trabalhos, fique atento. Qualquer noite dessas, ele aproveita o silêncio da madrugada e surgirá na sua sala, estudará sua herança pictórica pendurada na parede e, com os finos pincéis de pêlo de marta, adicionará novos bambus, atualizando o quadro. Todo colecionador que tem quadros à óleo, aquarela ou desenho dele com esse conteúdo deve se certificar cada manhã se eles não foram modificados. Os artistas estão sempre nos surpreendendo e com Guignard todo cuidado é pouco.
Para não se decepcionar com a Belo Horizonte de 2010, o mestre, quando aparece, não anda pelas ruas do Centro da cidade. Houve tantos fatos políticos ocorridos desde a sua morte, causadores de tantas dificuldades e modificações, que o resultado está estampado no alto e visível nível de angústia dos pedestres, nossos irmãos e seus admiradores, todos meios zaranzas. O mestre parece compreender isso e quer manter na sua memória a época na qual a Capital mineira e o Brasil eram mais humanos. Além disso, ele se aborreceria com as monótonas cores dos automóveis nas ruas, limitados do preto ao cinza-prata.
Se o mestre e Ouro Preto se encontrassem novamente depois de tantos anos sem se verem, ficariam extasiados como um casal que jamais perde a paixão um pelo outro. Caso o leitor pretenda aguardar para testemunhar esse imortal encontro idílico, a hora ideal é à tarde, quando o sol começa a mostrar seu brilho e despe as encostas de Vila Rica, expondo e refletindo a luz que tanto o fascinou na centenária cidade. Mas se o encontro amoroso for pela manhã, a fria neblina cobrirá parte da cidade, igrejas, casas e serranias e garantirá a visão de suas imaginárias paisagens. Em qualquer circunstância, o espectador desse encontro do poeta com a sua poesia sentirá a revoada de anjos barrocos que, saindo dos seus desenhos e altares das velhas igrejas, saudariam o mestre e o colecionador apaixonado, que procura se localizar em Vila Rica exatamente onde o mestre estava quando pintou a paisagem de qualquer de suas obras conhecidas.