Se o leitor anda perplexo com as diversas apresentações da arte contemporânea, surgidas e apresentadas em galerias, museus e leilões, precisa conhecer uma jovem senhora francesa chamada Orlan. Ela nos paralisa pelo que faz e vende. A referida senhora foi submetida a mais de sete cirurgias plásticas no corpo. Em todas elas, as cenas contendo suas imagens se preparando para entrar na faca, uma mise-en-scène impensável pelo mais competente marqueteiro, seguidas de outras durante o procedimento médico, acrescidas daquelas contendo o corpo traumatizado pela violência da cirurgia e toda a seqüência do pós-operatório até sua recuperação, tudo isso é um show gravado e transmitido via satélite. Cada cena dele é vendida para galerias de Los Angeles, New York, Tóquio e Milão. A esperta madame ganha um dinheirão pelo literal sacrifício artístico. E as galerias também porque estas imagens são revendidas para os colecionadores que se interessam pela sua obra. Não tenho notícias do que é feito do tecido adiposo retirado do suporte da obra de arte que ela diz ser e fazer, mas asseguro ao leitor que um certo belga chamado Win Delvoye criou uma máquina de fazer cocô e cada embalagem dele é vendida por mil dólares. Acredite, há gente comprando e pagando por ela. Estes são apenas dois exemplos de manifestações “artísticas” nas quais a estética, a categoria das coisas belas, desapareceu há tempos. No seu lugar foram colocados excrementos e semêm, toalhas e gravetos, pedaços de cadáveres e cordas, redes de pesca e urinóis e mais tudo aquilo que o leitor imaginar. Ser artista hoje é uma atividade para os ousados expositores do comum e do nada e quanto maior o absurdo deles, mais valorizado porque tudo é arte e nada mais é arte.

O leitor deve estar se perguntando de onde vem tanta diversidade e absurdos e se há, de fato, arte nesta nova demonstração, chamada contemporânea. A resposta dessa pergunta e de outras que o leitor, ainda sem coragem para dizer que não gostou do que viu na última exposição visitada, são encontradas no livro “Desconstruir Duchamp” (Vieira & Lent Casa Editorial, Rio) de Affonso Romano de Sant´Anna, um intelectual, poeta e escritor de Belo Horizonte (MG), há anos radicado no Rio. De lá, ele viaja pelo Brasil e o exterior expondo sua cultura e erudição em conferências sobre literatura brasileira da qual é doutor com tese sobre nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade. Desde 2002 ele está também ocupando o lugar do garoto do conto de Andersen, esclarecendo, através de crônicas publicadas na imprensa brasileira, agora reunidas neste novo volume, porque o rei, nas artes plásticas, está nu. Em todas elas ele explica, com argumentos de difícil contestação, porque a maioria do que temos visto hoje é mesmo um horror.

Como se sabe, o conto de Andersen relata a história de um espertalhão que vendia tecidos acompanhados dos esclarecimentos que somente pessoas inteligentes eram capazes de vê-lo. Como ninguém queria passar por burro, todos acharam lindo o seu produto. O inteligente rei comprou o tecido e chamou seu inteligente alfaiate; este lhe fez uma roupa que seu inteligente povo achou linda, menos um garoto, que gritou “o rei está nu!”.

Que fique claro: Sant´Anna não é contra a nova forma de apresentação da arte e nem pretende ser iconoclasta ou guerrear com os acólitos dela. Ele expõe com clareza sua opinião e perplexidade, baseadas em sua vasta cultura e argumentos contundentes, a incompreensão da valorização de uma manifestação artística que expõe o nada, deixando o público em geral tão atônito quanto qualquer intelectual de bom senso. Homem viajado, declara ter visto instalações bonitas. Sorte dele. Quanto a este articulista, lembro-me apenas de uma recente exposição de Efraim Almeida, em Belo Horizonte, na Léo Bahia Galeria de Arte, na qual o artista expôs oito pássaros esculpidos em madeira, todos representando a seqüência do alçar de seu vôo. É um poema o conjunto deles. Registro ainda o vídeo de Waleska Soares, gravado no Salão de Bailes do Museu de Arte da Pampulha que é um primor de beleza. (*)

Affonso Romano gostaria de ver demonstrado pelos admiradores da arte contemporânea que há nela, no mínimo, o que toda arte deve conter: resistência. A resistência precisa estar no seu conteúdo e forma que nos instigam e emocionam, sentimentos que desejamos repetir e nela é encontrado respaldo estético resistente a cada nova olhada e que se sucede indefinidamente. Em 1961 Duchamp em carta ao dadaísta Hans Richter escreveu: “joguei o urinol na cada deles como um desafio e agora eles o admiram como um objeto por sua beleza estética”. Em 1961 e sempre, Duchamp sabia o que é resistência em arte e o dizia, com todas as letras, que o urinol não a tinha e era o nada exposto. Não viu quem não quis.

Há poucos meses Millôr Fernandes escreveu um texto claramente irônico. Não foi entendido por parte dos leitores que protestaram pela sua afirmativa. A partir daí, esclareceu Millôr, sempre que ironizar alguma coisa vou escrever em baixo: “isto é uma ironia”. A dificuldade com Duchamp foi a mesma que a de Millôr, com a diferença que aquele não conseguiu convencer seus admiradores que suas obras eram ironias e nem ele esclareceu isso em cada uma delas. O resultado desta incompreensão é que tudo que ele pensou ironizar e, talvez, derrubar, não só ficou de pé, mas se consolidou e se espalhou como uma epidemia grave, daí a existência de artistas como Orlan. Para Duchamp “é o contemplador que faz o quadro” (Arte Contemporânea, de Anne Cauquelin, Coleção Cultura Geral, p.86). Pois se é assim, vale lembrar ao velho artista – se vivo fosse - que as pinturas, instalações, objetos e demais obras da arte contemporânea têm tido pouquíssimos contempladores e a sua maioria está traumatizada com o que vê.

Mas Duchamp não deve ser julgado apenas pelas suas ironias e nem considerado um artista menor. Ele foi um pintor talentoso e, por isso, discordo de Sant´Anna quando ele declara “que ele era apenas um pintor médio”. Exagero do poeta. E no acervo do Museu da Filadélfia está a maioria de suas belas criações, sobretudo na pintura e tudo mais criado antes de ele se declarar “anti-artista”, comprovando seu talento. Sua pintura mais importante é um óleo “Nu descendo as escadas n. 2” (1912), no qual há uma seqüência de figuras cubistas como se estas estivessem em movimento, fenômeno físico que era uma preocupação constante dele. Mas este óleo é também uma apropriação de imagens do incipiente cinema de então, o mesmo cinema que “ele não acreditava como meio de expressão”. Pessoalmente acho que hoje, se vivo fosse e com a sabedoria que apenas o tempo nos garante, ficaria atônito com seus seguidores. Esclareceria que nunca pensou em fazer escola; queria apenas ironizar a arte, alguns críticos e dadaístas de plantão e, até hoje, é levado a sério. E é provável que, num exercício hipotético, psíquico e histórico baseado na sua própria biografia, estivesse hoje executando pinturas acadêmicas, talvez épicas, apenas para contestar o que fizeram de suas idéias.

Duchamp rompeu com a estética na pintura e se declarou “anti-artista” depois de uma passagem pela Alemanha em 1912. Cria então “La Roue de Bicyclette” e em 1917 foi mais além e cria os ready-mades, apresentando um mictório, desses de banheiro masculino público, nomeando-o “La Fontaine” (a fonte), assinou-o sob o pseudônimo de R. Mutt. Argumentava que apenas o lugar onde é exposto, faz o objeto ser arte. Exagero do ciclista. Mas ele não parou aí, colocou um bigode na Mona Lisa de Leonardo da Vinci, inscreveu em baixo do quadro algumas letras que, lidas em francês, é um trocadilho dizendo “ela tem fogo no rabo”. Muito engraçado, mas há arte nisto? Aliás trocadilho e jogo de xadrez eram suas outras especialidades. Da primeira, deixou quase 300, todos inteligentes e irônicos como ele. Da segunda, ficou mais de 20 anos participando de campeonatos e ganhando a vida profissionalmente com eles. Não morreu rico, mas deixou seus colecionadores milionários. É considerado por Anne Cauquelin como um dos “arrancadores” da arte contemporânea. Os outros dois são Andy Warhol (1928-1987) e Leo Castelli, um marchand americano morto em 1999 que determinava o que era bom ou ruim em arte para o público americano. Uma espécie de Duveen da arte contemporânea.

Em “Ensaios de Pintura e de Psicanálise” inclui o texto “Os Mensageiros dos Deuses” no qual expus que a crítica de arte hoje não quer correr o risco de repetir a gafe de não ter reconhecido o talento dos impressionistas. Baseado neste argumento aprovam tudo, repetindo o que se quer evitar. Affonso Romano Sant´Anna não se declara crítico de arte. É mais que isso. É o brilhante intelectual que no seu novo livro não esclarece o que é arte, tarefa impossível, mas o que não é. Por isso, não é sem motivo que suas inicias sejam ars.

(*) Este texto é de 2003 e, claro, depois desse ano surgiram outras instalações tão belas quanto as citadas.

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