Ouro Preto continua a abrigar o pintor Carlos Bracher e família. Quando ele e Fanny foram para lá em 1971, havia o propósito de ficar apenas alguns meses, mas estes se transformaram em trinta e nove anos de intimidade diária com a velha cidade, cuja convivência engrossou a camada de talento com o qual Bracher foi presenteado pelo DNA da família. Seu pai foi professor de química em Juiz de Fora, conhecido como Doutor Brachão, um apelido de alunos carinhosos com o desaparecido mestre, que pode ser visto no vídeo produzido e dirigido por Olívio Tavares de Araújo, no qual, além de Brachão, cenas de criação em arte e pintura ficaram imortalizadas. Química não era a única especialidade do pai. Ele era um luterano liberal e um humanista a toda prova, acostumado a receber parentes, amigos e agregados, que podiam ficar em sua casa uma noite, um mês ou anos, como ocorreu com um amigo da família, que se esqueceu de voltar ao seu antigo endereço. O moço era tratado como a visita querida que acabara de chegar. E não era somente hospitalidade a envolver esse ambiente familiar. Quem freqüentou a casa garante que a cultura estava estacionada nela como se fosse uma espessa nuvem, na qual poderiam estar flutuando alguns pintores, compositores, escritores ou um coral constituído de toda hierarquia celestial, engrandecendo a Nona Sinfonia de Beethoven, tamanha era a paixão de todos pelos clássicos. Perguntem ao poeta e escritor Affonso Romano de Sant´Anna, morador de Juiz de Fora durante os primeiros vinte anos de sua vida, o que aquela casa representou intelectualmente para uma geração de juiz-foranos.
Do tio e também pintor Bracher Junior, Carlos herdou a capacidade de desenhar com precisão qualquer paisagem, natureza-morta ou retrato de alguém querido, condição para ser imortalizado pelas suas mãos. Dos pais, Carlos herdou a paciência de professor e a paixão pela música. Modesto, não se considera o artista da família. Acha que é a sua irmã Nívea e que ela deveria ser mais bem tratada por este país. O artista não se cansa de elogiar a irmã que ainda mora em Juiz de Fora na mesma casa com a tal nuvem intelectual.
Se o leitor não conhece Carlos Bracher pessoalmente e quer ter uma idéia da fisionomia do artista, comece folheando uma edição de “Dom Quixote” ilustrada por Gustavo Doré. Pare no primeiro desenho do velho personagem de Cervantes e verá uma imagem semelhante a do pintor: alto, magro, cabelos em desalinho, barba, bigode e um jeito de ser Dom Quixote que o leitor confirma se o vir na rua. Não imagine encontrá-lo sobre um cavalo magro na velha cidade. E nem seria possível por causa das ruas calçadas e o tanto que elas são íngremes, encantando as investidas de turistas e moradores sobre as suas paisagens, igrejas, casas e cercanias, todas imortalizadas por Carlos Bracher em suportes de variadas dimensões e por outros colegas de paleta.
Entrando na casa do artista, surpreenda-se pela ausência de quadros dele e de outros pintores pelas paredes. Entre as poucas peças, há um belo óleo de Marcier, seu desaparecido amigo de sempre e cuja lembrança de convivência de anos ainda o emociona. Num ambiente colhedor, a conversa mineira corre solta pelo velho casarão e ela pode girar em torno das filhas – uma atriz e outra jornalista –, ou de sua próxima exposição ou ainda de seus últimos trabalhos sobre Brasília, todos em grandes dimensões.
Nosso importante pintor começou expondo seu talento em 1957. Dez anos depois, recebia o Prêmio de Viagem ao Exterior no Salão Nacional de Belas Artes. Competiu e venceu muita gente consagrada. Tinha então 27 anos. Feito igual a esse, nessa idade e na sua geração, só é comparável ao de Luiz Vilela, que, aos 24 anos, também venceu escritores consagrados em prêmio nacional de literatura. Bracher recebeu o prêmio, casou-se com Fanny e foram para a Europa. O casal ficou seis meses em Portugal e Itália. O restante da bolsa, um ano e meio, fixou-se em Paris. Nada mais romântico que ser jovem, estar apaixonado, casar e viver tudo isso na Cidade-Luz. E nela ainda havia muito mais que amar para estar no melhor dos mundos: uma profusão de museus com os seus ídolos admirados que precisavam ser estudados.
O artista confessa que, jovem e muito antes da sua primeira exposição, sentindo-se apaixonado pela pintura de Van Gogh, pensou em pintar um conjunto de telas que homenageasse o cliente do Dr. Gachet. São decisões que perseveram no nosso interior, aguardando um tempo interno para serem executadas. Aquele, como se sabe, não é medido pelo calendário e nem pelo relógio, mas é um tempo que somente a vivência, a experiência e o reconhecimento internos sabem identificar. Na ocasião de sua permanência em Paris, não se sentiu preparado e nem autorizado para visitar o túmulo de Vicent e os preferidos locais de pintura do admirado pintor. Preferiu esperar. Mas sempre a pensar que, um dia, lhe faria uma homenagem. Muitos anos depois, quando aquele tempo vivido já lhe permitia cumprir a promessa, voltou à França, visitou os lugares nos quais Van Gogh trabalhou e foi sepultado. Bracher aí voltou ao Brasil e, cheio de estudos para quadros, se sentiu pronto para a série de cem óleos que honram a história de nossa pintura. Eles foram expostos pela primeira vez em 1992 no Museu de Arte da Pampulha, em Belo Horizonte, na gestão de Geraldo Magalhães. Era impossível não se deslumbrar com a técnica apurada, as grossas camadas barrocas de cores que, misturadas, cheiravam a Auver-sur-Oise com Ouro Preto. As cidades são como as pessoas: cada uma tem o seu cheiro.
Se a visita é intima do artista, é convidada para subir ao santuário no qual Bracher trabalha. É pequeno em comparação com a grandeza de tudo que sai de dentro dele. Da sua sacada há uma vista da cidade dos Inconfidentes que encanta o olhar de quem a conhece apenas de frente. Nela, vê-se o belo fundo de centenas de casas. Um vizinho facilitou a leitura da cena, deixando um álamo crescer demasiadamente, dividindo a paisagem em duas, como se fossem dois quadros de pintores que tivessem vivido naquela sacada em época diferentes.
Habitualmente os ateliês de artistas não têm a limpeza que alguma dona-de-casa elogiaria. Com aquele de Bracher não é diferente. A poeira gosta de viajar e, quando pode, visita os objetos espalhados pelas prateleiras e livros, dando a sua pequena contribuição ao último quadro, tão apaixonada ficou pelo lugar. Em alguns lugares o pintor garante que elas permanecem o mesmo tempo daquela visita que esqueceu o seu endereço. Mas a maioria dessa poeira tão sensível não segue com os quadros. Fica lá, vigiando as cadeiras, sofás, objetos, esculturas e uma velha paleta de madeira que, de tanto uso, tem o literal peso do chumbo das tintas. O artista nos convida a segurá-la. Por que não trocá-la por outra mais leve, nova? O resultado das cores não seria o mesmo, é a resposta. O que nos faz imaginar que, com o passar dos anos e do peso, seus quadros terão ainda mais belas cores.
Nesse santuário há um grande refletor, um sofá confortável e um cavalete que tem o verniz cultural da cidade. O modelo deve se assentar e não se preocupar com a imobilidade. Uma câmara bem posicionada registra áudio e vídeo do que ocorre no ambiente. Mas esses detalhes o pintor não esclarece de imediato. O artista ajeita também o lugar onde ficará um dos convidados da tarde para assistir a uma espécie de concerto que se iniciará em seguida. O cavalete é gentilmente empurrado para trás onde a luz é mais suave. Agora é preciso encontrar o CD contendo a música mais indicada para o modelo, como se ela fosse a partitura que acompanhará o maestro. Mahler é ótimo.
Muito apropriado. Afinal, maler é uma palavra alemã a significar pintor na língua de Camões. Mas, olhando o modelo, opta pela Nona Sinfonia, de Beethoven, aquela que o coral de anjos cantou em Juiz de Fora para ele, a família e os convidados. Os sons dos primeiros acordes do primeiro movimento estão numa altura que informa aos de casa e a todos os vizinhos que o mestre está trabalhando. A porta do atelier está trancada. Ninguém entra. Ninguém quer sair. De repente, ele faz uns movimentos com os braços e inspira continuamente como se tragasse a alma das cores e o talento fosse algo capturável no ar da sala e ele, o artista, o único autorizado a aprisioná-los. O fusain na mão do pintor se transforma na lança do Cavalheiro de Triste Figura, que, montado sobre as notas musicais do concerto reverberado pelas montanhas barrocas, vê e sente o cavalete como um moinho a prender o suporte. Este é acariciado com pinceis e muita mistura de tinta, jamais atacado como imaginários inimigos. O fusain pode ser visto também como a batuta de um atento maestro que vê o modelo como uma orquestra aguardando o sinal. O pintor corre o carvão pela tela e o primeiro e definitivo traço é o início do espetáculo. Literalmente em dois minutos o retratado está esboçado no quadro. É mais que um esboço. É um retrato pronto. A vontade dos espectadores é pedir que o artista interrompa a sua execução e fixe o fusain. Mas, perplexos, todos se calam. A partir daí Bracher trabalhará o que vê, transforma e cria em tão curto tempo. As cores virão depois dos primeiros cinco longos minutos. O “longo” é por causa da quantidade de detalhes que são executados no quadro nesse período. São necessários cinco minutos para aperfeiçoar o que está perfeito. O retratado, inconscientemente, transmite e o pintor capta a sua mais importante característica: os olhos ou o sorriso.
Seqüestrado pelo olhar do pintor, um desses dois detalhes definirá a marca pessoal do modelo, a largura dos pincéis e a força das pinceladas. O amigo de infância do pintor, Affonso Romano, pousou em 1979: rosto com traços bem marcados e o olhar do poeta que anda sempre à procura do subjacente nas coisas da vida. Para chegar a esse resultado há detalhes cirúrgicos a construir o rosto. Primeiro o pincel mais fino. Ele fixa as linhas dos olhos, da boca, das sobrancelhas, pequena parte dos cabelos e as linhas do queixo. Pronto. Deita aquele pincel fora. Ele não será mais usado. Troca-o por outros cada vez mais largos e nesse caminho continua a fixar as cores definitivas no suporte. O modelo aparece e desaparece em quatro ou cinco pinceladas. Parece bruxaria. Mas o leitor não se engane. Bracher em ação é o ser encantado e literalmente possuído pelos deuses. A música é elemento fundamental na composição porque se há pinturas silenciosas, há aquelas que gritam. Os retratos de Bracher nunca são silenciosos. Todos falam do autor e do retratado. Se o espectador tiver olhar de lince e ouvido de músico, ouvirá em cada quadro e nas cores que o compõem o concerto que o acompanhou na confecção da obra. A confirmação dessa assertiva está sempre registrada no anverso do quadro, sobretudo nos retratos.
No 25º minuto de sua execução, o retrato tem a forma definitiva em óleo que imortalizará pintor e modelo. Mas há ainda vários detalhes críticos para ser trabalhado pelo artista. Novas cores e uma produção de claro-escuro colocam-no ainda mais parecido fisicamente com o modelo. Os traços da personalidade vão surgindo subjacentemente como se fossem um diagnóstico do teste de Rorschach e visíveis para quem conhece o retratado. Nada faz parar o pintor, que não permite ser interrompido ou que o modelo se levante para ver como está na tela aos 25 minutos. Ele verá toda a seqüência daquela construção depois, quando for presenteado com o vídeo que continua registrando tudo. Nesse momento, o artista é o Dom Quixote que, dentro do moinho, devolverá em beleza o que mutuamente receberam em carinho e afeto.
Aos 45 minutos, prazo de um primeiro tempo de qualquer jogo de futebol, o artista assina o quadro. Tal como Pancetti fazia, nosso pintor somente mostrará a obra pronta, quando o suporte receber a moldura. As luzes do refletor são viradas, o quadro montado é colocado sobre o móvel e o modelo pode vê-lo. É pura emoção. Daquelas de dar dores nas entranhas. No final fica a certeza de que é necessário o exercício diário durante cinqüenta anos de pintura de alta qualidade para executar um retrato em 45 minutos.