“I love Paris in the Springtime”, declarou Cole Porter . Moi aussi, dizemos todos quando estamos na parte antiga e preservada, mais amável que La Défènse, sua porção moderna e horror dos seus amantes. Mas é sobretudo a Paris de Manet que fascina a todos, em especial, aquela em torno de 1860 quando ele fazia a revolução da pintura no mundo e o Brasil insistia em traficar escravos. O resultado dessa diferença de cultura é tudo que percebemos no nosso cotidiano e desse permanente choque que a França produz, mesmo naqueles habituados ao seu encanto. Manet já havia estado no Brasil em 1848, aos 16 anos de idade, quando desembarcou no Rio de Janeiro como marinheiro num navio francês. Voltou encantado com o carnaval e horrorizado com o país colonial de então.
Edouard Manet, cujo aniversário de cento e setenta e oito anos de nascimento se comemorou no dia 23 de janeiro de 2010, era um artista oriundo de uma família ética e moralmente rígida. O pai foi juiz de direito e chefe de gabinete de ministro da Justiça e queria que o filho fosse advogado. Ele imaginava que a pintura não faria do filho um homem realizado e, muito menos, famoso. Errou nas duas pontas. Manet foi um brilhante artista fora de seu tempo; daí a dificuldade de ser entendido pelos seus contemporâneos. É ele o responsável pela ruptura da pintura acadêmica que termina com Delacroix. É Manet quem, pela primeira vez na história, sai do atelier e pinta o exterior, despreocupado com o conteúdo épico de cada quadro, como faziam seus colegas de paleta anteriores. Ele se preocupou com a luz fugaz do sol brilhando nas paisagens e registra apenas esse momento na tela. É essa atitude a grande virada de mesa na pintura no século XIX. Ninguém havia pensado ou ousado isso antes. Ele vai mais além: acha que pintar, em qualquer composição, um fundo grandioso, com paisagens e belas perspectivas, ou ali contar uma história, não deveria mais ser objeto da pintura. Pinta, então, O Tocador de Pífano, cujo modelo é seu próprio filho, nunca reconhecido legalmente. É o primeiro quadro na história da pintura em que não há cena figurativa no fundo. Pinta apenas cores de luz e sombra, simplificando o que antes era rebuscado e de academicismo épico. Reduz sua pintura a uma essência de pureza que influencia várias gerações daí em diante.
Pouco compreendido, desvalorizado pela crítica implacável, polêmico e criativo como convém a todo transgressor, ele já havia causado frisson na Paris de l863, quando pintou Le Déjeuner sur L’Herbe. O júri do salão considerou tal quadro indigno de ser exposto ao público francês. Napoleão III o viu no Salão dos Recusados e o considerou “indecente”. A imperatriz Eugênia o achava “obsceno”.
Todo gênio, quando agredido pelas críticas, tenta trazer seus críticos ao seu mundo, na esperança de tirá-los daquilo que é um anacronismo aos olhos dele. Quando não consegue convencê-los, é ainda mais genial. Manet se irritou com tanta mediocridade e decidiu criar a sua maior obra-prima, aquela que faria seus contemporâneos o odiarem, mas que o faria imortal quando morresse.
Victorine Meurent, a Olympia de Manet, já havia posado quatro vezes para o mestre. A primeira, quando se conheceram; a segunda, como toureira, tema influenciado pela espanhola imperatriz Eugênia, casada com Napoleão III; uma outra vez, como cantora de rua e uma quarta, como parte do elenco do Le Déjeuner. Seu relacionamento com Manet começou em 1862, quando ele a viu na rua. Ela tinha dezoito anos de idade, e ele, trinta. Tantas vezes retratada, é muito possível que Victorine fosse seu ideal de mulher e, melhor para a arte e sua sublimação, daquelas desejadas e nunca tocadas. É possível também que Manet tenha deslocado para ela todo o desejo que tinha por Berthe Morisot, sua cunhada e grande amor, casada com o irmão dele. Tímido, já envolvido com Suzanne Leenholf, uma holandesa, professora de piano, mãe de seu filho e, segundo retratos e depoimentos de amigos, uma mulher sem graça. Manet convida Victorine para posar nua no quadro, hoje conhecido como Olympia, nome dado por Zacharie Astruc, um crítico francês, e, de longe, a obra definitiva na carreira do pintor. Quando em 1983, registrando cem anos de seu falecimento, houve a grande retrospectiva em sua homenagem na cidade de Nova York, esse foi o único quadro que sofreu restrição governamental à sua saída. É patrimônio nacional francês e, por isso, não sai de lá.
O quadro, quando exposto, foi execrado pelos seus contemporâneos. Assustado, Manet pede socorro a Baudelaire, que se encontrava em Bruxelas. Mas este já conhecia o tratamento que as autoridades e o público franceses davam àqueles que ousavam transgredir. Seu livro de poemas Flores do Mal fora amaldiçoado. Pela afronta de sua publicação, Baudelaire pagou a multa de cinqüenta francos. Ninguém o ajudou nem percebeu a inovação com qualidade do conteúdo e da forma, exceto um jovem jornalista chamado Émile Zola, então com vinte e seis anos. Zola era amigo de um outro revolucionário pictórico, Paul Cézanne, que, por certo, lhe chamou a atenção sobre a importância de Manet. Zola escreveu uma bela matéria defendendo o pintor, que desconhecia pessoalmente, mostrando ao público a beleza de Olympia. Manet ficou envaidecido. Finalmente havia alguém que o compreendia e à sua pintura. Ficaram amigos e, anos depois, se desentenderam por causa das vicissitudes da vida que, da mesma forma que nos une, nos separa. Nesse hiato, Manet pintou o retrato do amigo no qual, no fundo, reproduz Olympia com toda a sua beleza, mas levemente modificada, e num gesto de gratidão, pinta-a olhando para Zola.
Olympia é Victorine deitada sobre grandes e fofas almofadas brancas numa cama, vestida apenas com uma orquídea no cabelo, uma estreita fita preta no pescoço e uma pulseira no braço direito; do outro, a mão se estende sobre o ventre. Ao seu lado há uma mulher negra, que nos lembra uma de nossas baianas de carnaval, trazendo-lhe um buquê de flores. Manet abre o mistério do quadro com a entrega das flores (ou já seria o momento após a recusa?) às quais Olympia não dá a menor atenção, a nos intrigar quanto ao seu presenteador. Ignorando aquelas e seu admirador, Olympia nos mira com olhar desafiador, misterioso e com a segurança das mulheres predestinadas à imortalidade desde a concepção. Tem a certeza de ser a deusa poderosa, presente e doadora de prazer, sem desejar ou precisar da reciprocidade. É uma esfinge esperando para ser decifrada nessa nudez coberta de mistério. Olympia é a Eva e a serpente numa só pessoa, seduzindo o voyeur com a revelação da atividade da alma feminina, sem nunca ceder. É uma sinfonia pictórica de violentos contrastes de iluminação na qual imperam o branco e o preto. A cor branca, como se sabe, corresponde ao silêncio na música, e Manet propõe pausas que ajudam a compor uma sinfonia enigmática cuja eterna juventude e beleza nos enredam e nos interrogam, implorando a resposta desse mistério pictórico, que começa e termina na modelo chamada Victorine ou Victorine Louse; de sobrenome Meurent ou Merend ou ainda Maurand. Sem saber de onde veio, para onde foi e qual era o seu nome verdadeiro, a quem procurar? - pergunta o espectador solícito e perplexo. Uma Eva assim moderna em l865 era demais até mesmo para os franceses.
Olympia, tão abominada, execrada, vilipendiada e, ocasionalmente, vista como prostituta, nunca foi vendida. Manet a manteve para sempre por pura falta de comprador. O quadro sumiu e reapareceu, glorioso, somente depois da II Guerra Mundial quando o governo francês organizou o Museu Jeu de Paume, cujo acervo hoje se encontra no Museu d’Orsay, uma belíssima ex-estação ferroviária.
“Uma rosa é uma rosa é uma rosa”, escreveu Gertrude Stein e, com isso, ela dizia que a rosa será sempre assim. Com a obra-prima é diferente. A pintura é uma escrita, mesmo aquelas sem representação objetiva na tela, e é lida como algo que sai do quadro, passa pela consciência do espectador, deixando nele um acréscimo afetivo e intelectual, o transformando. É por isso que saímos do d’Orsay, onde repousa Olympia com todo seu esplendor, com o sentimento de sermos uma pessoa melhor.
Olympia hoje nos pergunta por que tanta valorização se sempre foi o que é. A resposta a esta pergunta está em nós: porque mudamos. E é por isso que, acreditem, pouquíssimos de nós compraríamos um quadro deles, se vivêssemos na Paris dos impressionistas.