Há um presente nas livrarias do país para aqueles que têm o hábito de abrir e ler aleatoriamente um livro de poesias. Acaba de ser editada em São Paulo, “Ianelli” uma obra-prima pela qualidade da impressão e pelo seu design gráfico. Com centenas de poemas em cores pintados por Arcângelo Ianelli, o leitor poderá “lê-los” com a mesma paixão com que degusta aqueles do itabirano Carlos Drummond de Andrade ou do português Fernando Pessoa. O livro é uma ode ao talento do poeta das cores e uma benção para os colecionadores. Nele estão contidos textos de Juan Acha sobre o cromatismo nas telas do mestre paulista; o de José Roberto Teixeira Leite sobre a importância de seus trabalhos e trajetória; o de Eduardo da Rocha Virmond sobre suas esculturas; o da poeta e neta Mariana Ianelli com uma pequena biografia do avô; e o de Paulo Mendes de Almeida, velho admirador e amigo de sempre, o mesmo publicado no primeiro livro dedicado ao pintor. As reproduções e até as fotos de corpos nus utilizados como suportes pictóricos são testemunhas de uma carreira iniciada nos anos 1940 em São Paulo e que seguiu até 2002, quando o artista comemorou 80 anos de idade. Nesse ano, Ianelli foi contemplado com uma retrospectiva na Pinacoteca de São Paulo, ratificando a consagração de artista definitivo. Desde 3 de agosto de 2004 e até 19 de setembro e como presente dos seus 82 anos, ocorridos em 18 de julho passado, seus admiradores poderão contemplar no Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado-Faap em São Paulo a beleza de 82 das suas criações na exposição com o instigante título “Os Caminhos da Figuração”, curadoria dos filhos do artista, Kátia e Rubens Ianelli.
Para se entender a dimensão do que se quer dizer com artista definitivo, o primeiro caminho do leitor é se orientar pela citação de Richard Paul Lohse, que abriu o livro de Paulo Mendes de Almeida, editado em 1978 e ratificado no novo: “a simplicidade não nasce espontaneamente, mas é alcançada através do processo de desenvolvimento extenso e complicado”. Sem que a frase tenha sido construída a partir da percepção de seus trabalhos e se referisse exclusivamente a Ianelli, ela é a melhor estrada para compreender sua trajetória e a de todos que alcançaram a simplicidade no que fazem. Esta é sempre lembrada quando trilhas semelhantes foram percorridas por artistas tão importantes quanto ele: Kandinski, Mondrian, Mabe, Volpi, Tomie, Wakabayashi e tantos outros que seguiram o caminho “extenso e complicado”. O leitor não deve exigir deste articulista ou desses artistas explicações para a frase de Lohse. Há vivências inexplicáveis em parágrafos ou páginas inteiras porque, para compreendê-las, é necessário uma paixão a emergir de dentro da alma e alguns anos de experiências no segmento escolhido. Quem as viveu sabe do que aqui se fala.
Para perceber a simplicidade do mestre, recomenda-se começar folheando seu novo livro com a atenção flutuante de que nos falava Freud. Ela pede que nos coloquemos desarmados afetiva e intelectualmente diante do que vemos ou ouvimos, como se procurássemos o desconhecido. Quando, no decorrer da busca, o encontramos, percebemos o que era procurado e compreendemos o seu valor. Por isso, deve-se de início folheá-lo displicentemente, como se o leitor sobrevoasse uma área na qual tudo é de interesse. Ao término, volte ao início do livro e recomece a tarefa. Agora, faça-o vagarosamente, como se examinasse detalhes daquelas áreas. Comece pelo índice do livro. Repare que ele é uma espécie de retrospectiva de sua carreira ou da sua biografia contendo as fases da vida a percorrer. Com as etapas resumidas nele por palavras, compreender-se-á melhor a condensação da frase de Lohse e entender-se-á por que é impossível começar uma atividade artística por onde os talentosos terminam. Siga valorizando as reproduções figurativas de desenhos com técnica apuradíssima das primeiras páginas e saboreie os textos em português, com excelente versão em inglês. Nesse momento perceberá que a estética, tão desprestigiada no mundo de certos pintores de hoje, é presença imortal em seus trabalhos e neste volume.
O leitor, agora encontrando detalhes, verá que Ianelli é primoroso no trato com os elementos de suas composições, elementos tão gentis que não chamam a atenção do espectador em qualquer circunstância. Esta é exigência paraque todas as composições tenham o equilíbrio perceptível num relance. E por elemento devem-se considerar barcos, árvores, casas, fábricas inteiras, grandes campos ou cadeiras. Estas estão ali paraque o espectador aceite o convite do artista e dialogue com ele sobre suas criações. Na p.59 há uma reprodução (Interior) com duas delas, um armário e uma porta, além de um comovente silêncio. Na p. 83 há um quadro com uma visão parcial de uma igreja e um colorido altar. As duas obras, cujas execuções estão distantes três anos uma da outra, trazem uma intimidade fácil de ser compartilhada entre o pintor e o espectador. É impossível não se sentir parte integrante delas e, confortáveis na oferecida poltrona, nos encantamos com o seu talento de dizer com o pincel o que o lápis do poeta escancara. Com os elementos da composição, Ianelli tratará a superfície plana da tela como se nela existisse o infinito, surgindo a encantadora perspectiva ilimitada pelo olhar e limitada pelo suporte. As cadeiras, de resto todo o figurativo, desaparecerão a partir dos anos 1960. Isso não significa menos hospitalidade ou menos generosidade do artista para com o seu público. Pelo contrário. As cadeiras agora estão dentro do seu atelier (foto p.81), esperançosas que o espectador aceite seus novos convites para conhecer o seu caminho da simplicidade. Vários deles foram aceitos pelas crianças de dezenas de escolas que, através de visitas guiadas pelo pintor ou alguém da família, comparecem em grupos na sua casa-atelier no Paraíso, em São Paulo.
O leitor interessado na sua obra não deve imaginar que o acervo de uma vida se resume apenas em misturas de cores e em perspectivas contendo elementos de composições arrasadoras.
O mestre construiu uma biografia cujo início, descrito pela neta e comprovado pelo conteúdo do novo livro, foi de um guerreiro da vida pela garra e determinação de lutar ao longo dos caminhos “extensos e complicados” até chegar onde está hoje: il numero uno da pintura brasileira. E é na maturidade da vida biológica, intelectual e artística que o filho de Dona Thereza produziu uma fase desejada por todo pintor: pintar apenas cores ou suas vibrações, como ele as chama. Ilusão do artista. São elas que vibram com ele. Íntimo delas é sempre recebido como velho amigo, desses que nem precisam pedir licença para misturá-las, porque sabe colocá-las de tal forma que as inimigas não se encontrem na festa do olhar. Não é tarefa fácil. Algumas delas se detestam e quando mal colocadas, brigam na retina do espectador. Como sábias senhoras, ficam literalmente encantadas pela maneira como ele é capaz de seduzi-las, modificá-las, diluí-las, produzindo transparência para mostrar suas nuances, sua beleza interior e aquecê-las afetivamente. Ele faz mais que unir as amigas e afastar as inimigas: cria novas amizades entre elas de tal forma que hoje é natural se falar num vermelho ou num azul-ianelli, cores tão mágicas e exclusivas quanto são o amarelo e o azul ultramarino de Vermeer.
Ganhador de dezenas de prêmios, inclusive o de Viagem ao Exterior no Salão Nacional em 1964, da Bienal do México em 1974, e com dezenas de exposições realizadas pelo mundo, Ianelli recomeça agora sua vida de pintor depois de interrupção por problemas de saúde e lamenta não ter feito ainda uma retrospectiva em Minas Gerais. Este não é este o seu único lamento. Durante 18 meses ele procurou apoio financeiro de grandes bancos, empresas privadas e estatais paraque, dentro do programa de incentivo à cultura, se interessassem em editar seu novo livro. Não conseguiu. Ele e a sua família, convencidos do tesouro em mãos, pagaram com seus próprios recursos a edição do belíssimo volume.