Irmão José foi ativista leigo da Congregação do Verbo Divino, instituição religiosa católica, nascida pela determinação e garra de Pe. Arnaldo Jansen. Ela é representada em Minas pela presença marcante do Colégio Arnaldo cuja capacidade educacional impõe-se há mais de 80 anos. Irmão José nasceu em Kirchbichl, pequena aldeia do Tirol austríaco, oriundo de família católica, na qual, dos seis irmãos, três seguiram a carreira eclesiástica. Ali e na Alemanha, ele se preparou para realizar aqui o sonho de ser missionário. Sentia-se um jesuíta que vinha para nosso país na certeza de colaborar na catequização de parte de nossos índios, na esperança de convertê-los ao catolicismo.
Não conseguiu. Primeiro, por falta de índios nas Minas Gerais; segundo porque a Congregação, precisando dele em Belo Horizonte na sua especialidade profissional, não o mandou para o interior do país. Decisão maléfica para o missionário que ele esperava ser; benéfica para os índios e suas crenças e melhor para a nossa cidade. Homem cheio de fé, nunca parou para pensar a religião como algo pertinente à cultura local, descobrindo isso na velhice, com o esclarecimento do filho.
Chegou ao Brasil em 1925 e ficou três anos entre Rio e Juiz de Fora até que a Congregação se decidisse onde melhor aproveitá-lo profissionalmente. Em 1928 estava em Belo Horizonte para dar a sua contribuição ao Colégio Arnaldo que ainda se encontrava em obras. E que contribuição! Irmão José era entalhador e, por isso, perpetuou-se nas peças de madeira entalhada da capela do colégio, a começar pela porta de entrada, estendendo-se para o altar-mor e os laterais, além das molduras entalhadas da via sacra, conjunto que faz dela um marco de nossa Capital.
Orgulhoso de ter pertencido à geração de dois educadores que marcaram milhares de alunos no Colégio: o Padre Matias e o Padre Coqueiro, Irmão José foi um dos seus colaboradores, sendo grato pelo que aprendeu com eles de química e fotografia. Naquela época fotografar era um mistério para poucos iniciados. Os negativos eram em vidro e havia enigmas intransponíveis nas revelações laboratoriais realizadas no próprio colégio. Assim, ter alguém com conhecimento na área e que se dispusesse a transmiti-lo era um privilégio de poucos.
epois de onze anos de trabalho no colégio, saiu da Congregação. Contava então 36 anos de idade, boa cultura geral, e bom nível filosófico e teológico, adquiridos na Europa e aprimorados aqui. Não pensou em voltar para o Tirol de onde havia saído aos 18 anos. Nem podia. Sentia-se constrangido perante os pais que imaginavam o filho a viver uma carreira perpétua. Saindo da Congregação, casou-se e foi à luta. Quando voltou à Áustria, muitos anos depois, seus pais já estavam mortos.
Em 1936 nossa cidade tinha poucos habitantes. Os dados estatísticos da época informam algo entre 150/180 mil pessoas. Para um entalhador, Belo Horizonte era um lugar de poucos clientes potenciais, o que não foi impedimento para ele se fixar aqui. Sentia-se em casa entre as montanhas de Minas, a relembrar-lhe os Alpes de sua terra natal. Naquela ocasião, móveis entalhados eram privilégio de pessoas a viver no mundo do desejo e nossa cidade, jovem ainda, vivia no estado da necessidade. Para garantir sua sobrevivência, procurou as famílias interessadas em móveis de estilo. Nomes como Louis Ensch, René Jacobs, Joseph Hein, Geraldo Parreiras, Hans Schlaher, os irmãos Bizzotto e os Piancastelli marcaram sua existência pelo interesse no trabalho do entalhador e pela generosidade de todos; a lista mais tarde foi acrescida de antiquários e colecionadores como Maurício Meirelles, Marcos Grilli e Geraldo Andrada quando chefe do cerimonial do Palácio da Liberdade no Governo de Magalhães Pinto e de tantos outros.
Não se imagine ter ele contribuído com nossa cidade apenas com móveis entalhados, vários deles exportados para a Europa anos depois. Fez mais que isso: confeccionou os altares das capelas da Santa Casa, do Convento das Carmelitas e o do Bom Pastor, os confessionários laterais da igreja de Lourdes, vários móveis do Palácio da Liberdade e do Tribunal de Justiça e ainda restaurou centenas de outros. Ao colégio, voltou apenas para visitar a capela, relembrando um tempo em que ele me assegurava ter sido feliz. Durante anos contou com Sebastião Sudário Leal, parceiro de desenhos, talento criador tão desconhecido em Minas quanto o Irmão José.
Como todos que viram o desenvolvimento do século 20, sentia-se surpreso ante tanta novidade tecnológica. Encantou-se com o fax e nunca conheceu a internet que, por certo, lhe causaria perplexidade. Achava-se apolítico, mas teve horror da anexação da Áustria por Hitler em 1938. Viveu todo o período da Segunda Grande Guerra com o medo característico dos imigrantes germânicos, que se sentiam vulneráveis aos naturais ódios de então. Para sorte de sua família, nunca foi ofendido pela sua origem ou por falar alemão em público, uma heróica temeridade na ocasião. Durante anos comentávamos sobre a Belo Horizonte de seu tempo e ele me contava fatos históricos da Capital, os quais deveriam ter sido relatados a historiadores belo-horizontinos, de forma a assegurar registros que se perderam com o desaparecimento dele e dos seus contemporâneos.
É possível que o crescimento da cidade, adicionado ao tempo, tenha diminuído a importância de suas obras e, com isso, elas tenham, de forma injusta, se perdido no novo formato da cidade, crescendo mais rápido que podemos acompanhar. Irmão José morreu em 1990 e neste ano, quando ele teria completado 100 anos de vida, deixo registrada, na lembrança de seu exemplo, a homenagem a todos os artistas incógnitos cujas obras vemos pelas cidades sem nos dar conta da dimensão do trabalho e da carga emocional por trás delas.
Relato tudo isso porque, na pia batismal, Irmão José recebeu o nome de Antonio Perktold e era meu pai.