NOVA BIOGRAFIA DE GUIGNARD TRAZ NOVIDADES NUNCA ANTES REVELADAS.
O quadro que ilustra esta matéria encantou tanto Helena da Silva Azevedo, viúva de Santiago Americano Freire, casal com quem Guignard viveu durante sete anos em Belo Horizonte, que ela declarou no verso “este deslumbrante auto retrato (sic) é de autoria de Alberto da Veiga Guignard”. Por certo, o que ela quis dizer com “deslumbrante” é sua representação como uma autobiografia escrita com óleo e pincel de um artista que havia passado por uma infância duplamente difícil por causa das dificuldades do lábio leporino e de suas consequências desastrosas na ânsia de alimentação, assim como uma vida burguesa, cheia de recursos financeiros da mãe que, além de receber alto valor de seguro de vida com o suicídio do marido, herdou prédios bem alugados no Centro do Rio de Janeiro, em plena Rua Lavradio. A renda desses aluguéis forneceu à família recursos para viver com riqueza, classe e elegância, luxo e despreocupação durante anos na Europa. O dinheiro era suficiente para a mãe morar com os dois filhos (sua irmã morreu jovem) e o desocupado barão em hotéis cinco estrelas sem que ela ou aquele precisasse trabalhar para viver, algo que agradava muito o nobre e novo marido. Com a moeda brasileira então valorizada em relação às europeias, eles viajaram pelo continente, mesmo durante e depois da I Grande Guerra. A vida de rico ainda duraria alguns anos, mesmo depois que o artista voltou para o Brasil definitivamente em 1929.
É essa herança burguesa que produziu a ausência de preocupação de justiça social nas telas de Guignard, ao contrário de seus colegas de paleta Portinari, Sigaud ou Di Cavalcanti, Graciano e outros. O máximo que Guignard conseguiu demonstrar de inquietação social foi a fase chamada de “Nacionalismo Lírico” representado pela série de pinturas a conter a família do fuzileiro naval.
Se as dificuldades de baixas estratificações sociais não estavam impregnadas em sua alma de artista, ele conheceu a sua própria, acrescida do desamparado e do desinteresse do grande público depois que chegou a Belo Horizonte para fundar escola que leva seu nome. Aqui, a cidade era pequena demais para se preocupar com desejo que a arte representa. A provinciana cidade de então vivia em estado de necessidade com a população preocupada em ganhar a vida e estava a engatinhar como nova capital. Guignard teve prestígio artístico entre seus vários alunos, certos de que tratavam com professor e artista generoso.
Este autorretrato mostra um homem marcado pelos tempos difíceis dos últimos anos de vida, mais envelhecido que sua idade cronológica, olhar de quem pede mais compreensão e menos abandono, mas ainda cheio de alegria e gratidão pela Ouro Preto que ele amou e imortalizou ao pintá-la ao fundo do quadro como uma ode às cores, à delicadeza dos traços com pincel fino de quem é hábil desenhista e ainda as suas marcas registradas de lindas igrejas barrocas que estão naquela cidade, provando que ele tinha razão em se apaixonar pela velha Vila Rica.
Puro e ingênuo, inábil para a vida de negócios, o artista criou peças lindas e algumas vezes valorizadas por colecionadores amigos. Houve época na qual ele ganhava e gastava de forma desordenada. Mais tarde, quando a falta de dinheiro era grande, fez escambo com suas obras. O resultado em longo prazo de uma vida de tanta angústia produziu um ser humano perplexo, alcoólatra, diabético, carente, dependente de poucos admiradores e algumas famílias amigas do peito. Sua vida poderia ter se estendido por mais dez ou vinte anos se não fosse o acúmulo de diagnósticos.
Desejo por arte em Belo Horizonte estava em apenas algumas pessoas e longe do grande público. Demoramos demais para sair daquela situação e passar a compreender a beleza de seus trabalhos, algo que ele deixou registrado ao declarar que somente o compreenderiam e o valorizaria após cem anos de sua morte. Errou parcialmente por que houve sucesso no final de seus anos de vida e que se estenderão pelos séculos vindouros, mas foram pouquíssimos tempo e saúde para garantir-lhe uma existência menos sofrida, menos alcóolica, menos angustiada, menos doenças além do lábio leporino e prazo de vida maior que seus 66 anos. “Compre ele, é muito bonito” dizia Guignard aos poucos colegas de copo em bares, mostrando suas obras.
Por tudo isso, este autorretrato traz condensado na tela aquilo que se tornou uma biografia do novo livro de Marcelo Bartoloti, “Anjo Mutilado” (Companhia das Letras), título e opinião de Manuel Bandeira sobre o artista e resgatado pelo autor, biografia diluída em 470 páginas de pesquisas exaustivas que incluem detalhes inimagináveis esquadrinhadas em escolas de ensino elementar em Munique, antigas residências da família, informações biográficas sobre o detestado padrasto, registro de imóveis de propriedade do artista em sociedade com o padrasto na França e notícias de permanências em Florença e Paris, e até detalhes minuciosos como na página 97, na qual Bartoloti informa que
“os católicos colocavam seus filhos no Colégio Saint-Vicent... Os não adeptos desse tipo de educação escolhiam o Colégio Jules-Ferry, instituição pública cujo nome era uma homenagem ao antigo ministro da educação francês, um maçom anticlerical que dissolveu a ordem dos jesuítas e instituiu a escola laica na França no final do século anterior”.
Quem senão um pesquisador preocupado com mínimos detalhes registraria informação como essa? Ela é apenas uma entre centenas que deixam o leitor encantado pelo resultado, que deve ser lido e relido como um belo romance.
É lamentável que dona Helena Azevedo tenha falecido na segunda feira de carnaval de 2016 e seu marido muito antes. Por certo, ela relataria fatos memoráveis vividos pelos três no período de sete anos nos quais viveram na mesma casa na Rua Palmira em Belo Horizonte, incluindo o relato da célebre e dispendiosa viagem à Europa em 1961. Por falta de alguém que relatasse esse período e defendesse o casal, sempre acusado injustamente de explorar o artista, esses anos são um vazio na nova biografia.
Há alguns anos publiquei um ensaio “O Sonhador de Ouro Preto” no qual declarei que Alberto da Veiga Guignard era o primeiro verso de uma saga não escrita. Não é mais. Ela foi brilhantemente pesquisada, redigida e publicada por Marcelo Bortoloti e cujo leitor, apaixonado pelo artista, não pode perder.
“Guignard Anjo Mutilado” de Marcelo Bortoloti, 470 p. Companhia das Letras.