Genesco Murta hoje é nome de sala de exposições da Fundação Clóvis Salgado e de rua no bairro Tupi, ambas em Belo Horizonte. Ele é citado em várias ocasiões quando se fala em algum evento naquela Fundação, mas poucos mineiros e, por certo, a maioria dos brasileiros sabe quem foi o bravo pintor. Se procurarmos alguma bibliografia sobre esse artista, caricaturista e emérito desenhista brasileiro, com passagens no início do século XX pela Europa, encontraremos apenas um belo livro editado pelo Instituto Cultural BDMG, com apresentação de seu amigo e jornalista Mauro Santayana, de autoria de Ivone Luiza Vieira e editado por ocasião de sua exposição póstuma, realizada naquele Banco em 2000.
Mas Genesco foi muito mais que nome de rua ou sala. Suas belas pinturas de paisagens de cores criadas por ele como deve ter todo artista consagrado, e sempre atento àquelas complementares e ao corte de ouro nas composições, foram executadas com estilo próprio influenciado pelo impressionismo, sugerindo com poucas pinceladas a figura humana descendo uma escadaria ouropretana e a sombra daquela com cores levemente escurecidas. Por causa do seu talento, criatividade e mais o que se via nas telas, foi premiado pelo governo estadual de Minas Gerais por duas vezes com viagens a Paris e Munique. Seu nome era consagrado em Belo Horizonte nos anos 1920, 1930, 1940 e até 1966, quando morreu aos 82 anos, ainda pintava. Mas hoje ele é pouco lembrado. Suas obras são disputadas por alguns colecionadores quando aparecem com raridade em leilões de arte e o pintor pode ser considerado mais um exemplo de injustiças que o Brasil faz com os seus filhos ilustres.
Genesco Lages Murta nasceu em Minas Novas (MG) (1885-1966) e mudou para Belo Horizonte em 1910, com vinte e cinco anos de idade e muito talento para expor na nova Capital. Seu reconhecimento foi imediato por vários motivos. Primeiro, ele já havia passado uma temporada em Paris, convivendo com os artistas da Escola que leva o nome da cidade, além de já saber tudo sobre pintura e desenho. Antes da Primeira Grande Guerra, em 1912, recebeu do governo estadual um prêmio de pensão para voltar e estudar ainda mais sua arte na Cidade Luz. Santayana relata que lá e então ele aprendeu pouco, por que já se considerava "um desenhista que pintava com as cores", citação que o faz consciente da importância das linhas no desenho e das cores na pintura. Não tinha muito mais para aprender. Naquela sua primeira viagem freqüentou a Académie de la Grande Chaumiére e a Académie Colarossi na qual teve como professores, Charles Guérin (1875-1939), aluno de Gustave Moreau, e Bernard Naudim (1876-1946). Este último foi excelente pintor, sempre preocupado com a justiça social nos temas de suas obras, mas, em 1903, desiste da pintura para se dedicar às gravuras, em especial àquelas em madeira e em metal. Dele, Genesco aprimorou sua habilidade no desenho com estilete gravando no metal, técnica na qual Naudim era um craque. Quando voltou dessa viagem em 1915, montou um ateliê e escola noturna de desenho, escultura e, junto com o fotógrafo Luis de Soto, gravuras.
Durante sua temporada em Paris, Genesco conheceu e se tornou amigo e colega de pensão de Amadeo Modigliani, um jovem artista brilhante e extemporâneo, incompreendido, então desconhecido e desvalorizado. Aqui é preciso fazer um parêntesis a ser confirmado por algum familiar dele ainda vivo, conhecedor de sua biografia no início de sua carreira e, sem constrangimento, ratificar o que me relatou inúmeras vezes o pintor Herculano Campos (1912-1996) em seu ateliê em Belo Horizonte, que freqüentei durante mais de vinte e cinco anos. Genesco e Herculano mantiveram amizade mútua durante décadas. Este último garantiu-me que ele lhe relatou que voltou desta viagem de Paris com nove, repito nove, monumentais e então desvalorizados óleos sobre telas de Modigliani. Eram figuras humanas com pescoços alongados, característica ímpar de sua pintura, além de nus femininos que fariam a felicidade intelectual e financeira de qualquer parente ou colecionador. Mas Genesco foi solteiro por toda a sua vida por motivos pessoais, expostos na apresentação de Santayana no livro editado pelo BDMG, e morava com sua irmã. Os quadros ficavam pendurados nas paredes da sala de visitas da casa dela e eles eram um tormento para ela. Sua irmã se sentia constrangida em dar explicações sobre nus femininos expostos tão descaradamente em uma Belo Horizonte então pudica, provinciana e cheia de preconceitos, sentia-se envergonhada com as visitas que viam aqueles ainda incompreensíveis quadros como arte obscena. Se pouquíssimos interessados conheciam Amadeo Modiglini em Paris naqueles anos, imagine o leitor o quanto ele era desconhecido em Belo Horizonte. Se nos emoldurarmos nos anos 1915 da Capital mineira, era compreensível o constrangimento da irmã. O mundo, a moral, a ética e o catolicismo eram outros, e a cidade era uma adolescente cheia de necessidades e a arte sempre faz parte do desejo, ainda longe de ser alcançado pelos habitantes da nova Capital. Pois em certa temporada em que Genesco Murta foi para Ouro Preto pintar a bela cidade histórica, ocorreu uma tragédia que só o tempo confirmaria sua dimensão. Ela, cansada de explicar às visitas sobre um desconhecido e imoral pintor, amigo parisiense de seu irmão e que todos desconheciam, simplificou sua vida social ateando fogo nas nove telas. Foi a fogueira de arte mais cara do Brasil até este momento. Genesco Murta foi o mineiro que, em Paris, havia compreendido a obra e a importância de Modigliani muito antes de marchands ou colecionadores e deve ter sentido profundamente a morte tão prematura de seu colega de pensão e paleta.
Quem conheceu Genesco pessoalmente garante que ele sempre foi taciturno, de poucas palavras, solitário e não vacilava em engrossar as relações pessoais de quem o incomodava e era claro nos seus relacionamentos, o que é atributo que facilita lidar com qualquer pessoa, mas é incompreensível para quem se sente agredido. Até pouco antes de sua morte por atropelamento no Natal de 1966, andava pela rua da Bahia, em Belo Horizonte, com o mesmo ar taciturno e solitário do início da Capital e quase ninguém o reconhecia como o grande artista, brilhante paisagista e exímio retratista do início da Capital e amigo de Modigliani. Segundo José Calazans Neto, autor de texto sobre seus trabalhos publicado no Dicionário das artes plásticas do Brasil, de Roberto Pontual (1969): a arte o tornou solitário. O próprio sentimento das coisas, as cores cinzas que encheram desde cedo os painéis de sua alma e uma rude incapacidade de aceitar o mundo – tudo isso e mais os venenos do cotidiano compuseram um marginal, às vezes manso como um ingênuo caipira e comumente áspero como um leão frustrado. A descrição de quem era seu amigo e o conheceu de perto, dá, por certo, uma pequena biografia de seu jeito de ver o mundo, as pessoas e o pouco que esperava de ambos. Apesar da aspereza, amava o ser humano; prova disso são as dezenas de brilhantes retratos deixados para a posteridade que transmitem a alma de cada retratado. Como se sabe, o retrato é a arte mais difícil execução.
Mas é possível que depois do episódio causado pela irmã, ele tenha se sentido mais decepcionado com o mundo e se tornado ainda mais distante de todos. Para quem é artista ou colecionador e reconhece uma obra de arte de um colega ao primeiro olhar, se é seu dono, dispor dela por necessidade é um suplício, imagine perder nove maravilhas pela insensatez de alguém que, desconhecendo seus mistérios e fascínios, os incendeia. Qualquer ser humano sensível e apaixonado pela pintura e arte jamais se recuperaria desse episódio. É possível que aqueles nove quadros tenham sido trocas mútuas de presentes. Por isso, é também possível que aqueles presenteados por Genesco ficaram em Paris e alguns deles ainda estejam em seus antiquários, aguardando sensível visitante mineiro que, os reconhecendo de imediato, os traga de volta.
De qualquer forma que se pensa Genesco, ele será sempre um pintor de marinhas de exuberantes verdes e amarelos, de azul-genesco, de paisagens impressionistas ou pontilhistas, como bem notou o artista e crítico Márcio Sampaio, e que era consciente de seu talento ao pintar retratos, paisagens ou marinhas. Não suportava a modernidade abstracionista e não se acanhava de dizê-lo. Amava tudo da Escola de Paris, de seus amigos de Montmartre e Montparnasse, incluindo Picasso, a quem respeitava pelo seu talento no desenho.
Sua trajetória de exposições em Belo Horizonte iniciou em 1917 com uma individual em local ainda não identificado nos seus dados biográficos. Em 1921, seguiu-se outra, no ateliê do fotógrafo e também pintor Osório Belém; em 1925, outra individual no Clube Belo Horizonte, hoje prédio abrigando o Museu Inimá de Paula; em 1940 expôs individualmente em São Paulo e, no ano seguinte, em Belo Horizonte na redação da Folha de Minas, sua última exposição em vida e que contou com sua rara presença. Seis anos após sua morte, nova exposição na Reitoria da UFMG. Depois disso, somente em 2000 o braço cultural do BDMG ressuscitou-o artisticamente fazendo uma retrospectiva com edição de livro com capa dura, texto de Ivone Vieira e uma quantidade de reproduções que não deixam dúvidas do seu talento e do seu brilhantismo.