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Em setembro de 2001 fez cinco anos que faleceu Herculano Campos de Souza (1912-1996), pintor, desenhista, aquarelista, retratista, um artistacompleto. Mineiro de Carangola, veio cedo para BeloHorizonte, onde ficou até morrer. Foin osso privilégio tê-lo na Capital mineira, mas um fato lamentável para sua carreira pessoal.

Deveriat er saído de Minas para ser valorizado no Brasil inteiro, como fizeram Carlos Drummond, Guimarães Rosa, Cheschiatti, Inimá de Paula, Fernando Sabino, Affonso Romano de Sant´Anna e tantos outros. Se tivesse morado no Rio ou em São Paulo, sua grandeza de artista definitivo há muito já teria sido reconhecida. Aqui foi amado pelos amigos e respeitado pelos colegas de paleta e pela classe intelectual, mas, cercado pelas minas e montanhas, seu talento nunca foi totalmente aproveitado.

Nossa cidade, dos anos 30 até a década de 70, tinha uma pequena e crescente elite endinheirada, mas pouco atenta à cultura. Ela estava preocupada com a criação de novos bancos e, para se assegurar de sua invulnerabilidade, cercava-se fechando consigo nossos valores, impedindo a visão de quem estava de fora. De dentro, muito raro usamos nossas montanhas como torres para ver o mundo mais longe e melhor. Guignard foi uma exceção buscada no Rio pela iniciativa humanística e cultural de JK. O resultado foi um eterno crescimento cultural do Rio, mais tarde transferido para São Paulo, que aprendeu, há muito, o valor do dinheiro aplicado à cultura. A mineiridade é sábia conselheira para a política e os políticos, mas pode ser péssima para aquelas atividades que exigem o marketing do megafone.

Temos ainda o fato sociológico de nossa herança de garimpeiros. Estes, quando descobrem algum veio rico, jogam barro em cima paraque ninguém o descubra e explore. O garimpeiro descobridor o guarda para si e volta lá para buscar apenas o que dele precisa naquele dia para viver. Continua sua vida com a segurança de saber que ali, num lugar onde somente ele sabe, há uma riqueza garantidora de uma existência tranqüila. Retirada a ração do dia, joga novo barro em cima. Modificados no tempo, há muitos desses personagens andando pelas nossas ruas.

É possível que Herculano tenha sido uma dessas jazidas de ouro em que, inconscientes, jogamos barro em cima paraque o Brasil não percebesse. É possível também que ele próprio tenha colaborado com isso. Era pessoalmente tímido, modesto e simples no trato pessoal, mas com a convicção interna de ser um artistaque se imortalizava nos seus trabalhos. Por isso, ouvia apenas sua voz interior e acreditava que a qualidade de sua obra, mesmo que demorasse, falaria por ele. Nunca foi marqueteiro e não teve ninguém para exercer essa função. Sem o marketingpessoal, é impossível se projetar no Brasil de hoje; no de ontem, tornou-se prisioneiro da mineiridade, esperando que o destino batesse à sua porta. Quando este o fez, Herculano não o reconheceu.

A primeira vez foi nos anos 40, quando convidado a se mudar para um bairro de Los Angeles chamado Hollywood, onde pintaria cenários para cinema e teatro. Preocupado com o que achava ser uma traição e um abandono à sua família, da qual era arrimo, não foi. Anos depois, penitenciou-se, concordando que teria sido melhor para todos e que o benefício para aquela teria sido maior se ele tivesse aceitado o convite.

A segunda ocorreu quando JK foi eleito presidente da República. Herculano fez parte do seleto grupo dos sete amigos íntimos com que JK comemorou sua vitória. Nessa reunião, o presidente perguntou o que cada um queria. Como um gênio da lâmpada, ele, a partir daquele momento, tinha poderes para realizar o desejo de todos. Herculano foi o único que não pediu nada, constrangendo o grupo.

A terceira vez, o mesmo destino tocou-lhe à porta nos anos 60. John Kennedy havia publicado seu livro A Estratégia para a Paz e, na capa da tradução brasileira, Herculano retratou Kennedy num belíssimo bico-de-pena. A edição brasileira foi enviada a Washington e, de lá, veio novo convite para se mudar. Novamente ele recusou, alegando outros motivos. Nos anos 70, pintou o retrato de Chico Buarque de Holanda que o convidou a se mudar para o Rio, "onde vou apresentá-lo para todo mundo", garantiu o compositor. Também não foi. A partir daí, o destino não o procurou mais para grandes aventuras.

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Sabe-se que Vermeer, pintor de apenas trinta e nove obras-primas conhecidas e expostas em museus pelo mundo, ficou desconhecido durante duzentos anos. Ismael Nery, morto aos trinta e três anos e tendo vendido um único quadro para o embaixador Graça Aranha, foi sempre malvisto pelos modernistas, que o julgavam uma invenção de Murilo Mendes. Somente em l965 começou a ser valorizado e é hoje uma unanimidade nacional. Van Gogh, sempre ele, pintou tudo o que conhecemos em dez anos de vida e também não foi reconhecido. El Greco saiu da obscuridade somente no início do século XX. Manet lutou como um leão paraser reconhecido e valorizado na Paris de meados de século XIX. Guignard imaginava que seria valorizado apenas cem anos após sua morte. A lista de artistas incompreendidos pelos seus contemporâneos é longa e lamentável.

O Brasil não é a Europa nem BeloHorizonte é Paris, mas é mais que provável queHerculano, um dia, faça parte desse triste elenco de artistas de valorização póstuma. O tempo cuidará de confirmar isso. A simplicidade desconcertante e enganosa de sua pintura era seu traço permanente. Conhecia a técnica de desenho como pouquíssimos artistas brasileiros. O desenho, como se sabe, é a majestade desnecessária no mundo das instalações, mas imperativa para quem quer pintar e serartista, duas atividades que não andam de mãos dadas. Alberto da Veiga Guignard impressionou-se tanto ao vê-lo desenhar, que o nomeou professor de modelo vivo na Escola que leva seu nome. Quem conhece desenho sabe a dimensão da importância de ser um mestre dessa matéria, e quanto talento a atividade requer.

Herculano foi um artista primoroso, pela qualidade da textura de sua pintura, pela preocupação com o equilíbrio da composição, pela mestria do escorço e pelo conjunto que era o resultado da soma desses elementos na tela. Era um mestre das cores e lidava com elas com a intimidade de quem vive junto. Pintou as paisagens de Lagoa Santa mantendo os mistérios sobrenaturais com sua marca de verde ou azul e com o sentimento de estar defronte daquele que mais amava para pintar: o mar. Com um sorriso nos olhos, pintou marinhas e pintou Lagoa Santa como se ela tivesse as águas de Cabo Frio. No fundo do quadro, na outra margem da lagoa, colocava as casas mineiras, e no alto dele, distribuía no céu as nuvens que eram características de sua pintura. Nessas paisagens, há um nítido e inconsciente desejo de trazer o mar paraMinas ou levá-la até ele. Há ainda as paisagens nas quais estava contida sua outra paixão: as nossas montanhas, sempre representadas por cores exuberantes e misteriosas. Conhecedor da história da pintura, sabia que todo quadro imortal é portador de um mistério indecifrável, que é revivido sempre que é visto e que, por várias gerações, todos tentam solucionar. Esta percepção e o sentimento que ela provoca vão mover o espectador, despertando nele um incômodo, renascido a cada nova mirada. É assim a bagagem do quase desconhecido Herculano, exposta nas coleções brasileiras.

Mas era nos retratos que ele acendia toda a sua luz interior. Para as encomendas de instituições, fazia o que era pedido: retratos objetivos de presidentes, secretários, comandantes militares, desembargadores e juízes. Para as dos amigos, brilhava nos traços subjetivos, mostrando tudo o que havia assimilado em mais de setenta anos de arte. Nas duas formas, havia algo de comum que pode ser comprovado nos seus mais de três mil retratos: a solenidade do humano, de gente que sente, sofre, ama e vive. São seres humanos com emoção, sentimento, solidão e angústia, com olhos capazes de dizer um mundo de coisas ao coração de cada espectador.

Rápido no pincel, colocava a tela virgem no cavalete, mirava o modelo nasua frente, media algumas coisas no seu pensamento e começava a pintar, sem esboço, sem estudo. A José Ronaldo Procópio, um amigo querido mas resistente em posar, ele o surpreendeu com um retrato desenhado a lápis, feito de memória. Coisa de artista agindo por puro amor. Guignard afirmou, numa carta reproduzida no livro O Humanismo Lírico de Guignard, de Frederico Morais, que "não há arte mais exigente que o retrato". Ratificando a opinião do mestre, ela é difícil porque há de se colocar nele o ser humano com suas paixões, suas emoções e seus desejos, e até com o tempero do artistaque conhece o modelo, deixando nele a marca de algo único, como somos. E é por isso que não perco a esperança de que os colecionadores em geral e as entranhas do mercado de arte em particular despertem o bom senso e percebam aquilo que os museus do mundo já entenderam há anos, e por isso seus acervos são ricos dele: é no retrato que o artista se afirma, se projeta e se perpetua, como fez Herculano.

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