A herança cultural dos europeus, em especial aquela dos italianos transmitida para boa parte dos seus descendentes brasileiros, trouxe consigo o talento genético dos seus artistas ao longo de pelo menos dois séculos e fez o Brasil crescer nas artes plásticas. Prova disso são nomes como Visconti, Portinari, Zanini, Bonomi, Volpi, Ceschiatti, Fiore, Giorgi, Penacchi, Barsotti, Pancetti, Ianelli, Mecatti, Signorelli, para citar apenas alguns conhecidos, mas a lista é longa. Ter o sobrenome terminado em "i" parece favorecer ainda mais o seu descendente.

Não é somente por esses detalhes genealógico, gráfico e de estirpe que o nosso mineiro-universal Mário Zavagli entra na lista dos grandes artistas brasileiros. É pelo seu talento de pintor, desenhista, retratista e aquarelista. Como vê o leitor, um artista completo. Aos 57 anos tem um curriculum que começa aos onze anos de idade em Guaxupé (MG), cidade onde nasceu e viu crescer sua vocação para o desenho. Ele guardou na memória e na retina a paisagem mineira como somente os moradores de cidades menores são capazes. Depois passa por várias vicissitudes difíceis para quem opta por essa atividade profissional, chega à Escola de Belas Artes da UFMG como professor e continua até hoje com suas impecáveis e deslumbrantes aquarelas. Não são somente elas que fazem dele o artista que é, mas são, sobretudo, elas que o têm consagrado ultimamente entre colecionadores e galerias. Seus trabalhos a óleo ficaram no passado por causa da intoxicação do chumbo e da terebentina, daí a recomendação médica para interromper essa técnica, o que o levou às aquarelas. Sorte nossa porque se o leitor visse uma delas, se apaixonaria. Se tiver a sorte de adquiri-la, a colocará em local de destaque de sua casa no qual passa mais tempo, apenas para vê-la com mais frequência, como se faz com qualquer objeto amado. Para se ter uma ideia de tudo aqui mencionado, sugere-se a leitura do livro do poeta Fernando de Franceschi, editado pelo Instituto Moreira Sales, intitulado e contendo "21 Paisagens Mineiras". O livro surgiu a propósito da exposição de Zavagli no mesmo Instituto, em 1992, na qual havia 35 aquarelas de vários tamanhos, todas adquiridas pelo referido Instituto de uma única vez, e agora parte do seu acervo.

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Se o leitor crê na opinião deste articulista, no caso de achar que consultando sites dos grandes leiloeiros de arte brasileira ou visitando outros meios de informação, nos quais encontra, além da biografia dos nossos artistas, algumas fotos das suas obras, preços das vendas nos últimos anos, dimensões e demais dados de seus colegas de paleta, lamento informar que não achará esses registros de Mário Zavagli. Os seus trabalhos são raríssimos de se encontrar à venda, por isso, não há sites com essas informações. Não se trata de má vontade dele, dos leiloeiros ou marchands.. Acredite, a dificuldade é que quem as tem não vende e quem não tem e quer, precisa aguardar algum tempo para comprá-las. Nosso Mário Zavagli precisa de prazo para confeccionar as aquarelas a conter uma miríade de detalhes das paisagens mineiras. Elas sempre são precedidas de delicados desenhos de lápis de grafite os quais ele, sem pressa para terminá-las, cobre com cores cheias de claro-escura, com a mesma paciência com que foram desenhadas, e assim elas, as aquarelas, vão sendo tomadas pelos suportes cobrindo os desenhos e surgindo trabalhos dignos do acervo do Instituo Moreira Sales ou de qualquer outro museu.

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Como se sabe, aquarela é técnica que, uma vez posta sobre o suporte de papel, não admite mais retorno ou pendimento. Se o autor sentir que houve um "erro", precisará recomeçar tudo outra vez em outro papel porque ela não permite nenhuma forma de modificação, como é possível em óleo sobre tela, por exemplo. Por isso, é preciso ser um craque seguro desde o início de sua execução. Há bons aquarelistas rápidos nos pincéis, mas as criações de Mário Zavagli demoram três ou quatro meses na sua prancheta, tantos são os detalhes de suas paisagens. Zavagli as executa com a paciência de Jó e a competência de um artesão de alta qualidade. Para o "admirável mundo novo" da Internet e da informática no qual tudo é rápido demais, do tipo fast food, esse prazo é longo, mas é preciso nos lembrar que, no passado, houve pintores que demoraram anos para pintar um único quadro. Jean-Antonie Watteau (1684-1721) demorou cinco anos para pintar o seu mais famoso quadro "Embarque em Cítera" ou "Embarque para Cítera". É uma pintura rococó, barroco esse levado às últimas consequências, cujo claro mistério não está apenas na preposição de seu título, mas também na composição, cores e no número de ouro, este material fantástico de que o pós-modernismo se desinteressa, mas Mário Zavagli sabe como usar e calcular.
Alguns marchands têm a virtude comercial de esperar pelo momento espiritual de Mário. Se uma foi encomendada e o potencial comprador desistiu no caminho, há uma lista de outros querendo a nova peça. Como, repito, raro colecionador vende seus trabalhos, há dificuldade de encontrá-los em sites ou leilões. Mas elas podem ser vistas no Instituto Moreira Sales de São Paulo, Poços de Caldas e Rio de Janeiro. No livro de Franceschi há as reproduções de parte desse acervo. Quem se habilitar para uma pesquisa na consagrada Internet e no seu irmão siamês dr. Google, esse sabe-tudo-de-todo-mundo, poderá ver uma ou duas aquarelas ali colocadas sabe Deus por quem. Sugere-se a visita ao livro ou ao dr. Google para o leitor compreender a dimensão do que se escreve aqui sobre este talentoso artista. Seu trabalho é literalmente apaixonante.

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As aquarelas de Zavagli têm a verve daquelas pintadas no século 18 pelos pintores viajantes, em especial Thomas Ender (1793-1875), seu grande inspirador. Ender permaneceu no Brasil por dois anos e produziu mais de seiscentas obras, incluindo óleos, desenhos e aquarelas de nossas paisagens. Pois esse mestre austríaco, aquarelista dos mais brilhantes, se visse uma obra de Zavagli nessa técnica, a assinaria imediatamente, tão poderosamente leves elas são. Mário tem sobre Ender a vantagem de ter aprendido sobre todas as revoluções pictóricas ocorridas nas artes plásticas nos dois últimos séculos e vivenciou várias alterações produzidas pela sua geração, aplicando-as e acrescentando esses conhecimentos em quadros identificáveis pela qualidade do desenho e cores, pela fidelidade da cena e pela encantadora perspectiva. Suas paisagens são trabalhadas com pincéis de três ou quatro pelos e cada pincelada está afinada com o silêncio de uma paisagem do cerrado mineiro no entorno de Diamantina, Milho Verde e o Pico do Itambé, ou em locais onde Deus se esqueceu de regar as plantas. Se há na paisagem um rio ou uma pequena poça d'água, tanto melhor, a composição ficará enriquecida e o espectador notará a diferença entre alguém que sabe pintar em aquarela uma lâmina d'água sobre papel e outro pintor que a faz também, mas em quem ela mais parece uma chapa de aço inoxidável.

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Mário não é um artista hiper-realista, como pode pensar o espectador informado sobre as novas escolas de pintura, nem é acadêmico e talvez nem seja o caso de classificá-lo, mas ao mirar uma obra sua, temos a certeza de estar defronte do que um aquarelista pode fazer de melhor. Se houver interesse do colecionador, basta trazer uma fotografia e colocá-la na sua frente. Ele tomará de um papel grosso de 800 g/cm2, gramatura cuja qualidade a fará permanecer por gerações e gerações, e o resultado encantará cada espectador do futuro como hoje nos encanta Ender. Sua técnica é tão aprimorada que alguns curiosos duvidam que sejam obras originais e têm a pachorra de passar a mão sobre o papel, certificando-se que se trata de um original e não de uma impressão de um velho mestre viajante do século XVIII. Às vezes se surpreendem com um verdadeiro selo posto sobre o suporte intencionalmente, como se o quadro estivesse sendo postado pelos correios para o futuro.

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E ninguém imagine que a sua atividade resume-se em produzir aquarelas de paisagens capazes de agradar ao grande público e ao colecionador mais refinado. Zavagli é um mestre em surrealismo e suas figuras com conteúdo dessa escola não devem nada às de Dalí ou àquelas de De Chirico, com a diferença de que estas, ele não faz questão de vender ou de expor para o público. Elas representam uma fase pessoal de sua vida, e assim como os motivos que o fizeram criá-las são íntimos, também elas ficam guardadas na intimidade de um armário, assombrando pincéis e tintas, tentando sair do papel como se fossem fantasmas amigáveis, mostrando seu refinamento sem intenção de assustar alguém. Há ainda seus óleos, executados no passado e hoje raros por causa da mencionada intoxicação, todos medindo 2,10m x 1,10 m. Seus últimos trabalhos com esta técnica são para serem vistos de certa distância, de preferência no teto da casa do leitor ou no teto de uma capela privativa na qual o devoto deve rezar deitado, humilde, olhando para a pintura, convencido de sua insignificância pessoal diante da grandeza de Deus e do mundo e da beleza das cores.

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