Magdalena Carmen Frieda Kahlo Calderón Rivera (1907-1954), quando jovem, queria ser médica. Por cruel sarcasmo da vida, tornou-se muito cedo paciente de várias especialidades. Nascida de pai judeu húngaro-alemão, que não praticava qualquer religião, e mãe católica mexicana de ascendência espanhola, herdou do pai, que a amava, a paradoxal joie-de-vivre e a determinação do povo hebreu; da mãe, a teimosia do espanhol e o amor ao México. O pai era fotógrafo, atividade aprendida com o sogro no início do século 20. Isso significa que ele sabia compor com equilíbrio uma cena fotográfica, conhecia ponto-de-fuga, a técnica de revelação, além do retoque dos negativos. Quando criança, Frida não se interessava por fotografia ou por pintura, apesar de ter demonstrado ser talentosa desenhista a partir da adolescência. Mas, por certo, aqueles importantes detalhes da composição fotográfica devem ter-lhe sido passados pelo pai, tão logo ela começou, por impossibilidade de fazer outra coisa depois do célebre e doloroso acidente, a pintar. Por isso há, ao longo de toda sua vida adulta e sua obra, uma associação psíquica de pintura e dor.
O sofrimento da família com doenças, se inicia com o pai epiléptico, numa época em que os anticonvulsivantes não existiam e os familiares dos pacientes imaginavam recuperá-los das crises aplicando-lhes éter no nariz. Seu pai tinha uma dessas crises a cada 45 dias. O azar da família continua quando Frida, aos seis anos de idade, contrai poliomielite deixando-a lesada numa das pernas e no pé. Para piorar, no dia 17 de setembro de 1925, aos 18 anos de idade, ela foi uma das vítimas num acidente, fatal para muitos, entre um bonde e um ônibus num subúrbio da Cidade do México quando voltava da escola para casa. Seu amado Alejandro, junto com ela no bonde, ficou gravemente ferido. Frida saiu desse acidente atassalhada de tal forma que, ao longo de sua vida, passou por 14 cirurgias na coluna, tentando se recuperar de três rompimentos lombares, sofreu dois abortos em conseqüência de danos irrecuperáveis no útero, submeteu-se a freqüentes e dolorosas trocas de coletes de gesso e de aço, e viveu o restante da vida com dores horríveis e constantes. Além disso, despesas com médicos e remédios obrigaram a família a vender tudo de valioso que havia dentro de casa, o que a deixou cheia de conflitos e culpa. Tudo isso acrescido das crises conversivas da mãe desesperada. Quase no final de sua curta vida de 47 anos, Frida amputou a perna abaixo do joelho. Morreu em abril de 1954, há 50 anos, em conseqüência da soma de todos esses diagnósticos, agravados por uma pneumonia contraída quando ela insistiu em sair de casa para participar de uma manifestação do Partido Comunista, protestando contra a invasão americana na Guatemala. Para quem já havia passado por tantas dores e dificuldades, o que representava a possibilidade de contrair uma pneumonia?
Com aquele acidente, os deuses do Olimpo tiraram do mundo a médica que ela teria sido e nos legaram a imortal artista. Esta nasce quando sua mãe manda colocar um dossel na cama na qual ela se recuperava e ali instala um opressor e, ao mesmo tempo, libertário espelho (sempre ele!), de tal forma que ela se via o tempo todo. É esse o motivo da grande proporção de auto-retratos na sua pequena produção de toda sua carreira de pintora. A partir daí, ela tinha a si para ver e, com a dor e o sofrimento, forjou a idéia de sua própria pessoa. Aprendeu a perceber uma realidade objetiva tão cruel que, mais tarde, André Breton, surpreso com o conteúdo de sua pintura, a classifica como surrealista. “Não sou surrealista, pinto o que sinto”, dizia ela em resposta. E são, sobretudo, seus sentimentos estampados nos auto-retratos que a consagram. Eles escancaram o íntimo humano e suas emoções em óleos a registrar sua carreira de deficiente física, sua ansiedade, angústia, depressão, doenças e de tudo mais que ela sentia, se expondo ao espectador com surpreendente segurança para quem existia na dor. Por isso é preciso atenção às datas dos seus auto-retratos, conhecer sua biografia para compreendê-los de acordo com o seu viver no momento em que foram executados. Ela confidencia em cada um deles o que se passa no seu interior: uma lição de pintura e de vida a declarar sua tristeza, como no óleo “Memória-O Coração”, de 1937, quando ela descobre o caso amoroso entre Cristina, sua irmã, e o seu marido Diego Rivera. Através de um desproporcional coração a sangrar e a amputação de suas próprias mãos na tela, reconhece a sua impotência ante a relação dos dois: o que fazer com duas pessoas que ela ama e que a ferem? Não podendo ou não querendo agredi-los, corta suas mãos, se agredindo na tela. Em auto-retrato de 1944, diz da sua infindável dor física quando expõe seu corpo aberto ao meio, crivado de pregos e sustentado por um colete de aço, e exibe sua solidão representada no deserto ao fundo do quadro.
Quando ela se põe no lugar de Carmem, femme fatale de Bizet, se pinta linda e sedutora, adornada com flora mexicana, mas, no mesmo quadro, lembrará ao espectador o seu padecimento de Magdalena, através de um colar de espinhos no colo, como se convivessem nela as três mulheres do seu nome. Pintava a si mesma para presentear amigos, ou por gratidão a médicos que lhe davam algum alívio. Por isso, não há enigma a ser decifrado quando grita nas telas o seu sofrimento. Vaidosa, fará todos os esforços para esconder seus defeitos físicos oriundos da pólio, razão por que são pouquíssimos os quadros ou estudos nos quais aparece seu pé enfaixado ou a sua perna vitimada pela doença. Quando o auto-retrato é de corpo inteiro, essas partes estão sempre escondidas sob longos e belos trajes mexicanos. Frida Kahlo hoje, além do nome de brava guerreira e artista inconteste, deveria ser também sinônimo de sofrimento e de dor.
Em 1940 ela se pintou num óleo no qual há um colibri como adorno no seu colar de cipó. Anos depois ela o desenha novamente, agora com as asas abertas e colocadas no lugar de suas espessas sobrancelhas, o corpo do pássaro ocupando parte do seu nariz e o bico formando uma espécie de terceiro olho na testa. Deveria ter pintado uma águia, tão grande era sua garra perante as vicissitudes da vida. Se o leitor se der ao trabalho de observar sua fotografia tirada pelo seu amante americano Nicholas Murray, verá que as sobrancelhas não são tão espessas quanto ela as via e as pintava. Elas foram se transformando e se tornaram a sua marca registrada na mesma medida e proporção em que aumentavam suas lágrimas dentro de si. Ela nunca chorava em público. Exagerando nas sobrancelhas, desvia o olhar do espectador dos seus olhos tristes para que ele os visse menos e não reconhecesse sua intimidade de eterna dor física. Hoje basta um olhar de soslaio sobre qualquer de seus auto-retratos para nos assegurar de tudo que ela viveu e sentiu. E nem seu “bigode”, que Rivera tanto prezava, era tão marcante e visível como ela o pintou. Com o “bigode” tão nítido nos auto-retratos, ela esclarece para o espectador sua ascendência, que não tinha indígenas. Esses, como se sabe, são imberbes e sem pelos. Esclarecia também a bissexualidade que já havia sido demonstrada desde jovem, quando se deixava fotografar em trajes masculinos, e ratificada pelas várias amantes que teve, todas incentivadas pelo marido. A mesma bissexualidade que expôs em quadros como “Flor da Vida”, de 1943, no qual uma flor exótica é transformada em órgãos sexuais masculino e feminino e o útero convive com o phallus.
O ano de 1946 foi terrível por causa da cirurgia a que foi submetida em Nova Iorque. Ela registra esta passagem de sua vida se retratando como um indefeso cervo coberto de flechas atiradas por caçadores impiedosos. Tal qual no mito de Pandorra, lhe havia restado na caixa apenas a esperança, por isso pinta no mesmo ano o “Árvore da Esperança, Mantenha-me Firme”, título retirado de uma de suas canções preferidas. O quadro está dividido em duas metades. A primeira representa o que ela é naquele momento: as costas de um corpo feminino com uma grande incisão na região lombar; nele não há rosto, apenas alguém se contorcendo em dores. Na outra metade ela expõe seu desejo: linda e indolor, sentada com trajes típicos vermelhos, um grande laço na cabeça e o colete idealizado: em suas mãos.
A presença de quadros em metades já havia sido registrada desde 1932, quando de sua viagem aos Estados Unidos, país que ela detestava. À esquerda do quadro está o seu México amado e humano, visto através da arquitetura asteca, a flora e a mitologia locais. À direita há a presença da pujança industrial americana, paixão de Rivera, com motores, máquinas e tubos, além da palavra Ford em quatro grandes chaminés. Fora do centro do quadro ela segura a bandeira do México. Para quem era integrante do Partido Comunista Mexicano, o recado não poderia ser mais claro. Mais tarde, quando se divorciou de Diego, contou toda a sua dor da perda do marido amado através da pintura de um dos seus poucos quadros de grandes proporções, no qual há duas Fridas em tamanho natural. Numa ela segura uma medalha com o rosto de Rivera. Ela é, nesta metade, toda asteca e exibe seu coração pintado e inteiro como se dedicasse essa metade ao seu país. Na outra metade ela é a mulher de coração modificado, trocada por outra, a se apresentar com roupas européias. Na mão há uma tesoura cirúrgica tentando estancar a hemorragia da artéria que não tem mais salvação.
Mas ela não se mostrava pessoalmente apenas com dores, sofrimentos, coletes ou corações abertos. Frida Kahlo sempre foi uma mulher fascinante no trato pessoal, inteligente, independente, corajosa no seu tempo e com uma vitalidade desconcertante e paradoxal para os conhecedores de sua biografia. Apesar de nunca ter pintado um auto-retrato sorrindo, amava a vida, a família inteira e, em especial, o pai, a quem ela sempre foi grata e tratou com generosidade. E foi com essas qualidades que ela também se pintou com flores e fitas, micos e pássaros, lenços e flores, papagaios e cachorros, e encantou homens tão fascinantes quanto ela, incluindo Trotski, André Breton, Marcel Duchamp, Kandinsky, Picasso e uma multidão de admiradores. Frida Kahlo foi a primeira pintora mexicana do século 20 a ter um quadro adquirido pelo Museu do Louvre em Paris, um auto-retrato intitulado “A Moldura”, uma composição arrebatadora pelas cores das flores e dos pássaros a cercá-la, com o suporte da colagem de vidro sobre uma folha de alumínio.
Os auto-retratos de Frida hoje continuam nos olhando e nos fazendo a mesma pergunta que ela fazia quando se olhava no espelho, implorando e aguardando uma resposta da agonia que a imortalizou.