É sabido que muitos artistas talentosos são angustiados por inúmeros e desconhecidos motivos. Alguns são assim por causas objetivas, têm um diagnóstico psicopatológico e, neste caso, mesmo que não fossem artistas, teriam vida difícil. Há aqueles que não são contemporâneos de si mesmos ou viveram em cidades cujos habitantes jamais tiveram idéia da importância do trabalho deles, duas razões para deprimir qualquer artista sensível. De qualquer forma que se pense, há sempre o sentimento de que o mundo exterior não os compreendeu, não os aceitou e nem os valorizou como devia, contribuindo para que a vida fosse dolorosa. Além disso, fica sempre um registro entre familiares de que, com outra atividade profissional, tudo seria menos amargurado para o incompreendido. Para piorar suas vidas, na maioria dos casos demoram-se décadas para que suas obras, vistas por novas gerações, sejam valorizadas. Van Gogh é o exemplo mais lembrado e sempre citado, mas a lista é longa.
A recente exposição "O Olhar Modernista de JK" realizada em Belo Horizonte, no Palácio das Artes (de 10 de dezembro de 2008 a 1º de março de 2009), com curadoria de Denise Mattar, trouxe várias obras de artistas que participaram da "I Semana de Arte Moderna" realizada em Belo Horizonte em 1944, a pedido do então prefeito JK e por recomendação de Rodrigo Melo Franco de Andrade, seu grande conselheiro. "A Semaninha", como ficou conhecida, tinha como curadores Alberto da Veiga Guignard e J. Guimarães Menagale. O título dela remetia àquela realizada em São Paulo em 1922. Os artistas então escolhidos pelos curadores eram talentosos paulistas e cariocas e de outros estados, mas viviam no Rio de Janeiro ou em São Paulo.
Todos os participantes e seus trabalhos eram conhecidos e admirados especialmente por Guignard, que já estava em Belo Horizonte para fundar a escola que hoje leva seu nome a pedido do futuro presidente e por recomendação do mesmo Rodrigo Melo Franco de Andrade.
Como a arte é filha do tempo, alguns artistas, mesmo talentosos, foram perdendo o élan vital da criação, pararam de pintar, ficaram esquecidos e suas obras desaparecidas com o passar dos anos. Uma certa pintora, Marta Loutsch, parece pertencer àquele grupo de pessoas que nasceram antes de seu tempo. Ela foi a única vivendo em Minas Gerais a integrar o grupo, na cidade que tinha artistas como Genesco Murta, Aníbal Matos, Herculano Campos, Delpino e outros. Apesar de a escolha de seu nome ter sido convite pessoal de Guignard e suas obras terem sido avalizadas por ele e, ao longo dos anos seguintes, esse aval devesse servir de garantia de perpétua qualidade artística da mais alta estirpe, podemos acrescentá-la na lista dos artistas incompreendidos pelo grande público e até mesmo da crítica na época. Durante meus longos anos de colecionador é a primeira vez que vejo seus trabalhos. Dommage! Se apenas Menegale, Guignard e alguns poucos colegas de paleta dele compreenderam suas obras, hoje, essa alemã, que escolheu o Brasil como sua segunda pátria, pode e deve ser considerada uma das mais brilhantes pintoras do Brasil, do mesmo nível de Tarsila ou de Anita. Talento e qualidade nos trabalhos não lhe faltaram. Faltou um marqueteiro ou um marchand interessado e que insistisse em mostrar para os poucos colecionadores da época a beleza de seus trabalhos. Denise Mattar, na medida do possível, da disponibilidade e generosidade dos colecionadores, fez uma reprise da exposição de 1944, mas compreendeu a importância de Marta e dedicou-lhe Sala Especial com doze quadros a óleo, dezessete aquarelas e alguns desenhos, técnicas nas quais ela era craque. Com essa decisão a curadora resgata uma pintora esquecida e restaura uma injustiça que o país, Minas Gerais em particular, cometia há anos.
Apesar do escancarado talento em qualquer técnica, de ter participado da Semana de 1944, de ter participado posteriormente de exposições individuais em Berlin, Rio e São Paulo, a obra de Marta permanece praticamente desconhecida pelas gerações seguintes e, se não fosse pela recente exposição, possivelmente ela continuaria nesta condição por mais cem anos.
Considerando a beleza e a qualidade técnica de suas aquarelas, desenhos e pinturas a óleo, as explicações de ignorá-la podem estar na sua pequena produção a circular pouquíssimo hoje; seus quadros não são apregoados em leilão; não oferecem retorno a pessoas que investem financeiramente em arte; poucas famílias mineiras, paulistas ou cariocas têm obras suas e aqueles que as possuem não as expõem, não comentam sobre Marta Loutsch e ela não é citada em publicações ou em conversas sobre arte brasileira. Todos esses são fatos lamentáveis, comprovando como tratamos mal nossos filhos ilustres. É possível que sua produção tenha sido substancial para sua época, mas pequena para se perpetuar comercialmente em um mercado que ela e seus contemporâneos jamais imaginariam existir um dia no Brasil. Acima de tudo isso, por imposição matrimonial, ela morava em Sabará, pequena cidade onde seu marido era o superintendente da usina da Cia. Siderúrgica Belgo-Mineira. Alguém pode imaginar um belorizontino sair de nossa provinciana cidade nos anos 1930 ou 1940, viajar com dificuldade até aquela cidade para somente visitar seu atelier, ver seus trabalhos e comprar algo dela? É possível também que a pequena população local, na ocasião, não valorizasse seus quadros e os considerasse ousados demais. Todo esse conjunto de circunstâncias transformou-a em uma maravilhosa artista pouco conhecida.
Ela é merecedora do adjetivo e ele pode ser comprovado em primeiro lugar pelo seu seguro desenho de poucas linhas formando uma figura humana, pela técnica apurada e limpa das aquarelas com perspectiva de mestre, seja nas paisagens ou nas marinhas. Seus retratos de gente humilde que a cercava em Sabará demonstram visível humanismo que o mundo foi perdendo nos anos bélicos seguintes e nas duras décadas do pós-guerra. Seus definitivos óleos contêm tudo que se espera da pintura modernista brasileira com suas cores produzidas pelo brilho do sol tropical que ela tanto buscou e impregnadas com a força do expressionismo alemão que, certamente, conhecia bem. Sabedora da lei da razão de ouro, ela distribui os elementos da composição da natureza morta com invejável equilíbrio e enganosa simplicidade. E nem foi somente nesse gênero a receber a técnica dos grandes criadores. Suas paisagens e flores são composições com ritmo, conduzindo o espectador à alegria de ver somente beleza em espaço pequeno ou em suportes de grandes formatos. Nada chama atenção nos quadros, exceto a harmonia do conjunto.
A antiga Vila Formosa de Sabarabuçu foi fundada no início do século 18 pelo bandeirante paulista Borba Gato, genro de Fernão Dias, dois bravos portugueses que saíram do litoral paulista à procura de ouro no desconhecido interior brasileiro. Encontraram tanto que ali edificaram a cidade hoje conhecida como Sabará. Ela está a pouco menos de 30 km de Belo Horizonte, distância percorrida nos anos 1930 ou 1940 com dificuldade por sinuosa estrada de terra ou por estrada de ferro. Sabará está parcialmente preservada com casas coloniais, algumas igrejas barrocas e pelo Museu do Ouro, local de painel de sua autoria. A usina dirigida pelo marido está hoje desativada.
Enquanto o executivo ficava na siderúrgica, ela desenhava, pintava a óleo e fazia aquarelas. E com que primor tudo isso era produzido! Todas as técnicas pictóricas são apresentadas de forma exuberante por alguém que, além do talento, tinha a herança cultural germânica, um DNA artístico único e a vivência do que ocorria – o casal viajava com certa freqüência pela Europa - e havia ocorrido no Velho Mundo. Os resultados estão nas aquarelas, conservadas de forma exemplar, e no conjunto de paisagens, flores, naturezas-mortas a óleo, que deixam este articulista perplexo com a falta de reconhecimento, pela geração que me antecedeu, de uma artista que somente expunha beleza.