Há alguns anos, recebi uma foto do quadro que ilustra essa matéria. Ao primeiro olhar me apaixonei por ele sem saber quem era seu autor. Sua extraordinária força expressionista deixou-me perplexo, imaginando que somente veria uma peça como aquela em museus americanos ou europeus. E ali estava ele, se oferecendo a quem o reconhecesse como uma peça beirando a santificação de tão bonita. Surpreendeu-me saber que seu proprietário a venderia. Qualquer colecionador sabe que há quadros para venda e há outros invendáveis. Aquele era deste último caso. Falei com um amigo que o comprou e eu o levei à Paris para certificação.
O quadro é de 1923. Ele completa, portanto, cem anos e a modelo é a própria esposa do pintor, esclareceu-me seu neto quando o quadro lhe foi mostrado em Paris: Oui, c´est un Gromaire. C´est le portrait de ma grandmére. Quase cai de emoção. Ali, em frente de mim, em hotel parisiense, o neto do pintor acabava de me confirmar a autenticidade do quadro e, como acréscimo, quem era a modelo. O quadro é um magistral exemplo de como a combinação do cubismo e do expressionismo nas mãos de pintor talentoso é capaz de produzir uma obra digna de qualquer museu. Sua forma é de linhas bem delineadas a trazer apenas duas cores: o ocre da pele da modelo e uma ousada cor preta espalhada de forma magistral sobre o seu corpo e como sombra da modelo pela tela, a transformar o conjunto em simplicidade enganosa. O efeito é avassalador e de difícil execução, assertiva que pode ser ratificada por qualquer pintor experiente. O leitor notará certa semelhança entre o rosto da grandmére e os retratos de nosso Ismael Nery. Pura coincidência intelectual por que, por certo, eles nunca se conheceram ou viram seus mútuos trabalhos.
Marcel Gromaire (1892-1971) foi um pintor francês muito conhecido na Europa, em particular na França, e pouquíssimo no Brasil e pertenceu a Escola do Realismo Social, movimento e termo usado por intelectuais, pintores e cineastas nos anos 1920/1930 na Europa a chamar a atenção da classe dominante sobre a situação político-social dos trabalhadores. Foi um humanista a toda prova.
É possível que este quadro tenha vindo ao Brasil em 1930 para a exposição organizada por Vicente do Rego Monteiro e na qual havia vários pintores franceses e até obras de Picasso. A exposição começou em Recife, veio ao Rio de Janeiro e São Paulo e tinha tudo para ser um sucesso pelo seu conteúdo e pela notoriedade de seus participantes. Mas, ela foi um retumbante fracasso nas três cidades, apesar da qualidade dos artistas. É possível e é até provável que esse fiasco tenha sido produzido pela sabotagem do Partidão, que odiava Vicente por suas ideias monarquistas e fazia tudo para desvalorizá-lo. Foi lamentável. Depois deste episódio, Vicente nunca mais trouxe seus amigos franceses para expor no Brasil.
Naqueles anos quem não fizesse parte do Partidão não tinha chance de sobreviver como artista. Por isso, Vicente preferiu mudar-se para Paris muito cedo e lá permaneceu durante décadas, país que nunca lhe perguntou pelas suas ideias políticas.
Os quadros de Gromaire hoje fazem parte do acervo de célebres museus americanos e europeus como o MOMA de Nova Iorque e o Museum d´Art Modern de Paris, locais nos quais só entram grandes mestres. A biografia de Gromaire inclui um curso de Direito cuja atividade jurídica foi abandonada cedo a favor da pintura e uma passagem como soldado participante da batalha de Somme na I Grande Guerra em 1916. Nela, ele foi ferido e depois expôs todo seu horror por intermédio de pinturas de soldados como ele e a angústia das pessoas envolvidas no conflito mundial.
Marcel foi modesto em sua produção: deixou aproximadamente 750 óleos de herança neste Planeta Azul. Não foi, portanto, um pintor profícuo, pois criou aproximadamente dez quadros por ano durante sua vida de artista, uma quantidade irrisória para qualquer pintor nosso contemporâneo. Sua produção inclui paisagens e retratos em desenhos, óleos e aquarelas. Como humanista, a maioria de seus trabalhos traz a figura humana como modelo e alguns quadros célebres registram lembranças de guerra.
Ele foi talentoso e criativo desde o início de sua carreira, mas ficou mais conhecido fora da França a partir de 1931 quando Pierre Matisse, filho de Henri, levou seus trabalhos para venda na galeria que fundara em Nova Iorque. Ficou valorizado ainda mais na França pela generosidade do seu maior colecionador, Dr. Girardin, que doou para o Museu de Arte Moderna de Paris setenta e oito óleos e várias aquarelas. Mas seu talento não se resumia apenas em óleo sobre tela, aquarelas e desenhos da figura humana e paisagens. Gromaire trabalhou com Jean Luçart, o maior tapeceiro da França e, juntos, eles criaram deslumbrantes tapeçarias que são objetos de disputas em leilões até hoje na França.
Gromaire viajou aos Estados Unidos em 1950 como jurado do Prêmio Carnegie concedido naquele ano ao cubista Jacques Villon (irmão de Marcel Duchamp), prêmio que o próprio Gromaire receberia em 1952. Em 1954 passou a integrar a Legion d´honneur e em 1958 recebeu o Grand Prix National des Arts. Morreu em 1971 quando já era imortal.