É possível que, num futuro longínquo e talvez quimérico, a medicina prove a existência de um determinado fator, hoje nem pensado, como algo pertencente a alguns poucos privilegiados do gênero humano. Perceberemos, então, nascituros portadores de uma segunda mensagem dos deuses, aquela que os fazem ser pessoas especiais por toda a vida: a sorte. A primeira, como se sabe, é o talento. Tarsila do Amaral foi portadora dos dois. Nascida numa família riquíssima durante mais de dois séculos, seu avô José Estalislau do Amaral, era conhecido como "o milionário" numa época em que a riqueza acumulada no país era pequena e dinheiro era privilégio de poucos. Este era tanto que havia dúvida entre integrantes da família se o total de suas fazendas eram de 22 ou 37. "O Milionário" não tinha somente dinheiro, era um empreendedor visionário, republicano convicto num Brasil monárquico, anti-escravagista possuidor de mais de 400 deles, certo que um dia a escravidão seria abolida. Teve vários filhos e um deles, também chamado José Estalislau do Amaral será o futuro pai de Tarsila.

Tarsila nasceu em 1886 numa fazenda de café na qual havia, além das plantações, cactus e pedras que, no futuro, seriam elementos de suas composições pictóricas. Durante sua infância teve uma esmerada educação com preceptora belga. Casou-se pela primeira vez aos 18 anos de idade com um primo, André Teixeira Pinto, como era costume na época. Ele era um fazendeiro rude, insensível e desinteressado pelas coisas do espírito, com quem Tarsila teve uma filha, Dulce. Depois de casada, percebendo as qualidades do marido, tão distantes de sua sensibilidade, teve a ousadia de se separar dele numa época que pouquíssimas mulheres assumiam tal atitude e responsabilidade. Sua decisão era, claro, respaldada pelo pai que a amava e também pelo dinheiro dele, sem o qual ela não viveria. Era então uma mulher linda, inteligente e culta, educada em ambiente no qual se falava e se respirava a cultura do país de Proust, que ia do diário vinho Chateau Laffite, aos cremes e pós-de-arroz importados e à disposição nos banheiros da casa, passando pela literatura que incluíam Victor Hugo e Voltaire, lidos no original. Tudo isto adicionado pelo som do piano Steinway, em uso permanente na casa. Com este somatório, sentia-se livre e com coragem para ser corajosa em São Paulo, local para onde se mudou tão logo se separou do marido. Corajosa no Brasil para enfrentar os preconceitos de "mulher separada" enquanto aguardava a anulação de seu casamento pelo Vaticano e depois em Paris que começaria a freqüentar com assiduidade, viajando sempre na primeira classe de luxuosos navios franceses. Com este curriculum, a beleza, elegância, cultura e o talento que tinha Tarsila passa a ser desejada pelos homens e admirada pelas mulheres.

A grande musa do modernismo brasileiro, pela ousadia que teve ao longo de uma vida intensa, é um belo exemplo de que as classes efetivamente livres no Brasil eram e são ou as muito ricas ou aquelas muito pobres: ambas fazem o que querem.

Sua primeira viagem a Paris, feita quando menina, foi uma decepção. Acostumada a ler as biografias de reis e rainhas, príncipes e princesas com quem ela tanto se identificava, na sua cabeça de criança esses nobres ainda viviam em luxuosos trajes andando pelas ruas da Cidade-Luz ou nas carruagens douradas. Frustrou-se ante uma cidade que não é para infantes. Paris era então e é uma cidade para adultos desfrutarem o que ela oferece de melhor para quem já tem os sentidos apurados. E isso ela só sentiu, entendeu e viveu quando voltou, adulta, por várias e várias vezes e se tornou amiga de intelectuais franceses, pintores e artistas consagrados e passou a freqüentar o equivalente francês daquilo que era o seu mundo paulista. André Lhote, Fernand Léger, de quem foi aluna herdando forte influência nas composições, Picasso e outros artistas que a deixaram encantada pela capacidade de criação e transgressão, faziam parte de um mundo digno da sua cultura, conhecimento, beleza e talento. O cubismo a encanta e a influencia e, alguns anos depois o julga superado.

Vivendo intensamente lá e aqui, conhece Oswald de Andrade, um playboy milionário que vivia gastando o dinheiro do pai, dono de loteamentos inteiros onde hoje são bairros importantes da Capital paulista, dirigindo seu Cadillac pelas desertas ruas da desvairada São Paulo de então. Tinha olhos azuis, era bonito, sedutor, inteligente e culto. Tornou-se amigo e marido dela. Ambos tiveram uma privilegiada vida, repleta de emoções afetivas e intelectuais. Separaram-se e ela tornou a se casar mais duas vezes, morrendo sozinha.

Sua vida é um modelo de como se pode viver bem quando se é rica e bela, culta, de bom gosto e talentosa, descrição digna de quem viveu no Olimpo como convidada dos deuses. Morreu em 1973, muito tempo depois da falência do pai, ocorrida na crise da Bolsa de Valores Americana de 1929, já imortal.

Muito cedo ela se tornara amiga de Anita Malfatti, vilipendiada em sua primeira exposição aos 21 anos de idade, em 1917, por Monteiro Lobato. É possível se atribuir a este a pouca produção de Anita, refletida até hoje no mercado de arte, no qual suas poucas peças são disputadas e valorizadas. Monteiro Lobato a deixa castrada, deprimida e convencida de seu amadorismo de tal forma que ela passa a ter lições de pintura com o acadêmico Pedro Alexandrino. Este será também o professor de Tarsila, aos 30 anos de idade e a quem ela é grata pela sua exigência de ela desenhar exaustivamente.

A biografia de Tarsila, assim tão resumida, não reflete a riqueza da vida que levou. E por "riqueza" não deve ser entendida apenas aquela monetária, mas a intelectual e de intensas emoções. Inclui-se aí a riqueza de suas composições pictóricas que, num único relance expressam a espontaneidade e a simplicidade enganosa do virtuoso. Enganosa porque atrás de cada elemento da composição existe uma geometria secreta aprendida durante seus estudos acadêmicos e aperfeiçoados com os cubistas que conheciam o número de ouro e que dela Tarsila fez bom uso.

O primeiro exemplo é o quadro "Carnaval em Madureira", do início de 1924 quando ela, Oswald, Mário de Andrade e mais o grupo de amigos que saíram à procura das raízes brasileiras, encontradas no carnaval do Rio e na temporada da Semana Santa em Ouro Preto, Mariana, Tiradentes, São João Del Rey e Congonhas. Nesta ocasião valorizam a arte brasileira, em especial, o barroco mineiro. Este é o mesmo grupo que, em 1928, criaria o Movimento Antropofágico e que já havia entrado para a história brasileira em 1922 com a Semana da Arte Moderna com outros colegas artistas. O quadro é uma beleza de cores e alegria, com elementos marcantes do que foi a sua vida na fazenda, representada pelas pedras colocadas com sabedoria na metade superior da tela, a manter o equilíbrio da composição; acrescidas de baianas do carnaval carioca e a presença da Torre Eiffel dominando o quadro, como a França a dominava intelectualmente.

O quadro está, imperceptivelmente, dividido ao meio pelo traço azul claro do lado direito, linha que coincide com aquela da estrutura da torre e encerra no centro da casa azul do canto esquerdo. Toda a parte inferior é construída em composições triangulares que se repetem em menor escala, que por sua vez, se fecham em losangos perceptíveis apenas quando se tem a pachorra de observá-los com olhos de matemático. É isso que ela mais faz ao planejar seus quadros: cálculos matemáticos que determinarão o local exato dos elementos, que farão cada parte da composição um belo quadro individual, assegurando um resultado fantástico no total. Cada parte é importante e nenhuma chama a atenção de forma especial do espectador. A mulher é diabólica no que faz e pela precisão do que faz. Há ainda um X imperceptível unindo a parte superior com a inferior, completando a unidade.

Para que não haja dúvida quanto a essa preocupação dela, calculada de forma matemática em todos os seus quadros, de resto uma preocupação constante e presente nos grandes artistas pintores e escultores, seu auto-retrato de 1923 no qual ela está com grande e elegante casaco vermelho (ela se vestia diuturnamente com roupas tão caras quanto um quadro de Léger na época). O quadro é de uma simplicidade fascinante pela poucas linhas e cores (o vermelho contrastando com o azul ao fundo), com uma linha vertical reta que passa no centro do quadro pelo rosto, nariz e boca. Novos cortes e percebemos que o centro dele corresponde ao final do osso esterno da modelo e que as calculadas linhas abertas, formadoras do desenho do capote, são fechadas por aquelas do decote, encerrando uma composição que não termina aí. A distância existente entre as duas metades de seu corpo são iguais e há uma outra linha divisória a passar, com precisão, sobre seus olhos.

São fascinantes detalhes pictóricos, desconhecidos quase sempre pelo espectador comum, mas sentido pelo olhar treinado a ver uma obra-prima. Foram aprendidos pela artista ao longo de uma vida dedicada ao estudo da composição, das cores, dos elementos que integrarão o quadro, todos eles formadores de uma geometria secreta e da simplicidade enganosa que fazem de Tarsila do Amaral a artista consagrada e imortal que é.

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