Há algumas semanas este articulista viu pela televisão a entrevista de um senhor idoso usando uma camiseta na qual havia recomendação de duvidoso gosto: live fast, die young. Infelizmente não é o único, mas se havia alguém neste país mais autorizado a usar roupa com esse aforismo no século XX chamou-se Raimundo Falcão de Oliveira, baiano de nascimento, artista que deixou acervo de incomparável beleza e com trágica passagem nesta vida. Viveu rápido, morreu jovem e se imortalizou como pintor e artista.
Transcorridos mais de trinta anos após sua morte, a carta com a qual ele se despediu deste mundo em 18 de janeiro de 1966 continua tão emocionante quanto a sua pintura. O texto registra a gratidão dele pelos amigos que o aceitaram, o acolheram e o ampararam durante sua curta vida e que, não suportando as dificuldades emocionais e financeiras e com aparente lucidez, lamentava “que não conseguisse mais agüentar”. A carta é dirigida “a todos os meus amigos”, mas vários são nomeados nela: Mário Cravo, Jorge Amado, Rodolfo e Getrudes Klein, Sarah Campos, Jenner, Genaro, Emanoel e outros, brasileiros como ele. Mas a carta de despedida, sem que ele sequer imaginasse, é endereçada também a seus admiradores do futuro que, não o conhecendo pessoalmente em Feira de Santana, Salvador, Rio ou São Paulo durante os anos 1940 até 1966, hoje reverenciam o brilhante e saudoso artista. Na despedida ele esclarece que o seu último gesto foi motivado “por problemas financeiros, pois é horrível todo mundo pensar que a gente é rico sem ser” [A Via Crucis de Raimundo de Oliveira, Fundação Cultural do Estado da Bahia. Salvador: 1982 p.166]. Não se pode duvidar da palavra literalmente final de pintor sensível que viveu numa época na qual o país valorizava pouco seus artistas, o mercado de arte era incipiente e os colecionadores eram raros. Assim, não foi somente Raimundo a queixar dificuldades financeiras, mas é possível que apenas ele tenha morrido por esse motivo. Em 1966 poucos artistas poderiam se dar ao luxo de viver apenas da venda de seus trabalhos. A maioria dos pintores tinha emprego público, era professor, fazia “bicos” com representação comercial ou retoques em fotografias enquanto aguardavam novos e melhores tempos artísticos ou sujeitava-se a viver com certa penúria. A origem do “problema financeiro” de Raimundo e de artistas em geral é o colecionador neófito visitar os seus ateliês, ver vários quadros armazenados um atrás do outro, multiplicá-los pelo preço de venda e calcular quanto ele tem dentro daquele imóvel, como se o pintor fosse um criador de dinheiro, lastreado nas suas próprias obras. Nessas condições, vê-se o artista como rico. Nada mais falso. É possível que tenha sido dessa riqueza de que ele falava. As vendas de obras de arte não ocorrem com a facilidade que a maioria do grande público imagina. Raríssimo são os artistas que selecionam seus compradores ou têm “lista de espera”. Mas, ainda naquela carta, Raimundo afirma ter “certeza que a minha morte não foi por causa dos meus problemas sexuais”. Ele se referia a certa orientação numa época na qual ela era inaceitável e mal vista. Vivendo hoje, veria que o mundo mudou, muitas coisas para pior, mas que a aceitação de pessoas portadoras do que ele chamou de “problemas” é infinitamente maior que na sua juventude. Por isso, suas angústias talvez fossem menores se ele tivesse suportado as pressões familiares e sociais e aguardado mais para viver menos infeliz no mundo de hoje. Para tentar diminuir sentimentos que lhe incomodavam tanto, levou vida boêmia pelas grandes cidades brasileiras e, em certas ocasiões, ela foi tão devastadora que ele não produziu nada durante meses. Na época, foi a saída objetiva e emocional que o permitiu viver o seu desejo. Mas a sua provinciana Feira de Santana e todos os censores de sua adolescência e juventude nunca o abandonaram. Viveram todos dentro dele como se fossem fantasmas internos a assombrá-lo e lembrando-lhe que ele era baiano, terra na qual certas preferências eram imperdoáveis.
Raimundo Falcão de Oliveira era alto, ouvia mal, prognata, falava com voz gutural alta, tinha nariz adunco e se julgava feio. Como pintor talvez visse que seu rosto não tinha o equilíbrio dos elementos de uma composição com o número de ouro bem calculado. Seus amigos o adoravam pelo seu talento e pelo aparente e sempre elevado nível de humor, prova de sua defesa maníaca frente à depressão que ele preferia dividir com poucos. Na Bahia ou no Rio, usava sempre terno preto, cor rara nos seus quadros, mas metafórico matiz do seu mundo interno. O terno refletia sua formalidade pessoal e com todos. Teve vida curta: trinta e seis anos. Com tão pouca idade, deixou acervo de pintura que começou ainda na adolescência em Feira de Santana. Ali ele iniciou seus primeiros desenhos e estudos. Adulto, passou por Salvador, Rio e fez amigos em São Paulo, construindo trajetória curta e imortal. Em todas as figuras humanas pintadas nos seus quadros há a preocupação do nariz acentuado no modelo, santo ou profeta, projeção do que lhe incomodava em si mesmo, algo semelhante àquilo que ocorreu com Guignard e seus modelos, que eram retratados com o lábio leporino do pintor. É possível que o detalhe crítico dos grandes olhos e o nariz adunco de seus personagens tenham sido projeções inconscientes durante longo tempo e que, tão logo ele percebeu a força deles em cada obra, os tenha valorizado ainda mais a partir de 1960. Desse ano em diante, aqueles detalhes passam a ser signos consagradores de pintura com exuberantes cores, acrescido da encantadora simetria. Na vida adulta perdeu a paleta escura e o corte seco contidos nos retratos de gente humilde de sua cidade e adolescência, paleta de então que era provável reflexo de suas dificuldades de jovem. Na maturidade da vida artística ganhou a incomparável beleza com matizes incompreensíveis para quem era artista deprimido. Seus quadros são demonstrações de vitalidade e exuberância de vida que são o oposto do que ele vivia. As cores complementares predominam, mas sabedor de seu talento, não as segue com rigor em todos os quadros. Como ocorre nas obras de grandes mestres, nenhum detalhe das composições de sua pintura chama a atenção de forma especial. O resultado em qualquer situação é de encantadora beleza. Seus personagens, com freqüência, aparecem de perfil com o olhar contendo humildade reservada aos mansos de espírito. Como ele próprio.
O belo e afetivo texto de seu amigo Antonio Celestino, publicado no livro citado, confidencia que Raimundo relatou-lhe dificuldades emocionais iniciadas na infância de família modesta. Dificuldades infantis, representadas por incompreensões, agressões, desejos reprimidos, ações ou omissões, ausência de amor em casa ou fora dela ficam impregnadas na biografia do infante e pouquíssimas pessoas as superam. É a fase da vida em que somos mais fracos e, por causa disso e pela maldade humana de sempre, é quando certos adultos aproveitam para descarregar seu ódio em seres que, impotentes, os olham incrédulos e perplexos. É também a época na qual inconscientemente procuramos um modelo no qual possamos nos mirar e superar. Seu pai nunca exerceu qualquer fascínio sobre o filho. Talvez ambos estivessem paradoxalmente próximos demais pela mistura de sentimentos para se enxergarem, por isso, seu pai foi ao mesmo tempo tão grande que o filho não conseguia vê-lo e nem ser visto e foi também tão diminuto que parece desaparecer no horizonte da biografia do artista. Ele nunca compreendeu a sensibilidade e nem o talento do de quem habitava sua própria casa. Achava incompreensível e inútil o seu desejo de ir estudar belas-artes em Salvador e nunca aprovou a paixão de Raimundo por Carmem Miranda e menos ainda a sua escolha profissional. Foram essa paixão e essa escolha que, muito provavelmente, deixaram o pai envergonhado perante seus amigos e vizinhos em Feira de Santana. Pena que o velho pai não tenha vivido o suficiente para se orgulhar do filho que teve.
Conhecido ditado inglês nos assegura que “atrás de todo grande homem há uma mulher”. Raramente se pergunta qual mulher, mas, do ponto de vista psicanalítico e na maioria dos casos, ela é, pelo bem ou pelo mal, a mãe. Se se pensa o contrário é porque possivelmente o biografado não relatou e nem deixou registros para assegurar essa asserção. Foi assim com Ismael Nery, cuja mãe o construiu e depois o destruiu, segundo ele próprio declarava. Para compensar a fugidia e provável difícil figura paterna, Raimundo de Oliveira teve a mãe como suave e fundamental presença na sua vida. A diferença entre a mãe de Ismael e aquela do pintor baiano estava na dupla santidade desta como declarou seu amigo Edivaldo Boaventura. O primeiro atributo dela provinha do nome de batismo e o segundo da bondade com todos, em especial com Raimundo.
Mas o que o artista herdou da mãe não foi somente a bondade transformada em humanismo na sua pintura. Dona Santa era católica devota e transferiu sua crença para o filho, que fez das histórias do Velho Testamento a temática principal da obra que o consagrou pelo Brasil afora. Tal como Ismael Nery, deixou poucos trabalhos em comparação de outros contemporâneos que viveram mais e, por isso, produziram mais. Mas tudo que fez, foi santificado pela forma, pela paleta colorida, pelo ritmo, pelo equilíbrio e pela preocupação com a simetria da composição. A simetria é essencialmente barroca e cada quadro seu pode ser colocado como se fosse um altar no qual o espectador reverencia a paixão pelo conteúdo sacro, a paleta colorida, o amor pela composição, vendo e ao mesmo tempo rezando o que ele escreveu com tela, pincéis, cores e paixão: belas estórias de amor. Antonio Celestino declara que no seu ateliê havia um menorá, cuja presença ele nunca entendeu. Pintando sobretudo histórias do Velho Testamento, o candelabro provavelmente o lembrava a origem de todos que ele materializava nas telas. Sua pintura não é naïf, não é impressionista e nem expressionista. Nem de longe pretende ser cubista ou surrealista. Ela é mais fácil de definir pelo que não é, do que pelo que é. Ela é Raimundo de Oliveira, apenas isso, singela como o nome que assinava, omitindo o Falcão, seja por economia ou talvez porque reconhecia não ser necessário esclarecer ao espectador o que ele já era na arte. A um olhar de soslaio sobre uma parede acompanhada de quadros de outros colegas, sabemos que sua obra está lá, fazendo a mesma pergunta pessoal do artista, nos mirando e interrogando se foi visto, aceito e aprovado. E a resposta, mesmo daqueles espectadores que desconhecem a sua biografia e o reflexo dela em cada quadro, é de alguém que sente que está defronte de artista pictórico e literário: um narrador que conhece seu texto com as palavras nos lugares exatos, sem repetir um detalhe, literalmente pintando um longo texto bíblico com as matizes que somente as belas histórias contêm.