Imagino que nenhum sociólogo tenha feito qualquer estudo comparativo entre as pessoas nascidas na década de 1940 e aquelas seguintes. Imagino também que se fizesse, descobriria que todos os primeiros são partes de uma geração brasileira de bravos guerreiros da vida, em comparação com aquelas mais jovens, menos preocupadas em sê-los. Com a designação "guerreiros" refiro-me às determinações, às tenacidades, às forças físicas e intelectuais e como seus integrantes encararam bravamente as vicissitudes da vida. Se se graduaram em engenharia, boa parte tornou-se bem sucedidos empreiteiros ou construtores. Se foi em direito, são juizes, promotores ou célebres advogados a caminho da aposentadoria. Pretendendo-se pintores, não se arvoraram em se dizerem "artistas" e a cobrar caro pelos seus primeiros trabalhos. De forma modesta, declararam-se "pintores", sabendo que a denominação "artista" pertence ao outro. Aguardaram com paciência para serem conhecidos, reconhecidos, celebrados e a formarem um acervo artístico e um patrimônio pessoal. A vida de quem optou por atividade cultural é prazerosa, mas tem seu lado negativo de ter que aguardar anos, se angustiando com a espera do reconhecimento e a conseqüente falta de dinheiro para sobreviver dignamente. No Brasil, cultura não fatura ou, se fatura, fatura pouco. Que o digam músicos, pintores, escritores e outras atividades intelectuais nas quais são necessárias décadas para haver recompensas financeiras.
Penso que essa determinação de ser guerreiro da vida tenha se originado na gravidez da geração de mães angustiadas pelas inseguranças pessoais e políticas daqueles anos de um mundo em guerra e as suas transmissões inconscientes para os nascituros. É possível que estes se tornaram mais combativos por que toda a angústia paternal, a incerteza frente ao mundo que viria quando o conflito mundial terminasse, a insegurança da mãe ao pensar no futuro dos filhos e a tenacidade dos pais em superar esse período, os tenham tornados mais audazes, mais devotados à vida e mais trabalhadores que a geração das décadas seguintes. Os exemplos estão espalhados pelo Brasil afora para percepção da avassaladora diferença sentida pelos pais que têm filhos nascidos nas últimas três ou quatro décadas. Qualquer psicanalista sabe que a adolescência hoje se estende até os 35 ou 40 anos de idade, em especial, entre a rapaziada.
Wanda Pimentel é uma dessas guerreiras nascida nos meados dos anos 1940, uma pintora de cuja tenacidade, talento, competência no que faz e a certeza do que queria fazer de sua vida está estampada na sua biografia como artista e no seu acervo pictórico legado ao nosso país. É pouco provável que ela seria tão brilhante quanto é se fosse da geração gerada nos anos 1970 ou 1980. Nada contra essas duas, sobretudo dos artistas, mas a tenacidade daquela descrita no primeiro parágrafo é, de longe, muito maior do que as gerações seguintes.
Wanda começou a pintar em torno de vinte anos de idade e, percorrendo o caminho dos talentosos, veio do figurativo até atingir a simplicidade e a simplificação do abstrato atual. É este o caminho que se espera de todo artista consciente de uma trajetória a tomar anos de sua vida. Por certo, ela não é escritora, mas suas linhas na fase atual são impecáveis. Além disso, sua habilidade de ver coisas artísticas nas quais ninguém ou muito poucos de seus colegas de paleta viram, a fazem uma pintora de olhar especial. Refiro-me à sua sagacidade de transformar objetos caseiros simples, comuns em lares nos quais mães eram criaturas prendadas e ganhavam algum dinheiro trabalhando em casa, como uma máquina de costura, gavetas de armários abertas, tesouras e fitas métricas, ferros elétricos, áreas de serviço de casas ou apartamentos com varal de roupas penduradas, um terno masculino ou uma sombrinha molhada e solitária, em obras de arte. Há um sentimento afetivo nesses quadros, uma certa nostalgia, além de um sofrido humanismo; talvez sejam lembranças encobridoras ou recalques autobiográficos, cujos sintomas aparecem de forma sublime. Há mistérios em cenas nas quais sente-se que alguém trabalha na costura, mas a artista mostra nos seus quadros apenas um onipresente e misterioso par de pernas, ora balançando os pedais da máquina com os pés de uma operária, ora são pernas que, na sua pintura de conteúdo tão doméstico, toma o lugar da repetição literária na poesia. Se suas pinturas fossem contadoras de casos, relatariam estórias de mulheres trabalhadoras e outras ricas e elegantes. Estas expõem para as suas amigas aquilo que as primeiras costuraram. Quem acompanha novelas pela televisão Globo, por certo, reconhecerá seus trabalhos por intermédio de Helena Roitman (Renata Sorrah) que vivia seu personagem como pintora na novela "Vale Tudo". Todos os quadros de Helena naquela novela eram de Wanda Pimentel.
E nem são somente objetos caseiros a formar suas composições de cores cuja limpeza também é impecável. Moderna como qualquer tecnólogo atual, pinta um painel de automóvel fabricado em uma década de sua juventude, com a presença de outro sensual par de pernas, acompanhado de fumaça de cigarro, a despertar a curiosidade do espectador. Naquela década, automóvel, mulher e cigarro faziam um conjunto que apimentava a curiosidade de todos e dava o que falar. O mistério de seus quadros atiça o interesse do espectador, fazendo-o imaginar o que há atrás de cada porta, peça sempre presente em seus trabalhos. Há neles ainda um aspecto político de uma época de muita repressão política e cujas portas de cômodos policiais, quando fechadas, não abriam mais. É artista preocupada com as cores complementares e o número de ouro, dois itens formadores de composições equilibradas e que, infelizmente, vários pintores desconhecem ou acham, sem razão, desnecessários na arte contemporânea. Não são somente esses dois detalhes a constituir sua carreira de aguçado olhar, construindo uma carreira intimista e pessoal. Uma pintura de uma maçaneta ou uma fechadura na porta denuncia o quanto cada uma delas, se pudessem, contariam de segredos não revelados em locais, famílias ou outros grupos. Mas tal como as portas, sua pintura é silenciosa. A fechadura, a porta entreaberta e o imaginário espaço por trás delas são um convite para o espectador entrar no mundo geometrizado de Wanda, monocromático ou colorido, certo de que esse conjunto pictórico forma um indecifrável mistério. Se entrar nesses espaços internos, é provável que encontre uma escada de alvenaria ou outra de madeira com linhas que formarão sua simplificação futura. Qualquer uma delas o levará para outro local tão misterioso quanto o primeiro, nessa busca contínua que faz o colecionador ou o espectador interessado e sensível, tentar solucionar o mistério insolúvel da boa arte. Há obras nos quais o preto, essa ausência de cor, é cor íntegra no conjunto. Assim como Degas gostava de colocar uma cadeira no primeiro plano de seus quadros, convidando o espectador para se sentar e ver o espetáculo das bailarinas...e seus óleos, Wanda deixa a porta entreaberta, convidando o espectador para entrar e desvendar o interior de um cômodo escuro e invisível.
Sua série invólucros é outro exemplo de que muito poucos artistas pensaram em pintar. São linhas formando o desenho de uma caixa para embalar o que o leitor imaginar, com detalhes de parafusos bem desenhados que deixam claro a intenção da artista na titulação da fase ou são apenas linhas brancas sobre um fundo preto, formando o objeto e um novo caminho da simplificação. Tal como o cômodo da porta entreaberta que nem sabemos existir, cabe ao espectador imaginar o que há dentro desses invólucros parafusados.
Sua última fase (2011) Memória é, descaradamente, autobiográfica, não somente pelo título, mas pelo seu conteúdo. Sua escultura de um coração cravado com vários alfinetes, capa de livro sobre ela e seus trabalhos, demonstra a sua dificuldade dos últimos anos frente à doença de diagnóstico difícil e prognóstico esperançoso. Outra parte dessa fase mostra várias caixas-objetos, como se fossem telas pintadas de preto e nelas a simplicidade de algumas linhas brancas, como se fossem moldes de costura em giz e uma concreta tesoura pronta para ser usada. É uma corajosa auto-análise, regredindo a lembranças de infância que deve ter sido dura, mas feliz. Fica clara a sua trajetória pessoal do que ela foi no passado e do que é hoje: uma artista completa. O que lhe ocorreu no intervalo de tantos anos de luta foi uma metamorfose representada pelo bicho-da-seda presente em suas caixas-objetos, que de um simples casulo, se transforma em mariposa, passando pela produção de um dos tecidos mais belos. Aliás, a palavra tecido traz na sua etimologia o mesmo que texto, tantas são as quantidades de linhas a formar uma peça, tal como na literatura, uma grande quantidade de linhas escritas foram um conto, uma estória ou um romance. Toda pintura é também um texto e, tal como na literatura, é preciso saber lê-la para compreender o que ficou subjacente na composição.
O belo livro sobre ela, escrito por Frederico Morais e Vera Beatriz Siqueira, expõe toda a beleza de pinturas e desenhos que construiu uma trajetória de artista consagrada pela pertinácia, garra, determinação, talento e beleza. Wanda e o livro chegaram para ficar.