Emeric Racz Marcier (1916-1990), além de pintor brilhante, era especialista em Picasso, com tese defendida em 1938, na Real Academia de Belas Artes de Brera, em Milão, artista de quem era admirador incondicional. No ano seguinte, fundou ateliê em Paris. Em 1940, com a II Grande Guerra já em andamento, seguiu para Lisboa a convite de Maria Helena Vieira da Silva e de seu marido Arpad Szenes, ambos pintores atuando em Portugal. Da capital portuguesa foi uma travessia para o Brasil, com carta de apresentação para Mário de Andrade, Portinari e Jorge de Lima, brasileiros que dispensam apresentações. Sorte nossa ter amigos portugueses com visão de lince como o casal. Marcier fixou residência no Rio de Janeiro onde morou na Pensão Roma e depois naquela de Djanira Motta e Silva, que se interessava pela pintura e se tornou a artista que hoje conhecemos. Ela era dona de outra pensão na qual vários pintores se hospedaram na década de 1940 e para onde Marcier se mudou, sempre preocupado onde caberia sua obra-prima "A Crucificação", naquela ocasião ainda em fase de elaboração.

Ali conheceu literalmente todos os intelectuais vivendo na Cidade Maravilhosa: escritores, poetas, jornalistas e pintores, todos de uma geração de brasileiros brilhantes e que nos honram com seus trabalhos. O Rio de Janeiro é sempre um amor fulminante, mas, como em toda paixão, há um momento em que se corre o risco de não vivermos o encanto dos primeiros dias de paixão, seja por que descobrimos uma nova, seja por que descobrimos no país paisagens que nos falam com a intimidade de amigos de infância. Pois foi viajando por Minas Gerais a serviço da revista "O Cruzeiro", que Marcier descobriu o barroco mineiro, o céu, a luz e as cores das nossas cidades históricas e, em especial, por Barbacena, tal como Guignard havia descoberto e se apaixonado pelas de Ouro Preto. Nosso barroco e nossas cidades falaram no ouvido do artista e ele caiu de amores pela conversa, deixando-se seduzir pelo que elas traziam consigo. Ele morou anos em Barbacena, no mesmo sítio que se transformou em museu em sua homenagem. Entre tantas obras executadas nessa cidade, há um painel imenso "Céu de Barbacena", agora em conhecida coleção carioca, uma obra-prima digna de qualquer museu e que merece especial citação.

Como todo bom pintor, Marcier criou suas próprias cores e, ao primeiro olhar, é possível identificar seus trabalhos pelo uso frequente do ocre, sempre de forma magistral em óleo ou em aquarelas. Ocre é uma cor perigosa de trabalhar por que, mal utilizada, deixa o registro de sujeira na tela. Aplicando-a com bom gosto e arte, acompanhada de outras cores vivas, Marcier criou e marcou um estilo próprio nas paisagens e figuras humanas, em especial, nos retratos e nus femininos deixando nestas uma atmosfera sensual e provocadora. Na maioria de textos sobre ele e suas obras, os autores ressaltam sempre que elas são sombrias. É verdade. Elas são prováveis reflexos de uma vida interior cheia de dolorosas vicissitudes vividas e relatadas em livro, hoje esgotado até em sebos, e cujo título dá ideia de sua vivência pessoal "Deportado para a Vida". Essa sobriedade pictórica tão expressionista ocorre com mais frequencia nas paisagens de Ouro Preto e menos nas de Tiradentes e São João Del Rey. A primeira é exemplo clássico de como é o barroco mineiro: fechado, triste e oprimido como era o homem barroco. As duas últimas cidades têm arquitetura mais leve, como pode se comprovar hoje, sobretudo na levíssima cidade de Tiradentes. É ainda provável que ele se identificasse com as cidades de Minas e projetasse nas telas o sentimento interno descoberto nas suas sombras. Em casos especiais, como o atual Museu da Inconfidência, deixou claro nas telas como ali foi, no nosso passado histórico, um local terrível, um somatório de barroco mais prisão. Em qualquer circunstância, suas pinturas têm o silêncio cerimonioso de um belo farol isolado.

Mas Marcier era um homem do mundo e, por isso, o leitor encontrará outras obras retratando marinhas, figuras humanas, naturezas-mortas e paisagens de várias cidades do mundo, incluindo Roma, Veneza, Paris, interior da Itália e outros locais europeus. Suas obras vão das paisagens deslumbrantes dessas cidades, percorrem as mineiras e chegam a cenas e figuras sacras do Novo Testamento, os célebres nus femininos, retratos e terminam nos autorretratos, muitos autorretratos. Estes são encantadores. O mercado de arte os conhece em óleo sobre tela ou em aquarela, quando o artista já estava idoso, com longas barbas brancas, rosto de intelectual romeno e de homem que pagou preço alto por suas conversões.

A primeira delas foi aquela pela pintura, época na qual a arte, esse objeto de desejo, era oferecida a um povo brasileiro cheio de necessidades. Oferecer desejo a quem tem necessidade é uma quimera comercial ímpar. Por isso, as vendas eram poucas e vendidas para amigos que sabiam do seu valor, fato a ocorrer nos primeiros anos de sua permanência no Brasil e com a maioria de seus contemporâneos. Como o desejo interno é maior que a necessidade, o mineiro-romeno apaixonado por Barbacena, não deixou o grito interno ser abafado. Sabia ser destinado a ser pintor e artista talentoso. Jamais largou essa atividade para se beneficiar de algum lucro imediato em outra atividade.

Marcier tornou-se amigo de Mário de Andrade e este era católico praticante e amigo dos padres dominicanos do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte. Convivendo com eles, Marcier fez sua segunda conversão. Tornou-se cristão e católico, algo mal visto pela comunidade judaica, família da qual o nosso herói era oriundo. Marcier passa, então, a pintor as cenas do Novo Testamento, da vida de Jesus Cristo, sobretudo, várias via cruci e imagens de santos, conteúdos imperdoáveis aos olhos da comunidade judaica. Em Belo Horizonte, Emeric deixou painel sacro em afresco, técnica da qual era mestre absoluto, no bairro da Serra, na antiga residência dos mesmos padres dominicanos, "Encontro com Emaús", restaurado em 2009 depois de anos de abandono. O resultado daquela sua ousadia e dessa última conversão se reflete até hoje, pois suas obras são semi valorizadas, diminuídas comercialmente se comparadas ao seu valor artístico e aos seus prestigiados coevos. O desinteresse da comunidade judaica pelos seus trabalhos por causa dessa conversão, por certo, contribuiu para esse fenômeno comercial. Como a arte é filha do tempo, ele voltará, pois é grande demais para ficar submerso às vicissitudes religiosas da vida.

Minas Gerais deve muito a vários de seus filhos ilustres e talentosos. A Emeric Marcier deve a edição de um livro no qual ficará registrado o acervo de um artista que nasceu na longínqua Romênia, viajou pela Europa, ficou muito tempo no Rio de Janeiro e tinha preferência por Barbacena, em Minas. Morreu "de coração", em Paris, causa mortis e local como convém a todo artista, deixando sua marca no Brasil e, em particular, em Minas, local onde se tornou um artista universal.

 

(*) Psicanalista. Integra a ABCA e a AICA.

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