Aos interessados em pintura, escultura, aquarela ou desenho e, em especial, aos apaixonados por certa arte contemporânea na qual a proporção áurea, cores e linhas há muito desapareceram, informa-se que o caminho do pós-moderno passa por um retorno prévio ao antigo, ao clássico, única base consistente para um recomeço, tal como o figurativo é fundamento para o abstrato. Sem essa base, corre-se o risco da confecção trágica de obras sem apoio na milenar estética. Àqueles convencidos de que esta não se aplica mais aos trabalhos artísticos – e há até professores informando isso aos seus crédulos alunos –, é preciso esclarecer que as gerações nascidas no século 20 usufruíram dela e ninguém nele criou algo capaz de substituí-la. Cada novo movimento da arte sempre teve apoio na estética e em postulados teóricos e, não raro, em bases filosóficas, requisitos inexistentes em algumas manifestações contemporâneas. Não se prega aqui a apologia da paralisação da arte, mas é fundamental aprendermos a arrumar a mesa já posta, antes de desarrumá-la.

Miguel Gontijo pertence à categoria daqueles que aprenderam tudo sobre a técnica de desenho, pintura, aquarela e de objetos de arte contemporânea, todos confeccionados com o apuro de quem nasceu reconhecendo mesa bem posta e ainda sabendo colocá-la. O artista de Santo Antônio do Monte faz parte simultaneamente de dois grupos. O primeiro é o daqueles talentosos e quase desconhecidos neste país que insiste em tratar mal seus filhos ilustres. Por “tratar mal” refiro-me à demora dos colecionadores, marchands e museus em descobrirem a sua arte tão grande quanto o país. O segundo é o grupo de artistas que, há muito, entendeu a consistência da base citada acima. Por isso, seus originais trabalhos fazem citações do clássico, adicionando neles as contribuições das escolas de pintura surgidas depois do impressionismo, até chegar na originalíssima e própria criação, constituída de uma mistura do que ele viu, viveu, estudou, aprendeu, assimilou e nos devolve com a grandeza reservada aos escolhidos dos deuses. Sua pintura tem literalmente de tudo exigido na boa composição pictórica. Como o seu trabalho é requintado na riqueza de detalhes, é possível que o espectador pouco familiarizado com o fantástico demore um pouco para vê-los e senti-los na sua importância e no seu mundo de mistérios. Passada a fase inicial, o mesmo e sensível espectador se encanta com os trabalhos. O leitor poderá comprovar essas assertivas visitando a exposição no Espaço Cultural da Cemig com o irônico título “Armarinho São Miguel”.

Historiador por formação acadêmica e artista por chamamento divino, Miguel Gontijo faz troça com a política internacional contemporânea. Iraque e a sua invasão por soldados norte-americanos e as fotos desse acontecimento, transmitidas e reproduzidas em todos os jornais do mundo, provas contundentes de marines tripudiando sobre o inimigo derrotado, são temas recorrentes dessa exposição. Ser colega de formação acadêmica do presidente americano autoriza Miguel Gontijo a colocar Bush num dos quadros no qual há um rei jogando cartas, imaginando-se possuidor de um imbatível royal straight flush no jogo bélico no país das Mil e uma Noites. O engajamento político de Miguel não está pra lá de Bagdá, como se dizia nos anos 1970, mas aqui mesmo no uísque “envelhecido 12 anos”, analogia feita ao menino abandonado da mesma idade, detalhe que nos faz compreender a polissemia das três palavras. Miguel segue se apropriando de uma idéia contida num dos quadros de Magritte, no qual o artista belga pinta um cachimbo e esclarece “ceci n´est pas un pipe” , e nos informa que “isto não é um pato”, e o associa ao presidiário, ao pivete, à mamadeira, à formicida e aos seus modos de usar.

Cheio de lembranças de infância, o pintor registra melhoramentos no quadro O artista quando jovem e, nesta fase da vida, é alfabetizado pela Cartilha Proença, se auto-retratando assentado no tamborete usado por Vermeer. Melhoramentos é também o nome da editora de Monteiro Lobato, que, tal como o artista holandês, nasceu fora de seu tempo, sendo, por isso, tão incompreendido. Vermeer já foi resgatado da camada arqueológica da história da arte e é hoje nome mais que consagrado. Quanto a Monteiro Lobato, ele e a sua obra nacionalista precisam ser revisitados para compreendermos a grandeza dos compatriotas talentosos. Miguel continua a sua ironia com a arte e alguns “artistas” que a imaginam possível na produção fecal. Daí o motivo da reprodução, como elemento de um dos seus quadros, da latinha contendo a inacreditável “Merda de Artista”, hoje depositada na Tate Gallery de Londres, e de ela estar cercada com a apropriação de obra de Henri Matisse e com textos árabes de livros sagrados. São dois elementos confirmadores do talento humano e eles nos informando que os museus se destinam a peças como essas e nunca a merdas de artistas, elementos se contrapondo ao rosto de criança cândida pintado de forma acadêmica no vaso e bacia de porcelana, também partes da mesma composição.

As obras de Picasso e ele próprio são motivos incluídos em alguns detalhes dos acrílicos expostos, paixões adicionadas aos sarcasmos exibidos em obras de Duchamps. Marcel e Picasso são inspirações para novas ironias e cumplicidades, tal como fez o francês quando propôs sua industrializada “fonte” como obra artística e, para azar de todos nós, imortalizada por seus contemporâneos que não entenderam o irônico recado do pintor. A lâmpada do mural Guernica, símbolo da ciência, essa construtora e a grande destruidora no século em que viveu o artista espanhol, é outro tema recorrente nos quadros de Gontijo, assim como lâminas e números, símbolos a serem desvendados pelo espectador.

Com o seu talento, Miguel Gontijo transforma qualquer traço em belo desenho, passa às apropriações e chega às lições do cotidiano contemporâneo, representado pela nova norma pós-moderna de vivermos deprimidos e angustiados, receitando Lexotan ou o sal de frutas Eno, único capaz de combater azias intelectuais espalhadas num mundo que começa a valorizar a ausência da estética na arte. As embalagens de Lexotan e Eno são pintadas com a força do hiperrealismo, contestando soluções medicamentosas para a nossa falta de humanismo neste novo mundo neoliberal.

Os elementos de seus quadros têm o mesmo registro de obras literárias, como uma escrita ou um novo código. Mas o espectador que os desconhece não deve imaginar que, para perceber e sentir a beleza de seus quadros, é preciso aprender uma nova língua estrangeira ou decifrar uma esfinge. O aprendizado ocorre no primeiro olhar de soslaio sobre as pinturas, que incomodam pelo seu mistério em composições revestidas de ritmo, tensão, equilíbrio e unidade, renovado a cada nova mirada. Miguel Gontijo, tal como um escritor consagrado, tem estilo reconhecível à primeira leitura de qualquer traço.

O leitor-espectador encontrará um auto-retrato dele em cada uma de suas telas. Não se imagine encontrá-lo como ele é na vida real, a simpática figura humana quase careca, magreza de adolescente, óculos de intelectual e ares de eterno curioso. Ele pode ser encontrado num canto do quadro como o cão dócil ou feroz ou ainda como um crítico mordaz, se opondo ao sistema e decretando o velho inseticida Detefon como o melhor meio de lidar com políticos à venda no Armarinho São Miguel, com os seus preços e condições de pagamentos fixados em códigos de barras. Em outras composições, esse auto-retrato existe, mas ainda não foi revelado, contido na embalagem de fotos da kodak. Quando Miguel recebe os espíritos divinos dos surrealistas nos seus pincéis, deixa nos seus trabalhos um estranho e incomodativo mistério. É preciso encontrá-lo e, a partir daí, desvendar uma pintura ainda não descoberta pela maioria dos colecionadores brasileiros e pelo incompreensível mercado de arte.

 

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