Carlos Perktold
O leitor que não conhece Ouro Preto deveria ir imediatamente. Não precisa correr: a velha cidade não vai acabar e nem será alterada na sua arquitetura, mas é imperativo que todo brasileiro de bom gosto e com um verniz cultural conheça a Vila Rica dos inconfidentes e de Guignard.
Foi a propósito desse pintor que resolvi visitar outra vez a cidade em mês de inverno úmido e uma cor indefinível e linda estampada nos casarões a cobrir de alegria qualquer ser sensível. Lá pelas “cinco de la tarde” o sol “bate” nas montanhas que a rodeia e agindo como se fosse um rebatedor fotográfico, cobre a cidade com uma luz suave que deixará o leitor apaixonado como ela fez com o velho artista. A cidade está banhada de luz, como a maquiagem de uma velha senhora ou ainda como se fosse uma estrela em um palco com um foco sobre ela, igual a uma atriz consagrada de uma peça teatral que começa no século 18 e segue até nossos dias com público a aplaudi-la indefinidamente. As ruas são tortuosas e cheias de casas antigas a confirmar que o bravo homem do século 18 sabia que procurava ouro e, ao deixá-la pra nós como hoje se encontra, fez dela um presépio no qual faltam apenas a Sagrada Família e os reis magos.
Pois foi nesse ambiente luminoso que decidi fazer uma visita ao túmulo de Guignard no cemitério junto da igreja que fica logo ali na praça. Subi as escadas, encontrei o portão encostado, mas aberto e entrei. Procurei pelas sepulturas com um nome estrangeiro que mostrasse que ali se encontra sepultado o corpo do velho mestre dos óleos sobre madeira, mas não o encontrei. Há muitos nomes portugueses de tradicionais famílias de Ouro Preto e de Minas, famílias que habitam o local há quase três séculos, sempre a andar pelas encostas e trilhas a comprovar que são pessoas de pernas firmes no chão de Minas Gerais.
Voltei-me então para uma grande sepultura e nela encontrei o nome do pintor que tanto amo. Ah, se eu o tivesse conhecido em vida. O tanto que ele não teria sofrido, nem é bom pensar. Fico a imaginar o que impedia meus conterrâneos de compreender a pintura de alguém tão bom, implorando para ser reconhecido com a compra de um quadro então muito barato.
“Compre, é muito bonito”, dizia ele. Não é bonito, Guignard. É lindo. Certificamo-nos hoje, muito antes dos cem anos que você imaginou necessário para seu reconhecimento.
Fiquei ali em frente da sepultura do velho mestre, rezando, pedindo a Deus que o conserve no mais privilegiado lugar do céu, junto com Leonardo, Cezanne, Monet, Boticelli que ele tanto amava, recebendo e dando aulas da história da arte e dos artistas que se imortalizaram neste Planeta Azul.
Lá pelas “cinco de la tarde” esperei algum tempo para ver se aparecia alguém para me acompanhar nas rezas e pedidos, mas não apareceu ninguém. Resolvi então que era hora de sair, deixando o velho mestre sozinho novamente. Dirigi-me então ao portão e surpresa! Encontrei-o trancado. Olhei para o grande cadeado que o protegia de novos visitantes e me dei conta que eu estava preso no cemitério, junto com várias sepulturas incluindo a do mestre. Antes de trancá-lo, o administrador local não verificou se havia algum visitante, tão raros eles são e trancou-me. E agora, o que será de mim? Passarei a noite com os amigos fantasmas do século 18? Guignard aparecerá e pintará meu retrato como sempre imaginei? Sentei-me na beirada de uma sepultura vizinha dele a pensar como sair dali sem precisar saltar o muro como se fosse alguém que, saindo do caixão, se recusava ser sepultado. Por certo, eu assustaria a cidade inteira e ainda criaria uma nova lenda urbana na velha cidade.
Passados vários minutos alguém veio visita a sepultura de um parente e se deu conta do fechamento do lugar e a certeza de me ver em dificuldade. Conhecedor do gerente local, teve a gentileza de ir à sua casa e me libertar, não sem antes se certificar que eu estava vivíssimo. Com Ouro Preto e Guignard os acontecimentos são imprevisíveis.