O leitor, por certo, já ouvi falar de Damien Hirst, um inglês esperto que resolveu enriquecer se intitulando artista e produzindo “obras” que qualquer pessoa de bom senso duvidaria ser comprada por algum colecionador com dois neurônios funcionando. Não apenas ele enriqueceu enormemente com elas, como virou celebridade. Para chegar neste lugar, ele recebeu o “nihil obstat”, a benção e o dinheiro de Charles Saatchi. Este é um ex-publicitário, atual marchand e milionário colecionador britânico, que decidiu dar oportunidade aos “artistas” iniciantes que não têm talento, não sabem desenhar e nem pintar, desconhecem técnicas pictóricas e nunca ouviram falar em ritmo ou equilíbrio em pinturas ou esculturas mas que, aos olhos dele, produzem algo que ele considera arte. Saatchi comprou muitas peças desses “artistas” por preços baixos, promoveu todos os novatos que pôde e, depois de muito marketing e com seu prestígio de definidor do que é arte, revendeu as peças por milhões de dólares, colocando seus autores no topo do chamado mercado de arte contemporâneo e ele próprio se enriquecendo mais ainda.
Damien Hirst foi um deles, em especial quando vendeu para Steve Cohen por 12 milhões de dólares um tubarão colocado numa caixa de vidro enorme, cheia de formal. Em pouco tempo o animal não resistiu ao produto que deveria conservá-lo e começou a se despedaçar dentro da caixa. A imprensa, que havia noticiado a venda inicial, calou-se ante a segunda morte do predador. Damien, como bom comerciante e capitalista, garantiu seu produto, embalsamou outro animal, não devolveu o dinheiro, o colecionador ficou calado e tudo ficou por isso mesmo. Todos os envolvidos deveriam ter visto o despedaçar do animal como uma metáfora da arte que Damien ofereceu, oferece e Saatchi endossa, mas o marketing deles tem megafone de milhões de decibéis, quer dizer, de dólares. Além disso, ele jamais desistiria de ser “artista” apenas por causa de um detalhe insignificante como a autodestruição de sua obra. É provável que o esperto pescador tenha visto o desmanchar de sua obra como um equivalente do craquelê nascido nos óleos sobre telas das pinturas renascentistas ou até mesmo nos quadros modernistas brasileiros dos anos 1950. Qualquer obra precisa de manutenção e, ocasionalmente, restauração. Com a pressa globalizada na qual vivemos, poucos anos hoje equivalem a séculos da Renascença e o despedaçar de obras deve ser visto e esperado com a mesma rapidez. Esse deve ter sido o pensamento de Hirst quando foi obrigado a garantir seu produto.
Apesar de todo seu dinheiro e do seu toque de rei Midas capaz de transformar um desconhecido “artista” em celebridade em poucos dias, Charles Saatchi anda perdendo prestígio como formador de opinião. Colocado no ano passado como a 14ª opinião mais importante do mundo das artes pela revista Art News, acaba de cair para 74ª posição. Ele está preocupado com seu novo lugar e quer retomar o antigo. Para isso, anda promovendo buscas de novos artistas e promovendo concursos na tentativa de descobrir outros Hirsts. No mais recente deles, um dos participantes apresentou um trabalho que consistia num circulo de cadeiras caídas. Perguntado sobre o que significava aquilo, o “artista” explicou que “era sua intenção de filtrar as imagens por este processo de experiência humana”. A verborréia deixou até mesmo Tracey Emin, integrante do júri, horrorizada. Bom sinal. Tracey é uma jovem senhora inglesa que nos deixa perplexos pelo que faz e vende como arte. Ela esperava ganhar o Prêmio Turner de 1999 com uma “obra de arte” de deixar o leitor atônito. A “obra” consistia na sua própria cama toda desarrumada, coberta de lençóis amarrotados, garrafas de bebidas vazias espalhadas pelo quarto, preservativos usados e espalhados pelo chão, resultado de suas transas com vários homens durante dias. Ela até hoje está indignada e ressentida de não ter levado o prêmio. Mas, vingadora maligna, vendeu o erótico conjunto para o mesmo Saatchi por cento e cinqüenta mil libras esterlinas. Bom pra ela. Seu site é propositalmente construído e redigido para “épater les bourgeois” mais que qualquer outra coisa. Ela consegue, tamanha é sua coragem e cara-de-pau. Tracey declara que faz arte autobiográfica.
Outra mulher oportunista é Orlan, madame francesa que se submete a cirurgias plásticas. Toda a sequência do procedimento médico, a partir de sua saída de casa, a chegada e a recepção no hospital, os cortes pelo rosto, sua face enfaixada, a exposição dos hematomas e toda sua recuperação pós cirurgica, são fotografados e as fotos são vendidas em galerias européias e americanas como obras de arte. Tudo nela é puro marketing; até seu nome foi criado por uma agência de publicidade. Ainda não lhe ocorreu engarrafar o tecido adiposo retirado de suas cirurgias e vendê-lo para as mesmas galerias. Por conclusão fisiológica, imagino que ela deixará de ser “artista” quando os médicos se recusarem a operá-la e não houver mais nada a ser fotografado.
Mas um outro “artista” chileno radicado na Dinamarca, Marco Evaristti, foi mais esperto que ela: ele fez as cirurgias da mesma forma, mas aproveitou as gorduras retiradas do seu corpo e as utilizou para fritar almôndegas num happening classificado de “arte”. Ele já demonstrara antes todo seu talento, vendendo seus próprios excrementos “recobertos com folhas de ouro e incrustados com moscas de diamante”, como informa Luciano Trigo no seu livro A Grande Feira- uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea. Escrever sobre arte contemporânea, expondo a ruindade da maioria desses trabalhos e seu perigoso e lucrativo lado comercial, foi também objeto de Desconstruir Duchamp, de Affonso Romano de Sant´Anna, editado em 2003, reunindo textos publicados desde 2002 e O Enigma Vazio.
O livro de Luciano Trigo descreve coisas incríveis na história da arte contemporânea, que farão o leitor se arrepender do que faz profissionalmente, sentir-se cheio de talento e ter ânsias de sair correndo para se tornar “artista”. O “artista” Tim Patch, por exemplo, concorre ao prêmio Archibald, o mais importante da Austrália. Ele se diz pintor e executa suas pinturas com o próprio pênis. Se elas não fossem realizadas como são, ele não seria sequer citado no livro de Trigo e nem seus “trabalhos” teria algum interesse fora das cercas de sua casa.
O livro “A Grande Feira”, com seu acertado título, descreve os mecanismos de marketing capazes de criar “artistas” como Hirst, Orlan, Marco Evaristti, Tim Patch, Jeff Koons, Maurizio Catelan e outros, apresentando sua perplexidade perante certos novos-ricos e curadores de grandes corporações que, em busca de prestígios social e intelectual e desconhecendo o que é arte, investem quantias inacreditáveis em peças de duvidoso valor. Uma vez compradas, poucos conseguirão recuperar alguma parcela do dinheiro “investido”. Pior ainda, em breve esses compradores vão perceber pelos próprios olhos que são peças de qualidade artística ruim, pois elas começarão a incomodar o espectador pela sua falta de resistência. Trigo explica os meandros do marketing pelo qual o tubarão despedaçado custou dez vezes mais que o Abapuru de Tarsila, vendido por 1,3 milhões de dólares há alguns anos.
Para informação do jornalista e do leitor, um grupo de banqueiros e industriais paulistas já tentou comprar a obra de modernista brasileira de volta e ofereceram 30 milhões de dólares. O argentino, dono do quadro e do Malba -Museu de Arte de Buenos Aires, recusou. Ao recusar, alegou que a obra de Tarsila é a “Mona Lisa” do seu Museu e que turistas vêem de longe especialmente para vê-lo, tal como fazem quando vão ao Louvre ver a de Da Vinci. No Brasil ainda é preciso alguém vir de fora, valorizar, comprar e levar para o exterior e aí compreendermos o que tínhamos. Entre o tubarão despedaçado, autêntica “ideia 51”, expressão de Ferreira Gullar nos remetendo à cachaça do mesmo nome e relembrada no livro de Trigo, e o Abapuru de Tarsila há abissal diferença artística e intelectual. Atribui-se ao primeiro, por esforço de marketing, uma importância que ele não tem e, ao vendê-la para o exterior, atribuímos à obra de Tarsila uma desimportância que ela também não tem. Deixamos escapar para a Argentina a obra-prima que seu antigo proprietário e o próprio governo brasileiro, ao autorizar sua exportação, não perceberam.
É possível que os acólitos da arte contemporânea não deixem nem mesmo suas impressões digitais sobre a capa do livro de Luciano Trigo, tamanho é o ódio que têm de quem fala mal dela. Eles vão ignorar o livro, da mesma forma como ignoram os modernistas e os novos artistas que conhecem a técnica do desenho, da pintura e sabem o que é uma composição equilibrada e com ritmo. São os mesmos que têm horror dos artistas capazes de pintar um belo retrato, “a arte mais difícil”, como dizia Guignard, ou “quadros de colocar nas paredes”. E é igualmente lamentável que dentro desse mesmo grupo não tenha aparecido alguém publicando um livro intitulado “Por que os inimigos da arte contemporânea estão errados”, com argumentos tão convincentes quanto os do poeta e os do jornalista. Fica a sugestão.
Mas não são somente o poeta, nascido em Belo Horizonte e há anos radicado no Rio de Janeiro, e o jornalista Luciano Trigo que estão sozinhos nessa opinião. Demorou um pouco, mas gente do mesmo peso intelectual que eles, como Ferreira Gullar, declarou “uma bobagem” a arte de uma brasileira do Rio de Janeiro que fez um quebra-molas idêntico àquele de nossas ruas, mas confeccionada com paçoca de amendoim.
É importante esclarecer que, ao contrário do que dizem os inimigos daqueles que expõem essas fraudes artísticas, esses intelectuais não são contra a arte contemporânea, afirmação que os mesmos inimigos duvidam. Há obras contemporâneas lindíssimas e elas são e devem ser valorizadas. O que os escritores que duvidam da qualidade artística de muitas peças de arte contemporânea querem é demonstrar para o público a origem marqueteira de certas idéias que se tornaram inexplicáveis objetos artísticos, manipulados por alguns marchands, colecionadores e mercado de arte e aceitos por museus. Pior ainda, há casos de se repetir hoje como novidade aquilo que foi feito no início do século 20 ou nos anos 1950 ou 1960. Luciano Trigo, Affonso Romano Sant´Anna e outros querem encorajar o público a rejeitá-los, separando o que é produto de puro marketing, constituído de “artistas” sem talento, produtores de mercadorias efêmeras, mas tão dispendiosas financeiramente como uma obra de arte perene, daquelas executadas por talentosos artistas, mas sem marqueteiros para ajudá-los. Por isso, é preciso lê-los sem ódio e com a atenção voltada para os argumentos de difícil contestação.
Duas lamentáveis omissões estão contidas no livro de Luciano Trigo. A primeiro é a injusta ausência de citação de Affonso Romano ao longo do seu livro. O poeta está, desde 2002 publicando textos e livros nos quais demonstra com argumentos intelectualmente sólidos, as informações e teses que Trigo traz no seu. A segunda é que, aparentemente, faltou coragem ao jornalista citar artistas brasileiros, criadores de obras tão polêmicas quanto aquelas européias ou americanas e contestadas pelos próprios criadores. Nenhuma palavra foi dita sobre “O Porco Empalhado”, de Nelson Leirner, de cuja premiação ocorrida há anos o autor pediu explicações ao próprio júri. Há ainda uma montanha de “obras” e uma multidão de “artistas” que, mesmo juntos, não terão a metade do brilho da luz de um pirilampo e, no entanto, vendem caro e, ótimo para eles, enriquecem. Trigo tece comentários apenas sobre o pintor decorativo brasileiro Romero Britto, o Paulo Coelho das artes plásticas, hoje milionário com sua “arte”. Bom de marketing, Britto começa a ser aceito e a vender na China. Atacando o mercado chinês, brevemente ele será trilhardário, mas será sempre um pintor, jamais um artista que o tempo, essa categoria implacável conosco e com a arte em especial, consagrará. E o livro de Luciano Trigo será mais perene que a esmagadora maioria do que vemos hoje como “arte contemporânea”.