Carlos Perktold (*)

Madame Butterfly, ópera do italiano Giacomo Puccini (1858-1924) está baseada em uma novela de 89 páginas escrita por John Luther Long. Ele era advogado na Filadélfia (USA) e a publicou em 1897 num volume chamado The Century, republicado em outro livro no ano seguinte. Trata-se da triste estória de amor entre uma jovem japonesa e um tenente da marinha americana que se aproveita das facilidades oferecidas pela legislação oriental para se casar com a apaixonada gueixa. Logo após o casamento ele parte com o navio, deixando-a casada e com a esperança de sua rápida volta. Isso ocorre somente três anos depois e, para desespero dela, ele volta casado com uma americana. Ela, apaixonada e perplexa com a frustração de um amor infeliz, se mata.

 Luther tinha interesse real no Japão e na sua cultura, mas por motivos inexplicáveis escreveu, nesse texto, algumas considerações vistas como de mau gosto pelos leitores americanos e pela colônia japonesa. Cristianizar a jovem Butterfly, desagradando aos devotos das duas religiões, em especial aos budistas, foi a mais importante. Seu texto, como novela, perdeu o interesse literário depois de transformado em peça teatral e ópera e o seu nome foi sendo dissociado delas e desaparecendo na história dos dois espetáculos.

 Na época da publicação da novela, um certo David Belasco (1853-1931), escritor e produtor teatral que, mais tarde, fez sucesso na Broadway, viu na novela de Long uma situação e uma cor locais japonesas apaixonantes e a reescreveu transformando-a numa peça de um ato. As produções de Belasco eram famosas pela grandiosidade de seus efeitos teatrais, sempre mais importantes que os diálogos da peça. Por isso, ele ousou alterar parte da história de Long, provavelmente com a ideia de que as suas modificações funcionariam melhor no teatro. Incluiu, então, a morte de Madame Butterfly como parte do texto da sua peça. Esta cena, a partir daquele momento, se tornou numa das mais famosas no seu teatro e, posteriormente, da ópera. No texto original de Long, Butterfly apenas se fere quando descobre, na volta do marido, que ele havia se casado com uma americana e, em seguida, desaparece com Suzuki, sua criada.

Naturalmente, os textos funcionam de formas diferentes no teatro e na literatura. Como prova dessa assertiva, Belasco, na produção teatral de Madame Butterfly, dirigiu a famosa cena em que ela, seu filho e a sua criada aguardam, no alpendre de casa, a chegada do navio americano trazendo-lhe o marido ausente por três longos anos, deixando os atores olhando fixamente para o infinito durante quase catorze minutos. Este timing é incomensurável para uma única cena teatral sem ação e, se mal dirigida, por certo seria impossível de ser suportada pela plateia. Pois foi essa cena que mais impressionou Puccini, que não falava inglês, quando viu a peça com a atriz Evelyn Millard, no Teatro Duque de York, em Londres no verão de 1900.

Nosso inconsciente, sempre atemporal, requer um prazo não definido pelo calendário ideológico para elaborar aquilo que nos impressiona, e essa talvez seja a razão por que somente em março de 1901 o maestro, ainda pensando na cena decidiu transformar a peça de Belasco numa ópera. Pediu então a Giuseppe Giacosa e Luigi Illica, dois admiradores do compositor e seus colaboradores, que lapidassem o texto em prosa e o modificassem para versos, que ele, Puccini, os musicaria. A tarefa foi demorada e o projeto de transformação quase abandonado porque Giacosa se encontrava doente e a paciência do maestro era limitada.

 Durante o processo de criação da ópera houve dúvidas do compositor quanto ao novo conteúdo do texto poético. Assim, definir quantos atos deveriam constar dela, dividi-los ou não em cenas, incluir ou não alguns trechos foram tarefas angustiantes e de difícil decisão. Mudanças de toda natureza foram processadas ao longo da criação. A cena final do encontro de Madame Butterfly com o tenente americano cresceu e este passou a ter uma participação mais significativa, por receio dos criadores de que nenhum artista de renome, ao longo da existência da ópera, aceitaria o papel do tenente se ele fosse limitado apenas ao trecho existente no primeiro ato da primeira versão. A participação de B.F. Pinkerton cresceu e ficou como hoje a conhecemos. Em nenhuma ópera de Puccini o papel principal é depositado nos ombros de um único personagem como o é sobre os de Madame Butterfly. Ela é o esteio da obra-prima, sustentando a história e a música ao longo de mais de 130 minutos de pura beleza.

 A ópera, inicialmente musicada em dois atos, o primeiro de 65 minutos e o segundo de 80, teve sua noite de estreia no La Scala de Milão no dia 17 de fevereiro de 1904 e foi um retumbante fracasso. O relato daquela noite horrível está contido numa carta escrita por Ramelde Puccini, irmã do maestro, e dirigida ao seu marido Raffaello Fraceschini. Na carta, escrita às 4 da manhã daquele dia, ela se declara “mais morta que viva e nem sei o que escrevo, tamanha era nossa confiança no sucesso e agora a nossa perplexidade ante tanto fiasco”. A hostilidade da plateia foi tanta que Ramelde não assistiu ao segundo ato, abandonando o teatro antes do término do espetáculo.

 Depois do fracasso da estreia, Puccini, Giacosa e Illica, decidiram revisar toda a criação inicial. Dividiram o longo segundo ato em duas cenas com um intervalo e cortaram 11 minutos dele. Nessa mudança, mais peso foi colocado nas costas da personagem central. Na nova versão, Butterfly é uma mulher inteligente a representar o conflito entre duas civilizações, demonstrada, em especial, na cena protagonizada entre ela e o cônsul americano. Nela é evidente o contraste entre a antiga tradição japonesa, caracterizada pela firme posição da família em abandoná-la quando Butterfly renuncia aos usos, costumes e religião japoneses e a modernização do país, ratificada pela aceitação dos valores ocidentais, inclusive religiosos. "Esta é uma casa americana" diz ela ao cônsul, metáfora que se tornou realidade política décadas depois. Meses após essas alterações, a ópera reestreia com grande sucesso em vários teatros da Itália e se imortaliza.

O enredo da ópera: Estamos em 1904 no Japão, nos arredores da cidade de Nagasaki. Benjamim Franklin Pinkerton é um oficial da marinha americana, servindo no "Abraham Lincoln", como tenente. O navio está ancorado no porto daquela cidade. Em sua curta permanência em terra ele conhece Goro, um corretor de casamentos e imóveis que lhe apresenta a Srta. Butterfly, uma jovem ex-rica que se tornara gueixa por causa das vicissitudes da vida. Pinkerton é um típico marinheiro aventureiro, aproveitador e de caráter duvidoso que descobre certos costumes e legislações locais que ele julga vantajosos para si e deles se aproveita. Sua primeira descoberta, sempre risível a seus olhos, é que, pelas tradições japonesas, ele poderia alugar uma casa por 999 anos e, "a cada mês, anular o contrato" e assim, devolvê-la quando quisesse, sem ônus. Este prazo e estas condições eram e são impensáveis nos Estados Unidos, mesmo em 1904. Qualquer americano saberia dos riscos de um documento com esse conteúdo. Encantado, ele descobre também que o mesmo prazo e as mesmas cláusulas se aplicam a um contrato de casamento com uma mulher japonesa. Tal como a casa alugada, ela poderia ser devolvida para a sua família quando o marido não mais a quisesse. Goro lhe oferece então Butterfly, apaixonada à primeira vista pelo tenente. Assim, a casa é alugada e nela são incluídos a esposa e um grupo de empregados domésticos. O tenente Pinkerton, "sem saber se é amor ou capricho", levianamente, se casa com Butterfly que, para os padrões japoneses da época, ainda estava solteira na avançada idade de 15 anos. No Japão até o século XIX e os primeiros anos do século XX era costume os pais casarem seus filhos quando crianças.

 A jovem Butterfly, como seu nome demonstra, é presa frágil do corretor e do ianque insensíveis, que colocam a apaixonada jovem no lugar de um descartável brinquedo infantil. Repetindo o que, historicamente, o colonizador ocidental tem de pior quando em contato com outras culturas nas quais pode levar vantagem, Pinkerton, nas suas noites de núpcias, brinda com o cônsul americano não ao seu casamento com Butterfly, mas à futura esposa americana que ele terá um dia. Para ele, tudo com Butterfly será apenas uma mistura de prazer e negócios até a partida do navio. Capitalista acostumado à cultura ocidental e aos nossos riscos comerciais, ele ri de todos e dos costumes locais. Os nativos, julgando o americano pelo caráter e costumes japoneses, acreditam nele que faz e age de forma que seus anfitriões se visitassem os Estados Unidos, nunca fariam.Mesmo reconhecendo a fragilidade de Butterfly e sabendo, pelo cônsul americano, que ela acredita em tudo, Pinkerton faz o que ela mais temia: como se ela fosse uma borboleta, crava-lhe o alfinete de seu caráter, não a deixando escapar da sua armadilha preparada para durar apenas o prazo de permanência do navio no porto de Nagasaki. Ao partir, ele promete voltar. Ela ingênua, pura, apaixonada e feliz acredita e espera por três anos. Suzuki, a fiel criada e mais realista que ela, pergunta-lhe mais tarde “já ouviu falar de um marido estrangeiro que voltou"? A pergunta pode ser feita do ponto de vista de qualquer nacionalidade, mas há nela demonstração de percepções das realidades objetivas diferentes entre as duas personagens. O psiquismo humano tem mecanismos próprios de proteção do ego e, por isso, as situações nas quais estamos emocionalmente envolvidos são as de mais difícil percepção. Ódio e amor nos cegam da mesma forma. Protegemo-nos das dores de um sofrimento devastador com negação, sublimação, recusa e outros mecanismos de defesa capazes de amparar o ego. Ao longo da vida, entretanto, vamos aprendendo a lidar com as dificuldades da dura realidade e, por isso, indivíduos de estratos sociais menos abonados, aprendem de forma mais rápida a diferençar objetivamente a fantasia da realidade. Se acrescentarmos a este fato a distância afetiva do evento, melhor será a percepção. Para Butterfly, apaixonada e esperançosa, vivendo num mundo de fantasia e negação da realidade de três anos de ausência do marido, é difícil entender e aceitar que o tenente não voltará mais. Para Susuki, sem envolvimento com o tenente e habituada a uma dura vida de criada, é fácil compreender a complexidade do drama, escotomizado pela patroa e mostrar-lhe o que é tão claro: ele não voltará mais.

 Butterfly, desde o início do relacionamento com o tenente, renuncia ao seu Japão, sua cultura, sua religião e sua família. O tio dela, na ópera, aparece como um fantasma amaldiçoando-a pela ousadia de haver renunciado ao budismo, religião de todos seus ancestrais. Adotando a ideologia do marido, se ocidentaliza cada vez mais. Cristianiza-se e reza para Jesus o trazer de volta. Durante sua ausência, a crença de que ele voltaria é paradoxal e cruelmente alimentada pelo pagamento do aluguel da casa onde ela mora com dinheiro enviado pelo tenente, de quem Sharpless, o cônsul americano local, se torna procurador. Para Butterfly era a prova de que Pinkerton a ama e que voltaria. No decorrer deste período ela recebe proposta para se casar com um grande e rico senhor local e recusa a oferta, para desespero de Goro, que, como corretor, intermediava um novo casamento para Butterfly.

Depois de três anos Pinkerton volta casado e traz consigo a sua nova mulher, uma americana. Alertado pelo cônsul, ele se dá conta do grande amor que Butterfly lhe havia dedicado. Sente-se culpado e "cheio de remorsos" pelo que fez e se recusa a vê-la. Pior ainda, manda a esposa americana junto com o cônsul para reivindicar, em seu nome, a guarda do filho. Na cena final, na casa de Butterfly, ela está preparada para o ritual praticado pelas pessoas honradas de seu país, que não encontrando outro caminho para a solução de sua tragédia pessoal, se matam. Butterfly morre nos braços do insensível tenente americano.

(*) Psicanalista. Integra a ABCA, AICA e o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.

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