Nos Estados Unidos, talvez pela maior variedade de colonizadores, todo europeu ou asiático que adote a nacionalidade americana, sobressaindo-se ou não nos meios intelectuais ou artísticos, quando perguntado, responde que sua nacionalidade é “americana”. Billy Wilder, brilhante diretor de cinema, nasceu na Áustria e, emigrando para o país de Orson Welles, falava inglês com forte sotaque germânico e, apesar desses detalhes biográficos, será sempre um cineasta americano criador de filmes imortais. Aqui temos o mau costume de considerar o sujeito, mesmo aquele que chega no Brasil aos dois anos de idade, como brasileiro, mas adicionando sempre o lamentável “naturalizado”. Neste texto não quero correr o risco de perpetuar o que chamo de mau costume, atribuindo a Franz Joseph Weissmann (1914-2005), a nacionalidade austríaca. Quem morreu em julho de 2005 foi um importante artista brasileiro, talvez o mais brilhante de nossos escultores.
Filho de pais judeus criadores da famosa carroceria da marca Ciferal, fabricada em Santos e vista em caminhões por todos os brasileiros que viveram os anos 1940/1960, Franz não se interessou pelos negócios do pai, preferindo atender a um chamado que vinha de dentro de suas entranhas: pintar e desenhar sem cessar. Todo escultor precisa ser bom desenhista e a sua carreira de brilhante e bravissimo escultor começou nessas atividades artísticas, ainda longe da escultura que o consagraria para sempre.
É inevitável que todas as novidades surgidas após a criação do impressionismo, a escola que mudou a pintura e as artes plásticas para sempre por Manet por volta de 1860, fossem incorporadas à genética artística dos jovens talentos nas artes plásticas pelo mundo. As novas idéias, plantadas nas três instâncias da primeira tópica freudiana – consciente, pré-consciente e inconsciente –, passaram a ser elaboradas e desenvolvidas. Daí o progresso espetacular das artes no século XX, em especial a partir do cubismo. Ultimamente tem ocorrido um certo exagero entre alguns pretensos artistas, que imaginam não ser necessário o aprendizado da técnica do desenho, entendem mal o recado iniciado pelos abstracionistas e concretistas e criam horrores, mas isso é outra história.
Assim, antes da Revolução Soviética e antes de Stalin destruir o brilhantismo da pintura soviética, ali se iniciou um movimento abstrato chamado construtivismo, criado por artistas locais como Tatlin e Rodchenko. Eles começaram a empregar nas suas esculturas materiais nunca utilizados antes, como vidro, plástico e aquele que seria definitivo para vários de seus seguidores: o aço. O construtivismo se espalha pelo Ocidente a partir de 1920 na pintura e no desenho e, pouco depois, na arquitetura. Nesta, a preocupação era a de registrar a funcionalidade da habitação, deixando de lado o elemento decorativo. A partir dessas novas concepções o suíço Max Bill difunde o concretismo, que, se apropriando das idéias inicias do construtivismo e do abstracionismo criado por Kandinsky e indo além delas, ratifica o movimento anterior com a criação de objetos, desenhos, pinturas e esculturas com imagens autônomas, sem qualquer semelhança com a natureza. Muitos artistas jovens receberam essas novas informações que, incorporadas, os conduziram ao mesmo lugar no qual outros já estavam ou chegariam. Daí a existência de obras de pintores e escultores cujos trabalhos, partindo no início de carreira de conteúdos e formas diferentes, no final da vida, se parecem tanto.
No Brasil, onde o modernismo começou a ser aceito apenas a partir de 1950, a primeira exposição de arte abstrata ocorreu em Petrópolis, em 1953, no Hotel Quitandinha. Dela participaram 23 artistas com 53 obras de diversas tendências e estilo, mas todos com conteúdo abstracionista. Antonio Bandeira, Fayga Ostrower, Ivan Serpa, Aluisio Carvão, Ligia Clark, Ligia Pape e Décio Vieira estavam lá. Como toda novidade, o abstracionismo foi aceito com hostilidade, mas foi essa exposição que abriu a perspectiva para o nascimento do movimento neoconcretista brasileiro, criado em 1959, elogiado pela crítica internacional e que contaminou até mesmo a nossa literatura.
Todos esses eventos, atividades culturais e exposições contaram sempre com a presença de Weissmann, que, reconhecido por Alberto da Veiga Guignard, chega a Belo Horizonte a convite do grande pintor em 1945 para ser professor de desenho, modelagem e escultura na “Escolinha do Parque Municipal de Belo Horizonte”. Guignard o considerava escultor definitivo e talentoso e Weissmann permaneceu na capital mineira até 1956 deixando uma leva de seguidores tão importantes quanto aquela do pintor fluminense-mineiro.
Mas Franz Joseph Weissmann foi, apesar de tantos méritos e reconhecimento de colegas de paleta e de escultura, durante anos, um artista incompreendido e fora de seu tempo, até mesmo por críticos de arte e curadores. Prova dessa assertiva é que a sua obra-prima definitiva, “O Cubo Vazado” foi recusada pela Bienal de São Paulo. A recusa, guardadas as devidas proporções, corresponde à mesma daqueles críticos de arte contemporâneos de Manet que não reconheceram nele o brilhantismo e a sua novidade do impressionismo. “O Cubo Vazado”, sendo uma escultura em aço inoxidável, é, ao mesmo tempo, um belo estudo de linhas, especialidade de quem é exímio desenhista, aplicado na dobradura, recortes e soldas na chapa de aço com a qual Weissmann trabalhava e pela qual era apaixonado. Visto hoje “O Cubo Vazado” é um desenho de perspectiva fantástica e o seu suporte é o próprio espaço livre, uma sinfonia cujas variações tinha o quadrado como tema. Era também o resultado de exaustivo trabalho e sentimento de quem era humanista, mas não esculpia figuras humanas – atitude raríssima em artistas judeus –, exceto em pequenos fios de arame ou até mesmo em tubos vazios de dentifrício que, dobrados com talento e segurança, sugeriam o gênero humano. “O Cubo Vazado” é uma escultura intrigante, perturbadora, misteriosa, enigmática e de uma simplicidade enganosa e atordoante para qualquer espectador sensível. Com tantos adjetivos numa obra, numa época na qual o modernismo engatinhava para ser aceito, não é de se admirar que tenha sido recusada. Il faut être de son temps, lamentava Manet quando percebia a dificuldade de seus contemporâneos entenderem seu trabalho. Frase que Weissmann poderia ter dito aos curadores que o recusaram.
Weissmann teve o privilégio de viver numa época efervescente da cultura brasileira, de grandes poetas como Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade e pintores como Portinari, Di, Guignard, Malagoli, Iberê Camargo, Inimá e mais vários dos participantes da Semana de Arte Moderna de 1922. Em Belo Horizonte ele deixou marcas indeléveis em alunos que se tornariam brilhantes escultores como ele, trabalhando com a chapa de aço, material que consagrou Amílcar de Castro, Ligia Clark e Mary Vieira, e no desenho e pintura, marcaram artistas como Maria Helena Andrés e Marília Gianetti. Depois de 1956, mudando-se para o Rio, convivendo com expoentes da arte brasileira: Barsotti, Ligia Clark e Ligia Pape, Willys de Castro, Décio Vieira, Hélio Oiticica, grupo com quem ele se identificou. Em 1959 adere ao movimento concretista criado por Ferreira Gullar.
A partir de 1960 até 1965 Weissmann viveu na Europa e experimenta o expressionismo, registrado também em chapas de metal, conservando o não-figurativo. Em 1969 retornou ao concretismo e não o abandonou mais. Ao contrário de seu colega e amigo Amílcar de Castro, que raramente pintava suas esculturas, Weissmann nunca abandonou a cor. Pintava suas esculturas com a mesma devoção que pintaria suas telas e considerava a cor, elemento integrante daquelas, demonstradora do que ele sentia e queria transmitir.
Como convém a todo poeta – e ele era o poeta da forma –, era simples, despretensioso e até humilde no trato pessoal e quem, o desconhecendo, o visse na rua jamais imaginaria que aquela figura magra, com eterno corpo de adolescente, era o criador maduro de obras imortais.