Duas obras quase idênticas de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) ilustram este texto. A primeira é uma aquarela com paisagem imaginária, contendo igrejas, serras de Nova Friburgo, balões de festa de São João e citação de Ouro Preto, uma bela composição de leves traços que a fazem flutuar sobre o suporte de papel. É um poema pictórico que emociona o espectador sensível e faz suspirar o admirador apaixonado pelo velho mestre. Não é possível ficar alheio a tanta beleza. Ela foi executada, por certo, no início da década de 1960, quando o alcoolismo e a diabetes corroíam o artista internamente, pois se é um conjunto poético é também uma nova forma de ver as montanhas, como se elas fossem erupções vulcânicas. Nelas, ele acrescenta os balões de sempre, parte da condensação de suas lembranças infantis. As montanhas fluminenses ou mineiras ao longo de sua vida foram pintadas com leveza nas telas e sugeridas nos desenhos de traços leves, garantindo o equilíbrio da composição. Nesta aquarela as montanhas têm as mesmas características técnicas e as sentimos com a mesma leveza, mas há algo misterioso, como uma composição na qual ele inclui a realidade, acrescida de um novo mundo fantástico, surreal. É possível que a cor branca esteja para a pintura assim como a pausa está para a música e Guignard mostra que seus quadros são como uma composição pictórica de afinados silêncios nos quais as igrejas são uma pausa no olhar do espectador na sua adorada Vila Rica com suas serranias, criando as “Paisagens Imaginárias”.
As serras de Nova Friburgo foram presença na sua obra a partir de 1929, quando ele regressa definitivamente para o Brasil e volta a frequentar a cidade na qual passou parte de sua infância. Os balões estiveram presentes nos quadros de sua maturidade artística e pessoal. Ouro Preto foi sua paixão desde 1944, ano que JK o traz para Minas. Nota-se que a aquarela foi pintada com conteúdo constituído dessas memórias, como se fosse uma inconsciente biografia projetada sobre o suporte. Por isso, é possível que obras dessa ocasião contenham mais de sua vida psíquica dos seus últimos meses de vida que seus derradeiros autorretratos
Suas composições não foram construídas somente de recordações de infância e menos ainda difusas e inconscientes. Pelo contrário, Jarbas Juarez, seu aluno quando jovem, menciona a lição aprendida com o mestre de que se deve agregar elementos de cenas diferentes para criar outra definitiva na tela. A cena imaginária ficará enriquecida com detalhes poéticos de uma gaiola vista na varanda de uma casa vizinha ou o registro de um jardim memorizado no trajeto entre dois lugares ou, ainda, um terceiro elemento a dar equilíbrio à composição. O importante era o rico resultado pictórico imaginário e nunca a cena como se ela fosse uma fotografia.
Muito depois de encontrar essa aquarela, surpreendeu-me descobrir a mesma composição, mas agora a obra definitiva, em óleo sobre madeira, a segunda ilustração. A primeira não tem aparência de estudo; daí, a surpresa de encontrar a segunda. Ambas transmitem a emoção de que o seu autor foi alguém que, apesar dos percalços da vida e das rasteiras que ela lhe deu, percorreu os quilômetros da muralha da arte e se transformou no arquiteto da transparência, da leveza na construção pictórica e da camada de tinta a óleo – camada tão fina que mais parece fios de uma seda tecida com milhares de casulos, um “texto” de poesia. Em ambas as ilustrações, é possível que não tenha sido executado um estudo a lápis, no qual o artista se baseasse posteriormente, como se fosse um outro texto em que um revisor sugerisse a alteração da ordem de algumas frases ou até a colocação invertida de um ou mais parágrafos. São obras de alguém que se coloca à frente do suporte e “escreve” com a rapidez e a beleza daqueles bardos que estão no ofício há anos e, por isso, fazem em 40 minutos aquilo que se leva 40 anos para aprender. Mas, como um poeta que substitui ou acrescenta, na última hora da publicação, uma palavra, Alberto, no óleo, adiciona os Arcos da Lapa, registrando, para o futuro espectador, o seu amor pelo Rio de Janeiro.
Não é sem motivo que texto, música e pintura são chamados de composições. Aquelas, de Guignard, são poemas pictóricos de artistas, que transmitem pelos pinceis finos o que vêem pelas retinas e transcendem na alma. Ao mirar essas duas obras, pode-se imaginá-las como se fossem um concerto musical, no qual um violinista e um flautista dialogam em longas frases subordinadas - algo talvez desaconselhável em literatura, mas fundamental em música e em outros gêneros textuais com conteúdos inteligentes, cujos raciocínios se interligam com vírgulas e distante ponto final, tamanho é o argumento do que se pretende dizer. As duas peças são uma biografia de um enviado dos deuses, que deixa registradas belas lembranças dos paraísos nos quais acreditava ter vivido e não demonstra qualquer cicatriz, marca ou ressentimento pela dificuldade congênita e todas as vicissitudes causadas por ela ao longo da sua vida. É produto de alguém que, sem cobrança, retribui à vida o que ela lhe deu de bom.
É provável que um articulista, quando vê a lauda em branco, imagine que qualquer pintor tenha o mesmo sentimento quando vê o suporte preparado com alvaiade, caso de Guignard. Ambos olham algo vazio que precisa ser preenchido com palavras, linhas e cores que formam frases, parágrafos, e estes precisam se entrelaçar, de tal forma, que transmitam ao leitor, com concisão, clareza e emoção o que se pretende relatar. Pintores, escritores e desenhistas precisam ser craques nas linhas porque, assim como criticar uma página cheia é fácil, também é fácil criticar o quadro depois de pronto. Difícil é preenchê-lo; saber onde colocar cada elemento que causará equilíbrio no todo da composição, o que pintar no centro do quadro; dividi-lo em geometria secreta, imperceptível mesmo ao “leitor” experiente, preenchendo o suporte de tal forma que toda parte da pintura seja boa, tal como cada frase deve obedecer à sintaxe e expressar pensamentos que façam o leitor compreender e sentir o que o autor quis transmitir em narrativa que flui, com ritmo, concisão e elegância. É esse difícil conjunto de atributos que faz qualquer compositor ter estilo, e que se imagina fácil de construir. O “texto” pictórico deve ser da mesma forma: os elementos são ritmados, formam um conjunto que contam uma estória, e cada um deles tem seu lugar, produzindo um equilíbrio que deixa o espectador com a impressão de que ali imperou a execução sem esforço. É a simplicidade enganosa do virtuoso que vemos em músicos que tocam um instrumento ou um concerto com a mesma naturalidade com que perguntamos que dia é hoje ou a do cantor de linda voz, que sabe usar o diafragma como poucos, deixando a platéia arrepiada. É o nível do “arrepiômetro” do espectador, ouvinte e leitor sensíveis, uma espécie de medidor da beleza, da força, da grandeza, do talento e da nobreza dos artistas.
Guignard é destes mágicos do pincel fino, privilégio de quem é hábil desenhista e íntimo dos matizes nas paisagens da Serra da Itatiaia, Passeio Público ou Jardim Botânico do Rio, Lagoa Santa, Sabará, Serra do Curral ou de retratos que fizeram seus modelos portadores de sua imortalidade, ou de Ouro Preto, cidade que era paixão mútua de amorosos que lamentavam um único dia longe um do outro. Quando se reencontravam, ele não a despia como fazem os amantes de hoje em dia, mas a vestia com cromatismo, cores, luzes, transparência e perspectiva, transformando-a na mais sedutora das criaturas cheia de ternuras bidimensionais. As paisagens de Vila Rica no suporte refletem a intimidade entre os dois seres que viveram juntos por anos e sabem o prazer de se sentirem descansados nos braços de quem se ama. Guignard sempre viu Ouro Preto como a amada que jamais abandonaria; por isso está, há 50 anos, sepultado lá, nela, ao lado da igreja São Francisco, a mais bonita da cidade, desenhada pelo seu colega Aleijadinho, que a embelezou 250 anos antes, certo de que elas, a igreja e a cidade, sempre seriam vistas, pintadas e retratadas por artistas como se fossem jovens adolescentes.
Guignard faleceu há 50 anos, aos 66 anos de idade, mas, pelas fotos da época, parecia ser mais velho. Morrendo cedo, imortalizou-se como fizeram Modigliani, Pollock, Van Gogh, Portinari, Ismael Nery, Bandeira e tantos outros. Com esse azar, teve a sorte de não ter obras consideradas ruins por colecionadores ou museus, algo que ocorre nos casos de pintores de longevidade maior que sua habilidade manual é capaz de suportar e, no final de vida, criam peças que depõem contra aquelas da juventude e maturidade. Por isso, qualquer quadro, dos desenhos de pequeno tamanho, os raros painéis, passando por tampas de caixas de charuto, telas e madeiras com tamanhos escolhidos por ele e sempre fora do padrão comercial, às aquarelas e óleos, tudo é emocionalmente lindo e mais os adjetivos que o espectador quiser acrescentar.
Toda beleza e genialidade de seus trabalhos podem ser vistas ainda em telas nas quais o espectador notará o amor que o velho mestre fluminense, falecido há exatos 50 anos, dedicou a Minas Gerais e a Ouro Preto em particular.