Faleceu em 26 de novembro o artista e pintor Chanina (1927-2012). Nascido na Polônia chegou jovem ao Brasil, em 1936, com 9 anos de idade e se instalou em Belo Horizonte com a família. Era, então, um jovem à procura de uma nova pátria. Tornou-se um brasileiro e se graduou em medicina pela UFMG em 1955, clinicando de início alguns anos em Caeté, foi diretor clínico da Santa Casa de Barão de Cocais e terminou sua carreira como médico em Belo Horizonte. Essa carreira durou pouco, uma vez que o seu desejo era a arte e a pintura.
A palavra "desejo" tem tudo a ver com a vida de pessoas que largam profissão, que muitos desejariam ter, preferindo-se se dedicar ao seu desejo. A etimologia da palavra "desejo" é seguir as estrelas. E se Chanina procurou e achou a sua primeira estrela na medicina, descobriu outra na pintura. Ele contou-me que somente se deu conta de que poderia viver exclusivamente de pintura quando recebeu, junto com vários pintores mineiros na década de 1960, encomenda de 90 quadros do construtor Alair Couto que, na ocasião da encomenda, construía o Grande Hotel no centro da Capital. O valor de venda de cada quadro era significativo e, multiplicado pela quantidade, revelou-se uma quantia indicadora que ele poderia seguir o seu novo desejo, sem prejudicar seu padrão de vida. Largou a medicina em 1962 e fez, dali em diante, o que os deuses haviam determinado para ele. A encomenda dos quadros que mudou sua vida seria usada na decoração do hotel, então em construção, hoje existente na rua Espírito Santo, no Centro de Belo Horizonte. O hotel passou por várias vicissitudes jurídicas e demorou a ficar pronto. Quando ficou, os quadros não estavam mais disponíveis para àquela finalidade. Alguns deles ainda aparecem em leilões, saídos de mãos de colecionadores e são datados de 1962, 1963. Não há nenhum de qualidade menor que o outro: todos são obras primas e podem ser comprados por telefone, tão encantadores são.
Pessoalmente, Chanina era taciturno, fechado, de poucas palavras, sorria pouco e, com alguma freqüência, era rude com quem fazia alguma observação que lhe desagradava. Em certas ocasiões e com algumas pessoas parecia trazer em si toda a amargura do seu sofrido povo judeu. Mas quem privou de sua confiança e intimidade, ele era afável e educado. Tive o privilégio de sua amizade, de ver-nos com freqüência em mesas famosas do bar "Lua Nova" e do restaurante "Cantina do Lucas", do edifício Maleta, na Capital, durante anos seguidos, de várias visitas em nossa casa e em seu ateliê e jamais recebi dele uma única resposta ríspida ou algo que hoje eu relatasse como atitude mal educada.
Conheci-o inicialmente de nome e fama no final dos anos 1950, quando ele morava na rua Uberlândia, no bairro Carlos Prates, em Belo Horizonte. Eu passava de ônibus e, pela janela, via a placa de "médico" no alpendre de certa casa. Mais tarde, interessando-me por pintura, dei-me conta de que o médico daquela placa era o pintor que eu admirava. Visitei-o pela primeira vez em torno de 1967 para a compra de um dos primeiros quadros de nossa pinacoteca. Ele mostrou-me então todo o acervo do que seria sua exposição na abertura da Galeria Triangulo, primeiro vértice de um negócio que pretendia se expandir para São Paulo e Rio de Janeiro. Eram quadros lindos, enormes, daqueles que, à primeira vista, sabemos de pintor na plenitude de sua criatividade e vigor. Eram todos de guerreiros multicoloridos, reminiscências de um mundo que havia ficado na Europa há anos, mas que se mantinha no seu inconsciente. Isaias Golgher, seu amigo durante anos, achava que esses guerreiros eram de lembranças do artista dos milenares invasores de sua Polônia. Havia ainda muitas, muitas mulheres com pássaros e pombas, todas carregadas de mistério, como convém a toda pintura talentosa, paisagens de Ouro Preto, algumas poucas marinhas e cidades abstratas. Chanina era um urbano, amante do transito congestionado e do asfalto quente, jamais do "tédio da vida do campo". Era também bom retratista, mas retratava apenas quem lhe interessava e a quem dedicava amizade ou admiração. Por isso, no final dos anos 1960 retratou Igor Caruso, psicanalista austríaco que veio ajudar a desenvolver a psicanálise, que começara alguns anos antes em Belo Horizonte.
Mas não foram apenas os poucos retratos que ele executava apenas a quem dedicava afeto especial, que fez de Chanina um grande artista. Colorista emérito aprendeu desenho e pintura com o mestre de quase todos os artistas e pintores de sua geração, Alberto da Veiga Guignard e Franz Weissmann. Do primeiro, herdou a coragem dos usos das cores, o desenho de linhas puras e a encantadora perspectiva, em especial, os quadros de paisagens de Ouro Preto dos anos 1960. Do segundo, tentou fazer algumas esculturas, mas desistiu cedo. Sua paixão e seu talento eram as telas, as cores e os pincéis. Pintou Ouro Preto com a mesma paixão do velho mestre, escolhendo os ângulos que mais lhe tocava e sabedor de que estava autorizado a acrescentar no quadro o que desejasse para compor sua sinfonia em cores. Mas a sua marca registrada eram suas famosas pinturas de mulheres, verdadeiras Evas imortais, pinturas bem elaboradas, contendo olhares misteriosos cheios de lirismo e ternura. Como ele permaneceu solteiro e tinha vida espartana, é incompreensível como Chanina era capaz de captar e transmitir para a tela esses mistérios de mulheres fatais. A explicação é única: coisa de artista. Nosso saudoso pintor tinha o privilégio da herança filogenética de seu povo a demonstrar humanismo, representado pela preferência absoluta da pintura da figura humana, quase sempre mulheres com flores ou com pombas. Privilégio que vemos na maioria dos artistas judeus e cuja temática é sempre o ser humano.
Na história da arte o que ouvimos e sabemos é a biografia de pintores descobertos e valorizados depois de mortos. Isso não ocorre mais com a freqüência de cinqüenta anos atrás, porque a quantidade de colecionadores e até de investidores em arte aumentou consideravelmente e a maioria dos artistas, hoje, não pode se queixar de dinheiro por falta de venda. Chanina clinicou alguns anos e somente achou que poderia ser artista profissional depois daquela célebre encomenda. Mas nos casos em que ainda ocorre a falta de reconhecimento, o que vemos é a crueldade do grande público que não percebe o que o artista vê com antecedência de dezenas de anos e que, por isso, é injustamente ignorado ou desvalorizado. Exemplos desses pintores não faltam na história: Vermeer, Van Gogh, Gauguin, Ismael Nery, El Greco e o nosso Guignard, todos valorizados depois de mortos. Alguns deles, séculos depois de desaparecidos. É possível que Chanina, no futuro, faça parte dessa lista, tão bom foi o seu legado pictórico. Metade dessa injustiça comercial, se ela existe, talvez possa ser atribuída a ele próprio, por causa do seu jeito arredio de tratar potenciais compradores; a outra metade fica por conta, novamente, do grande público, sempre anacrônico nas descoberta das artes e de seus criadores.