Belo Horizonte teve, no final dos anos 1950 e princípios da década seguinte, duas galerias de arte que sobressaíram pela ousadia da iniciativa e pelo sucesso comercial, em uma época na qual poucas pessoas compravam arte. A primeira foi a Galeria Grupiara, primeira também a expor os artistas foral do hall de entrada de prédios, única forma até então disponível para alguns pintores. A segunda foi a Galeria Guignard, fundada por três ousados promotores culturais: Geraldo Andrada, Roque Nunes e Laércio Aguiar. Eles contavam com o apoio do próprio Guignard. A história das duas está disponível para alguma dissertação de mestrado sobre a História da Capital mineira.

Na primeira galeria, um dos seus colaboradores foi José Palhano Junior. Cantor de ópera durante boa parte de sua juventude, sua grande paixão porém, foi a pintura, em época na qual não havia um ativo mercado de arte e colecionador era espécie embrionária. Os poucos interessados e conhecedores não pensavam em ver seu acervo transformado em belo investimento financeiro. Palhano trabalhou nessa galeria por quase dois anos, sendo assessorado pelo jovem Sergio Maldonado, que se tornou depois conhecido crítico de arte em Belo Horizonte.

Certo dia de 1965, Sérgio informou a Palhano que um "velhinho" havia trazido alguns quadros pintados a óleo e que ele, Palhano, deveria vê-los. Surpresa! Os trabalhos eram de rara ternura e, ao mesmo tempo, de força arrebatadora. A admiração dos dois jovens galeristas pelo ancião Amadeo Lorenzato foi instantânea. Lorenzato era então, como é hoje, um brilhante mas desconhecido pintor no Brasil. Por intermédio dos dois, Lorenzato foi apresentado a várias pessoas influentes nos meios sociais e artísticos de Belo Horizonte. Mas, como ocorre em certas biografias de pessoas talentosas, a maioria achou que ele pintava "casinhas", não lhe dando o devido valor.

José Palhano Junior o expôs pela primeira vez quando dirigia o Departamento Cultural do Minas Tênis Clube, em 1967. Amadeo Lorenzato era então um jovem senhor de 67 anos, mas aparentava muito mais, pois não tinha o vigor físico habitual dos imigrantes italianos e alemães. As vicissitudes da dura vida de pintor profissional de pintor de paredes e de suas restaurações caseiras, acrescida de outras atividades que apenas o seu coração de guerreiro registrara, o haviam envelhecido prematuramente.

Corpo baixo, rosto muito vermelho, arquejado por grave acidente que prejudicou-lhe a coluna vertebral, era discretíssimo como pessoa, a ponto de passar despercebido entre o público, até mesmo em suas próprias exposições. Anos depois de sua primeira vernissage do Minas Tênis, quando Manoel Macedo se tornou seu marchand, Lorenzato já conhecido nos meios sociais e artísticos, andava pelos salões com a mesma discrição com a qual procurou os dois jovens na Galeria Grupiara.

Lorenzato começou a pintar óleo sobre Eucatex ou afresco em placas de cimento que ele mesmo preparava, aos 67 anos de idade, por falta de dinheiro para comprar material apropriado. O conteúdo de seus trabalhos em paisagens de favelas, morros com "casinhas" espalhadas pelas encostas, crianças soltando pipas ou passarinhos entrelaçados nos cipós, tudo misturado em sentimentos que iam da solidão à doçura. Mas, se na juventude e na maturidade o pintor de paredes passou dificuldades, o artista as superou nos seus últimos trinta anos de vida. É que o óleo foi o momento no qual ele escolheu para se aposentar daquela pintura de parede e iniciado a atividade que tanto o alegrou. Sua pintura sobre tela foi o caminho de que nos fala o poeta americano Robert Frost em "The Road Not Taken". Por tudo isso, seus quadros apresentavam paradoxal contraste, como se fosse o retrato de Dorian Gray às avessas: a pintura permanecia jovem e ele envelhecia.

Enquanto viveu, morou no mesmo barraco pobre do bairro Cabana do Pai Tomaz. Conheci-o pessoalmente naquela exposição do Minas Tênis no distante 1967 e o perdi de vista durante anos, vendo parte de sua produção em casas de amigos ou em galerias. Voltei a encontrá-lo pelas ruas da cidade andando a pé, oferecendo-lhe periódicas caronas ou em exposições de arte de seus colegas de paleta. Certo dia, perguntei-lhe porque não começara mais cedo sua atividade artística, sugerindo que sua vida pessoal teria sido menos dura. "Eu sei, mas isso nunca me passou pela cabeça naquela ocasião. Só depois de velho pintei algumas coisas e mostrei pro Sergio e pro Palhano. Aí não parei mais".

Havia a e ainda há um paradoxo comercial nas obras de pintores autodidatas como Lorenzato, se comparados com certos artistas recém saídos da escola de belas-artes, que julgam seus trabalhos como de alto valor comercial. É possível e é bom que estes últimos sejam valorizados. Ninguém quer correr o risco de perder um novo Van Gogh e pouquíssimos se arriscam a perder um quadro que imaginam ser de um novo Portinari. Lorenzato talvez sido o último pintor brasileiro do século XX que vendeu suas obras baratíssimas, a confirmar a velha lenda e tradição de pintor pobre, colecionador rico. Só recentemente seus trabalhos começaram a ser valorizados comercialmente em vários leilões de Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. O velho artista que vendia seus trabalhos por 50 ou 100 reais atuais, se surpreenderia se soubesse que hoje eles estão valendo vinte mil reais, preço de sua última obra vendida em leilão da Galeria Vitor Braga em 10 de agosto de 2015, em Belo Horizonte.

Como de hábito, o grande público, eterno retardatário, demorou a descobri-lo. Um dos motivos da dificuldade de valorizá-lo talvez tenha sido a comovente simplicidade de sua pintura. Percepção da simplicidade e aplicação dela em qualquer atividade profissional requerem vivência pessoal, cultura e refinamento intelectual, privilégio de poucos e, por isso, ela é rara e difícil. No caso de Lorenzato a simplicidade de seus quadros chegou a ser comentário negativo, como se ela fosse uma desvantagem que o espectador ou investidor devessem evitar. Seus trabalhos foram comprados por alguns aficionados mais sensíveis, o que garantiu sua sobrevivência na velhice.

Nossa Senhora ou Madona, quadro vendido há alguns anos em leilão belorizontino, foi pintado como se fosse visto e executado por um talentoso pintor renascentista vivendo na pós-modernidade deste século XXI, o mesmo século que começa valorizando garrafas soltas pelo chão do quarto de uma cama desarrumada. O quadro de Lorenzato demonstra também a semelhança dos caminhos percorridos por ele e por Volpi, dois italianos trabalhando nas mesmas atividades e chegando, nesta tela, em lugar pictórico tão parecidos. Volpi, sem dúvida, assinaria o quadro, tão comovente delicadeza e ternura estampadas em retrato. Mas que fique claro: ele jamais conheceu Volpi pessoalmente e é provável que jamais tenha visto um único quadro dele.

Registre-se ainda que são raras as figura sacras na obra de Lorenzato. O mais frequente é vê-lo em belas e espontâneas paisagens das favelas belorizontinhas tornadas universais, composições sem preocupação com o corte de ouro, ponto de fuga ou proporcionalidade. Mas o velho mestre tinha certeza de que elementos pintados maiores que o outro sobre o suporte plano criavam uma perspectiva e assim os executou. Suas telas não tinham tampouco preparo técnico esmerado antes de receber as cores, por isso, é sempre prudente observá-las periodicamente para sua preservação. Ele usava como suporte, além da chapa de cimento, papelão e tudo mais que fosse possível receber tinta. Lorenzato viveu como hippie "avant la letre" nos anos 1930 na Europa, viajando de bicicleta que lhe deu melhor visão de mundo. Era autodidata e considerado "primitivo" em sua pintura, algo que os curadores da Bienal de Bratislawa acharam inadequado quando Lorenzato ali expôs em sala especial. Estão presentes em suas composições as importantes cores complementares, colocadas espontaneamente por pura observação da natureza que o cercava na Cabana do Pai Tomás. É possível que Amadeo Lorenzato tenha alcançado aquilo que Picasso sempre quis: pintar como criança, acrescido da imortalidade que começa agora, vinte anos depois de sua morte em 1995, aos 95 anos de idade.

Últimos artigos do Carlos Perktold