Em certas ocasiões somos apresentados a pessoas que, com o imponente nome que têm, poderiam ser embaixadores. Há outros que, desde o batismo, nos asseguram serem portadores, com o seu talento, de um recado de Deus para nós. O leitor imaginaria que, no final do século 19, alguém com o nome de Picasso, fizesse o que fizesse, pudesse dar  errado na vida? Ou que com os nomes de Rembrandt, Vermeer, Velasquez, Di Cavalcanti, Vila-Lobos, Portinari ou Guignard, pudessem ser diferentes do que são? O nome é uma predestinação porque pode trazer consigo a carga genética, as belas primeiras vivências e a herança cultural, itens determinantes do futuro.

É com o registro desses detalhes que a arte brasileira se depara com o nome de João Câmara, um paraibano nascido há 60 anos e que se tornou pernambucano de corpo e alma muito cedo. Com esse crédito de batismo poderia ser embaixador, engenheiro, ator, advogado ou professor com a certeza de sucesso profissional. Mas foi como artista que consagrou seu nome, mais especificamente como primoroso pintor, capaz de ver e registrar o Homem com todo o seu humanismo e a sua mesquinharia numa só pincelada. Com milhares delas, ele construiu um universo de seres e objetos misteriosos aos olhos dos espectadores despreparados para ver os elementos de seu mundo, causadores daquilo que Freud chamou de unheimlich, quando ele queira se referir a algo estranho. Nesse universo incluem-se os quadros “A Noite” e “O Dia”, ambos retratando um vôo de dirigível, como se os dois se apresentassem no seu ritmo, lento e silencioso, sempre num espaço escuro ou claro, jamais tempestuoso. Todo artista sabe que noite e dia, metáforas da categoria tempo, se arrastam quando estamos deprimidos e passam na rapidez de um míssil quando estamos felizes. Há nas obras de Câmara a constante presença de homens e mulheres que, vestidos ou despidos, mostram a estratificação social a que pertencem, bem como a grandeza e a pequenez humanas. João é ainda o retratista e o auto-retratista a executar “a arte mais exigente e difícil” como nos assegurou Guignard, fixando nos portraits a subjetividade do modelo. E há por fim um João humanista preocupado com a justiça social, capaz de registrar a presença de Celso, o calceteiro, profissão dura e tão esquecida hoje quanto as de entalhador, alfaiate ou funileiro.

Mas o pernambucano não mostra suas qualidades humanas apenas no figurativo primoroso, é exímio paisagista, daqueles capazes de envolver cada parte de sua criação no mistério da paisagem desumana, solitária e urbana de Recife ou na alegria de Olinda, duas cidades pelas quais ele declarou seu amor, construindo um enorme quadro contendo dois silos e um coração no meio, pintado na forma de um triângulo, representante de um inconsciente conflito afetivo entre as duas apaixonantes cidades. Suas paisagens nos remetem à mesma solidão denunciada por Hopper no século 20, nos Estados Unidos. Câmara traz ainda essa atmosfera para o desespero do soldado no “Armazém 64”, quadro contendo as docas de Recife. Por esse local transitam não as mercadorias do comércio exterior, mas toda a  ironia do pintor no título da obra e na solidão do soldado, perplexo ante tantas atividades políticas, das quais ele ou não se dá conta ou vive o dilema de escolher um dos lados para aderir, como se previsse a tragédia a transitar nos armazéns de nossa história a partir daquela data.

Criador de estilo único, João Câmara é um dos poucos artistas brasileiros que, de longe e pelo conteúdo de seus trabalhos, apontamos e dizemos “é um João Câmara”, da mesma forma quando nos deparamos com um Portinari, um Ianelli, um Di ou um Guignard, ou ainda um verso ou um parágrafo e exclamamos: “é um Carlos Drummond de Andrade” ou “é um Guimarães Rosa”. Nesse conteúdo há paisagens, objetos e naturezas-mortas, mas é nas figuras humanas que ele exerce o privilégio daqueles humanistas aos quais cabe revelar o que o Homem é e quanto ele precisa caminhar para chegar ao nível da empatia e da gratidão. Seus personagens evidenciam a falta desses dois sentimentos raríssimos no ser humano e, ao mesmo tempo, exibem o que temos de grandeza. Ao fazê-lo, João Câmara pretende que seus trabalhos funcionem como um espelho  para a nossa percepção do outro. Por isso, suas figuras dão lições de humanismo, tão necessárias neste novo mundo globalizado. Esses personagens, como se fossem uma peça literária bem escrita, trazem consigo alguns segredos tão misteriosos e mágicos que, se o leitor for capaz de decifrar seus enigmas,  manterá as respostas consigo, como se fosse, a partir de então, portador de uma mensagem reservada a poucos conhecedores da língua falada entre o coração e o córtex. Quem duvida que comece a desvendá-la dentro de si, nunca nos quadros de João Câmara. Ao contrário da esfinge de Tebas, enviada para devorar quem não decifrasse o Homem, João é o mensageiro criador de novas respostas desse mesmo e velho segredo. Na sua versão há interesse de mostrar o caminho que precisamos descobrir e percorrer para chegarmos a um novo humanismo, a segunda edição melhorada do primeiro Humanismo ocorrido no mundo, aquele que, anos depois, resultou no Renascimento.  

Como todo Midas, tudo que ele toca vira arte. Por isso sua nobreza pictórica é encontrada em quadros de pequenos ou médios formatos, mas é no suporte de grandes dimensões que ele mostra toda a sua força criadora e a sua grandeza artística. Seu toque mágico foi revelado em 1962, aos 18 anos de idade, em Belo Horizonte, quando recebeu o primeiro prêmio de pintura e o segundo de desenho no Salão Universitário. De e então para chegar no aqui e agora de seus 60 anos de idade, construiu um caminho margeado pela garra, determinação, talento e uma vontade ímpar de realizar o desejo de todo artista: tornar-se imortal. Nessa condição, João Câmara tem a garantia da imortalidade, pela sua brilhante produção, hoje preservada em coleções particulares, galerias, museus brasileiros e estrangeiros e pelas valorizações artística e comercial constantes de seus trabalhos. 

 

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