Apesar da consagração de muitos artistas, a vida de quase todos aqueles nascidos em meados do século 19 até a metade do século 20 foi dura do ponto de vista financeiro. Houve exceções, naturalmente, mas não foi somente o sempre lembrado Van Gogh quem vendeu apenas um quadro durante seus dez anos de produção imortal. As biografias de Modigliani e de Pollock foram trágicas sob todos os aspectos. E nem foram apenas os três. Vários pintores e escultores morreram cedo e pobres. Parece haver uma troca divina entre a imortalidade e as dificuldades terrenas, porque é passando pelas vicissitudes da vida e permanecendo no caminho que os deuses os colocaram, que esses guerreiros da arte vão superando os obstáculos, os impedimentos, a inveja e os estorvos, seguindo em frente até se transformarem, com frequência na velhice, em artistas celebrados. Muitos deles pararam no encostamento desta vereda e ali ficaram a ver os colegas mais aguerridos passarem com a paleta cheia de cores na mão. Aqueles são bons também, mas como no poema de Brechet, os que seguem em frente são imprescindíveis. Para piorar ainda mais a vida dos artistas andarilhos seguidores daquele caminho difícil, havia poucos colecionadores nas décadas entre 1920/1970, vendia-se pouco, muito pouco, em especial no Brasil.
Raríssimas pessoas valorizavam a pintura como algo capaz de trazer benefícios intelectuais para quem olhasse diuturnamente as paredes de seus lares cheias de quadros, desenvolvendo o olhar e a sensibilidade dos integrantes da casa, ou sequer pensavam nela como investimento financeiro no longo prazo. Além disso, alguns trabalhos eram caros para um Brasil que vivia ainda no estado de necessidade e a realização de desejo na arte não fazia parte do cardápio familiar, mesmo dos ricos.
Afirmei, em artigo anterior publicado neste mesmo PENSAR, que é uma ilusão o colecionador ou o grande público, vendo os preços dos trabalhos de Cézanne, Manet, Monet, Pissaro – para citar apenas os franceses – ou os de Guignard, Di Cavalcanti, Portinari – para citar os nacionais tão valorizados artística e comercialmente, crer que se pudesse voltar no tempo, compraria vários trabalhos deles, garantindo-lhes um futuro tranquilo com a potencial venda das pinturas pelos preços atuais. Engana-se quem pensa assim, ninguém as compraria.
O leitor apaixonado por artes plásticas, em especial pela pintura, sabe desses infortúnios e sabe também que grandes artistas começam suas carreiras pintando paisagens ou figurativos. Alguns saem dessa fase e, com os anos, vão à simplificação representada pelo abstrato, habitualmente parte deste encontrável nos detalhes em fundos das telas dos trabalhos iniciais. Outros acabam voltando para o figurativo, como foi o caso do nosso saudoso Inimá. Muitos jamais abrem mão do figurativo, paisagem, retratos e autorretratos e os seguem até o final da vida. E há por fim aqueles que, percorrendo sua trajetória, terminam sempre na mais completa simplificação do que foi iniciado no passado remoto de suas carreiras. Exemplos do primeiro caso, os já citados Portinari, Di Cavalcanti e Guignard, para falar apenas de parte dos gigantes brasileiros. Do segundo grupo, falamos de Arcângelo Ianelli, Aldir Mendes, Mabe, Flexor, Fukushima, Wakabayashi e muitos outros. Mas há ainda aqueles que, ao nosso primeiro olhar sobre sua obra, pensamos ser um trabalho de certa escola para em seguida acharmos que é de outra, e mais um pouco mudarmos de opinião novamente. Neste último caso está, sobretudo, Milton Rodrigues da Costa (1915-1988) ou Milton da Costa que, simplificando sua assinatura como a sua pintura, assinava DaCosta nos seus trabalhos.
DaCosta faria cem anos de idade neste 2015 e é, para colecionadores e críticos, um dos mais geniais pintores brasileiros do século 20. Infelizmente ele ainda é pouco conhecido do grande público, se comparado a coevos seus. Isso não é uma surpresa, pois o grande público é sempre retardatário nas suas escolhas. Se o leitor folhear qualquer um dos diversos livros dedicados à vida dele e aos seus trabalhos, verá que ele iniciou sua caminhada muito cedo, começando com paisagens, retratos e autorretratos psicológicos, passou por marinhas, seguiu simplificando figuras humanas cheias de linhas cubistas, formando, ao mesmo tempo, imagens frontal e de perfil, como se a sua bela pintura fosse também um primoroso desenho. Depois, fluiu na mais completa espontaneidade das linhas horizontais e ortogonais, pintando naturezas-mortas que nos intrigam ao primeiro olhar e nos apaixonam ao segundo. Para chegar a essa espartana e desconcertante simplicidade, que começa em torno do início da década de 1940, adere ao cubismo. Entre 1953 e 1956, nomeava suas obras com a cor que colocaria no fundo do suporte. Assim, em azul, em marrom ou em vermelho designa o fundo da tela, seguido daquelas simples linhas com os volumes cheios de cores, escrevendo poesia com o pincel, definindo objetos e naturezas-mortas que nos encantam pela enganosa simplicidade. Sim, enganosa. Quem as olha pela primeira vez não imagina a trajetória intelectual e pictórica que há atrás de cada composição. Mais adiante, elas nos lembram de projetos ou maquetes de encantadoras construções arquitetônicas que, se edificados, fariam seus moradores felizes assim como fazem hoje o espectador delas sorrir com os olhos.
DaCosta e Oscar Niemeyer são irmãos siameses da arquitetura moderna brasileira: um no cavalete e outro na prancheta. Amílcar de Castro é outro irmão na medida em que ambos terminam fazendo a "mesma" composição: um na tela e outro na chapa de aço, sem que os dois jamais tivessem mencionado entre si o que faziam naqueles anos. Em qualquer das pinturas, construções, retratos, paisagens, Vênus, naturezas-mortas, marinhas de DaCosta há um sempre profundo silêncio, registrando um humanismo que se espera de todo artista executor de pintura universal. Nada nele é regional.
Com o seu casamento com a não menos brilhante pintora Maria Leontina nasceu-lhes o único filho do casal, Alexandre. Tão logo seu rebento fica de pé, surge-lhe a fase "Alexandrina", na qual o personagem principal e recorrente é o filho em pé ou apenas a sua cabeça, quadros hoje mal denominados e conhecidos como "Cabeçudos". A mesma simplificação ocorrida com suas linhas formadoras de belas imagens é repassada para a nova fase e o filho é imortalizado em pinturas de pequenos e grandes formatos. Aliás, pequenos formados são a sua preferência na maioria de seus trabalhos, que sempre apresentam leve textura de quem procura o desenho nas cores. Mas o leitor não imagine que ele era melhor nas pequenas superfícies, daí sua preferência. Ele pintava quadros de grandes portes e elas são insuperáveis obras-primas.
DaCosta foi premiado com viagem ao estrangeiro em 1944, na Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas-Artes, raro privilégio de poucos artistas, e ficou nos Estados Unidos e em Paris, onde foi amigo de Cícero Dias, que o apresentou a Picasso, Braque e a todos os bravos criadores do cubismo e da Escola de Paris, e de lá Milton voltou mudado. De ninguém com seus neurônios completos poderíamos esperar algo diferente. Paris mudava qualquer pessoa sensível naquela época, assim como hoje permanecer um ano na Cidade Luz e voltar se colocando no mundo como se nada tivesse acontecido é prova de que lhe faltam sensibilidade, inteligência e bom gosto. Foi a partir desses contatos tão importantes quanto produtivos que DaCosta compôs seus trabalhos cubistas. Nos anos 1950, com o construtivismo em alta, aderiu a ele e pintou telas, guaches e desenhos com régua e esquadro, demonstrando a mesma preocupação com o equilíbrio dessas composições e com o número de ouro, criando Arte, com letra maiúscula. Arte é esta senhora que anda perdida pelos salões de sua própria casa, como se fosse uma intrusa, desorientada pelos rincões da contemporaneidade, sem se lembrar que é a anfitriã de suas festas e deveria receber o tratamento de Grande Senhora de outrora.
Quando quer, Milton da Costa rompe com a regra de ouro e centraliza a figura no centro do quadro, criando a grandiosa singeleza de quem chegou sabendo do seu lugar de amigo da velha senhora.
E sua pintura e prêmios não ficaram apenas no prêmio de 1944. Em 1955, ele foi premiado na Bienal de São Paulo, época de fase produtiva e da sua mais completa maturidade artística. Tinha então 40 anos de idade e sabia de seu talento e de que era artista que ficaria registrado nos anais brasileiros. DaCosta hoje é nome singular nas artes da América Portuguesa do século 20. Basta olhar para suas criações ao longo de sua carreira ou folhear um dos diversos livros editados com suas obras para sabermos que o que é sedimentado na beleza fica no mundo para sempre.