Sejamos justos com os italianos e os gregos: sem eles a nossa cultura Ocidental seria impensável como é hoje. E aqui não falamos apenas do Renascimento como tributo maior para este Planeta Azul, mas de dezenas de anos antes, quando Giotto, por exemplo, já brilhava nos principados do que viria a ser a Itália em 1861. Quanto aos gregos, devemos a eles desde a banheira até o Acrópole e a estética, a categoria das coisas belas.
No nosso país, é impossível falar da arte brasileira sem levar em conta a contribuição de italianos e/ou seus descendentes. No início do século XX houve Victor Brecheret e Anita Malfatti que deixaram marcas indeléveis na história de nossa arte, além de artistas anteriores e seguidos de tantos, que seria tedioso os relacionar. Para não parecer injusto lembremo-nos de Eliseu Visconti, Candido Portinari e Arcangelo Ianelli, três artistas consagrados e “oriundi”, sem esquecer certo Di, um dos criadores do Modernismo e da Semana de 1922, descendente do poeta Guido Felipe Cavalcanti. Este veio ao Brasil em 1559, depois de participar de uma conjura contra Cosimo de Medici e a quem se atribui a ascendência de todos os Cavalcantis no País. (**) Como o leitor percebe, os italianos começaram cedo demais no país de Machado de Assis a trazer, a criar e a deixar herança cultural que nos remete há séculos à beleza e ao bom gosto.
Belo Horizonte foi contemplada com a presença de arquitetos italianos e artistas de vários segmentos desde o início da Capital. Há mais de vinte anos, contamos com Umberto Nigi, um artista fascinante no trato pessoal pelo que tem para contar de sua vida de cosmopolita, cuja biografia nos leva a concluir que o mundo é pequeno para ele, além da formosura de seus trabalhos expostos no CCBB-BH. Nigi começou sua carreira a pintar quadros primitivos, por isso ele talvez seja um dos poucos artistas que, partindo desta escola, chegou ao requinte do abstracionismo. Como pintor naif mostrou nas telas de então sua preocupação com a terra, a justiça social, o trabalho manual do homem do campo, daqueles que lutam durante uma vida. Depois de três exposições em Belo Horizonte e uma em Tiradentes, o artista volta a expor sua pintura abstrata.
Como homem do mundo, Umberto Nigi viajou, morou, trabalhou e contribuiu com sua pintura no Oriente Médio, em New York, Milão, Cairo, Jordânia, Iraque e outros lugares que também seria cansativo listá-los. Registre-se ainda que ele, engenheiro por formação, deu a vários países, além de sua contribuição cultural, a profissional, incluindo o Egito por oito anos.
Como se sabe, os quadros abstratos para serem belo é preciso que o artista tenha passado e permanecido durante muito tempo no figurativo e, a partir deste, simplificar, abstrair sua pintura. Como Nigi fez. Nosso artista é admirador de colegas de paletas, por isso, há em seus trabalhos citações de mestres abstracionistas como Rothko ou De Kooming, descobertos por Nigi nos Estados Unidos. Nada mais justo que citar esses dois nos seus “textos” pictóricos. Se se é impossível hoje pintar uma paisagem sem pensar em Van Gogh, como pintar um abstrato sem pensar nos mestres americanos?
Unidade
Em entrevista publicada há anos, o artista Milton da Costa relata que, pronta a exposição na qual ele expunha vários quadros, o primeiro espectador foi um sujeito inteligente, mas que apareceu bêbado e disse: “esta é uma exposição de um quadro só”. Não se tem notícia se DaCosta ficou alegre ou triste com a frase, mas por certo foi um elogio pela unidade apresentada e bem percebida naquela exposição. Pois Umberto Nigi executa seus trabalhos de forma espontânea a formar uma unidade que dará ao espectador a impressão de estar nesta exposição também defronte de um único quadro. A unidade é esse mistério pictórico paradoxal que nos leva a concluir que todos os quadros são iguais e todos são diferentes, marca de artistas que já têm um estilo, como se fossem escritores cujos textos são identificados no primeiro parágrafo de leitura. É o caso de Umberto Nigi, cuja pintura é identificada de um olhar.
Cores e Colagem
Ela é cerebral, racional e emotiva ao mesmo tempo, levando-nos a admirá-la pelo seu conteúdo de cores e de colagem do tecido de aniagem, pano utilizado para embalagem de café em grãos ou algum cereal e cujos retalhos recebem cores criadas pelo artista como o azul deslumbrante e o amarelo de-por-do-sol-de-inverno-tropical. Ambas são registros de poemas pictóricos. O tecido é colado de modo suave e integrado às cores com preocupação com o ponto de fuga de cada composição. O resultado final é um elegante visual de cores que encanta qualquer espectador sensível fazendo surgir a beleza, essa imortal jovem onipresente em todas as manifestações artísticas pelo mundo. Ela, somente ela, sabe o quanto é difícil para o artista fazê-la surgir do mundo da estética com um sorriso nos olhos.
Por isso, escrever sobre a pintura de Nigi é dissertar sobre cores, essas senhoras antigas e nervosas, que brigam entre si se mal colocadas e se abraçam quando reencontram velhas amigas, aí ficam horas tricotando nas telas a elogiar o artista no qual confiam e a aguardar novas pinceladas que virão cheias de novas amigas do peito e que jamais são colocadas ao lado daquelas senhoras que se detestam cordialmente.
Musicalidade
O leitor sabe que há pinturas que gritam, outras são silenciosas e outras trazem musicalidade. Aqui e em cada sala desta exposição há nas paredes um conjunto de música de câmara, aquele de poucos instrumentos de cordas e que produzem notas intimistas como se o espectador estivesse sozinho em uma capela rezando e pedindo aos deuses que a música não pare sem que antes tenhamos ouvido o coral de anjos e querubins vestido de azul e amarelo de Nigi.
Texto do catálogo da exposição no CCBB-BH em novembro/2022
(**) www.catálogodasaartes.com.br acesso em 26/06/22