Por causa de sua condição de colônia e, posteriormente, até o início do século 20, o Brasil bebeu, sempre com décadas de atraso, tudo de cultura que a Europa dava ao mundo, em especial a França. A maioria dos nossos pintores dessa ocasião descobriu o impressionismo quando sua antítese, o cubismo, já estava pronta e Picasso começava a ser o mais importante artista do século 20. Em torno de 1910/1925 eram poucos os artistas que podiam financeiramente viajar e usufruir as novidades européias e trazê-las para cá. Por isso, as exceções nacionais estavam naqueles artistas que descobriram, além da França, o que a Alemanha, Itália e Suíça tinham para oferecer. Antes de 1922, era claro o marasmo intelectual brasileiro. Mas neste ano, havia um grupo de “meninos”, como eram chamados pelos conservadores e acadêmicos, constituído de jovens artistas, escritores e jornalistas não consagrados pelo público e que pensavam, buscavam e sentiam que encontrariam algo que sacudisse culturalmente nosso país. Eles tinham o propósito de acordar, sobretudo, a elite acadêmica paulista. Faziam parte do grupo: Anita Malfatti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, Villa-Lobos, J. F. de Almeida Prado, Menotti Del Picchia, Martins Ribeiro, Guiomar Novaes, Sérgio Millet, Paulo Prado, Álvaro Moreyra, Vicente do Rego Monteiro, o embaixador Graça Aranha e outros cuja participação, maior ou menor, foi registrada pela história. Todos tinham então entre 23/35 anos de idade. O mais velho era o embaixador, integrante da Academia Brasileira de Letras, nascido em 1868. O Brasil vivia o seu centenário de independência e o sentimento de nacionalismo havia começado vinte anos antes com a publicação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, e continuara em 1917, com a pintura a óleo “O Saci”, de Anita Malfatti, participante de concurso nacional. Mas o nacionalismo era algo ainda inconsciente entre “os meninos”. Eles somente começariam a se interessar por uma arte brasileira a partir de 1924, quando vários deles fazem viagem pelo país, descobrindo, em especial, o barroco nas cidades históricas de Minas Gerais.
Antes que esta viagem e outro importante evento acontecessem, em 1912, um pintor lituano chamado Lasar Segall visitou o Brasil, voltando no ano seguinte. Provavelmente julgando nossos compatriotas com a cabeça de europeu e esperando o mesmo reconhecimento que a Alemanha, onde ele morava, oferecia então aos seus artistas, Lasar fez nesta sua segunda viagem de 1913 exposições em São Paulo e Campinas, ambas incentivadas pelo senador Freitas Vale, um político à frente de seu tempo. As duas mostras foram retumbantes fracassos. Faltaram público e compreensão daquilo trazida pelo lituano. Mas ninguém ousou rir, criticar acidamente ou destruir seus quadros porque as exposições eram avalizadas pelo poderoso e temido senador que não gostava de ser contrariado.
Rir ou falar mal de novidades então não é o mesmo fenômeno a ocorrer hoje quando o público fica perplexo e paralisado frente à arte contemporânea. Naquela época em São Paulo e mesmo na capital mineira de décadas depois, (vide exposição em 1944 promovida pelo prefeito JK, quando vários quadros foram cortados com navalha) parte do público demonstrava seu ódio agredindo os artistas e destruindo suas obras, ou vaiando os palestrantes que elogiassem qualquer manifestação modernista. Havia participativa atividade com a qual as novas idéias se tornavam notícias nos jornais.
Anita Catharina Malfatti, uma jovem pintora admirada por colegas de paleta, era um daqueles privilegiados artistas que já vivera alguns anos na Alemanha, onde, de 1910 a 1914, viveu a revolução pictórica do expressionismo. Ela presenciou a exposição internacional “Sunderbund Ausstellung”, em Colônia, em 1912, constituída de 634 telas de pintores de nove países, que incluíam desde obras de Cézanne, Van Gogh e Gauguin passando por Bonnard, Maillol, Picasso, Braque, Matisse e alguns expressionistas alemães como Ernst Ludwig Kirchner, Emil Nolde mais os professores de Anita, Lovis Corinth e Bisholff Culm, além de centenas de esculturas e uma sala especial para o expressionista Munch. A exposição foi tão bem sucedida que os artistas norte-americanos decidiram fazer uma mostra semelhante em Nova Iorque no ano seguinte, 1913. Essa exposição passou a ser conhecida como “Armory Show” e foi nela que Marcel Duchamp apresentou a sua pintura sobre vidro “Nu descendo as escadas”, talvez seu mais belo trabalho.
Em janeiro de 1915 Anita chegou em Nova Iorque e, junto com artistas europeus que haviam ali se refugiado enquanto durava a Primeira Guerra Mundial, absorveu a atmosfera artística e as repercussões do “Armory Show”. Com esta bagagem, desenvolveu seus estudos que a fariam imortal e ali criou o primeiro Nu Cubista brasileiro. Voltando ao Brasil em 1916, com 27 anos de idade e tanta experiência vivida, ela foi encorajada pelo então ilustrador e caricaturista Di Cavalcanti a expor sua bela pintura em São Paulo. Entre dezembro de 1917 e janeiro de 1918, com o título de “Exposição de Pintura Moderna” a senhorita Anita Malfatti abriu a mais polêmica das exposições ocorridas no país até hoje. Malfatti foi aceita nos seus primeiros dias, acompanhada de sucesso comercial com vários quadros vendidos, um reconhecimento da qualidade de seus trabalhos. Sua pintura tinha traços firmes e seguros, surpreendendo quem a desconhecia. Como ela nasceu com defeito congênito na mão direita, é possível que essa segurança tenha, parcialmente, vindo dos treinos diários com a mão esquerda, exigidos pela educadora norte-americana Márcia Percy Browne, adepta da educação intuitiva e diretora da Escola Modelo Caetano de Campos, na qual Anita estudou em sua infância. Mas a segurança dos traços marcantes era sobretudo de sua força interior que, naquela época, era inaceitável para uma senhorita.
Ingênua, Anita não sabia que no Brasil de então era ameaçador para certos segmentos alguém exibir talento publicamente nos primeiros exercícios de qualquer atividade, algo a ocorrer até nossos dias. Expor tanta criatividade tão jovem talvez tenha sido o seu primeiro “erro”. O segundo foi o fato de ser mulher e apresentar-se a criar e a pintar com a força pictórica de que apenas os homens eram capazes. Sua pintura era um resumo de tudo o que aquele grupo de jovens intelectuais tanto queria e a exposição era uma vitória de todos os modernistas, sacudindo intelectualmente o país. Ela, em 1917, como Segall faria em 1927, expunha quadros expressionistas acrescido de outros cubistas aprendidos na Europa e Nova Iorque com cores e formas desconhecidas do grande público paulista. Além disso, tinha a coragem de pintar um “Homem Amarelo” ou “Mulher de Cabelos Verdes” algo jamais pensado no Brasil. A exposição, compreendeu-se anos depois, foi a centelha e marco histórico do movimento surgido em 1922 : “A Semana de Arte Moderna”.
Monteiro Lobato era um intelectual e escritor de prestígio, defensor da pintura acadêmica e, oito dias depois da abertura da exposição, publicou no Estado de S. Paulo (20.12.1917) a crítica que arrasou psiquicamente a pintora e a própria exposição. O texto abriu-lhe ferida narcísica a sangrar durante dez meses, período no qual ela se recolheu em casa, longe de todos. A agressão de Lobato se estendia nas ruas pelos passantes que a conheciam e havia até aqueles que cuspiam no chão quando passavam no portão de sua casa. Dos seus admiradores e colegas de paleta, apenas Oswald de Andrade publicou texto em sua defesa. A esmagadora maioria dos amigos preferiu dar-lhe o apoio pessoalmente, algo importante, mas que não estancou a hemorragia daquela ferida. Outro texto favorável às novidades pictóricas da moça seria publicado somente em 1920 por Menotti del Picchia.
Transcorridos os dez meses, Anita voltou às suas aulas com o pintor acadêmico Pedro Alexandrino durante um semestre. Aqui é necessário o esclarecimento de que é falsa a difundida informação que ela voltou “para aprender a desenhar novamente”. Ela voltou ao ateliê de Alexandrino porque ele era valorizado artista acadêmico e a indicação de que era sua aluna facilitava a venda de seus quadros. Além disso, em 1919, seu padrinho, tutor e tio George Krug havia falecido e ela se tornara arrimo de família. Precisava, portanto, fazer algumas concessões comerciais para sobreviver.
Mas, para dividir responsabilidades do texto de Lobato, que ficou registrado no bestiário nacional e rever possível injustiça contra o escritor, é preciso rever também as circunstâncias da publicação da sua crítica. Familiares de Anita e seus manuscritos hoje asseguram a influência de parentes da pintora sobre o escritor e o pedido deles para que ele, Lobato, criticasse sua exposição de tal forma que ela, atingida pela crítica, deixasse as idéias modernistas e voltasse a pintar como todos faziam. Anita tinha dois tios – George e Arthur Krug -, engenheiros de prestigio e professores e que eram amigos de Nestor Rangel Pestana, diretor do jornal “O Estado de S. Paulo”. Este escrevera critica favorável à pintura de Anita na sua primeira exposição individual em 1914, mas registrou como falta de técnica a desestruturação dos figurativos, algo que ele não entendeu. Mas as viagens de Anita à Europa e a Nova Iorque depois da sua primeira exposição haviam-na transformado. Não é possível uma artista passar por experiências tão marcantes e avassaladoras e sair delas incólume. Seria injusto exigir isso de alguém talentosa como ela. Por isso, sua pintura mudou radicalmente em 1917. Seus tios acharam um horror tudo que ela passou a fazer. Conhecedores da técnica do desenho na engenharia, eles jamais aceitaram a desestruturação das figuras e objetos nos desenhos e pintura da sobrinha, sobretudo as acentuadas musculaturas dos modelos nus. A revolta deles contra a pintura da sobrinha foi tão grande que Tio George jamais deixou um único quadro modernista dela entrar na casa dele. Pior que isso, com a ousadia da exposição de 1917, eles decidiram dar um “puxão de orelhas” na mocinha ingênua que aderira ao que chamavam de “Futurismo”, de Marinetti, algo que não recebera seus avais. A amizade dos tios com Nestor Pestana e Monteiro Lobato facilitou a tarefa da publicação. Aquele primeiro texto de Pestana sobre Anita, publicado em 1914, apesar de conter certos elogios, continha também muitas restrições e estas, comparadas com o texto de Lobato de 1917, são muito semelhantes. A diferença é que neste, Lobato adicionou boa dose peçonhenta. Integrantes da família Malfatti hoje acreditam que o endiabrado texto do escritor de Taubaté foi encomendado pelo seu tio e até mesmo escrito por seis mãos – Tio George Krug, Pestana e Lobato -, daí a injustiça histórica com Monteiro Lobato. A assinatura deste último jamais foi encontrada no livro de visitantes da exposição, levando-se a conclusão que o “não vi e não gostei” é mais velho que supõe nossa vã filosofia. O objetivo dos tios era convencer a sobrinha a voltar a pintar como ela fazia antes de suas viagens e que esquecesse seus novos conhecimentos e influências. José Bento Monteiro Lobato está até hoje carregando culpa da devastadora crítica. Mas é importante ressaltar que, logo após a publicação de sua crítica, ele e sua editora publicaram “O Homem e a Morte”, de Menotti Del Picchia e “Os Condenados”, de Oswald de Andrade, ambos com capa contendo desenho de Anita, algo que pouquíssimos autores consideram como forma do escritor se redimir.
Em 14 de dezembro de 1920, Del Picchia publicou texto sugerindo ao escritor que “se penitenciasse de seu artigo irrefletido e pouco sensato”. A resposta de Monteiro foi alterar o título da matéria para “Paranóia ou Mistificação”, publicando-o no seu livro “Idéias de Jeca Tatu”, título que se tornou ironia histórica. Com essa publicação, ele assumiu os riscos da responsabilidade de ser o seu único autor. O intelectual, bravo e nacionalista escritor ficou registrado na história da pintura brasileira como o castrador da brilhante pintora e cuja devastadora crítica adiou por cinco anos a mais importante revolução intelectual brasileira do século 20 nas artes plásticas e na literatura: A Semana de Arte Moderna de 1922, alicerçada em Anita Malfatti e nas ideias dos “meninos”, e cujos reflexos ainda iluminam nossos dias.
(*) Psicanalista e colecionador. Integra a ABCA, AICA e o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.