“...esta cegueira é tão anormal, tão fora do que a ciência conhece,

que não poderá durar sempre”.

José Saramago – Ensaios sobre a cegueira

INHOTIM

Não é sem motivo que paraíso é uma palavra persa a significar um jardim. O dia 27 de setembro de 2004 foi a data de visita aos dois. Como convém a toda bem-aventurança, foram poucos os convidados. Destes, vários vieram do exterior: Alemanha, México, Espanha, França, Estados Unidos, Portugal, vários de São Paulo, Rio e do Brasil afora. Nessa data o empresário Bernardo Paz abriu os portões (e que portões!) de um imenso jardim projetado, desde 1984, pelos modernistas Roberto Burle Marx e Pedro Nehring César, remodelado e aprimorado pelo paisagista Luiz Carlos Brasil Orsini. Nele está localizado o EX-Centro de Arte Contemporânea de Inhotim-INHOTIM, atual Jardim Botânico de Inhotim, a 60 km de Belo Horizonte, município de Brumadinho (MG), endereço completo deste éden contemporâneo.

Inhotim começa consagrado como um dos mais lindos projetos daqueles artistas. Burle Marx é o mesmo que nos legou os jardins da Pampulha, em Belo Horizonte; o do Aterro do Flamengo; os desenhos, confeccionados com pedras portuguesas, no calçadão da avenida Atlântida, em Copacabana, ambos no Rio de Janeiro. Além deles, deixou-nos milhares de desenhos, gravuras e telas que vão do figurativo ao abstracionismo. Em Inhotim o mérito de beleza pertence ao brilhante paisagista e a Nehring, e ainda a Orsini que o aprimorou. Registre-se um crédito ainda maior para Bernardo Paz, que teve a ousadia de executar uma obra cuja grandiosidade é difícil de adjetivar. Mesmo se considerarmos que a maioria dos artistas faz substancial concessão comercial quando as peças são destinadas a museus de prestígio, ainda assim os investimentos financeiro, afetivo e emocional na execução do projeto e na aquisição do acervo foram altos. O investimento no jardim é impossível calcular.

O local era uma pedra de cascalho, se comparado ao brilhante que é hoje, quando foi comprado há mais de 20 anos. Era uma pequena fazenda para os padrões mineiros, ou um “sítio” como gosta de chamá-lo seu dono. Neste período, Bernardo Paz o transformou na jóia atual, que vem sendo lapidada com recursos apenas do empresário. Ele promete novos polimentos no brilhante e mais que dobrar a sua luz no futuro.

Sua entrada é uma esplendorosa rota de imensas palmeiras imperiais envoltas por arecas-bambus, a garantir uma atmosfera tropical apropriada para quem vive abaixo da linha do Equador. Nos trezentos mil metros quadrados que o compõem, há quatro lagos nos quais um lendário casal de cisnes negros exibe sua majestade e mais uma quantidade enorme de coloridas aves da família dos anatídeos, além da presença dos nativos bem-te-vis, sabiás e colibris, todos a ratificar e a viver da beleza do lugar. Nos locais nos quais não há jardins planejados com bromélias, a grande paixão paisagística de Burle Marx, há um impecável gramado. Como altruísmo público de empresários e banqueiros é raridade nesta Terra de Santa Cruz, aplausos eternos para Bernardo Paz que enfrentou guerras e guerreiros até sair vitorioso desta “loucura”. Indagado por que tanta generosidade com Minas Gerais, o empresário responde com a segurança do colecionador que percorre o caminho da arte com devoção religiosa: “a vida é um sopro, o importante é o que a gente deixa nela”.

O paraíso de Inhotim tem, por enquanto, sete prédios projetados pelo arquiteto Paulo Orsini. Foram construídos especialmente para abrigar e expor a coleção de arte contemporânea, constituída de 450 obras, incluindo instalações king size, além de belas esculturas de Saint Clair Cemin, Paul McCarthy , Edgard de Souza, Iran do Espírito Santo e Amílcar de Castro, espalhadas entre a vegetação, cicas e árvores gigantescas. Telas dos artistas Franz Ackermann, Albert Oehlen, Carlos Vergara e muitos outros podem ser vistas nas suas paredes, além de uma impressionante auto-fotografia de Yasumar Morimura, colocada na biblioteca e homenageando duplamente Frida Kahlo e a própria pintura.

Bernardo Paz já foi apaixonado pelos modernistas como Guignard, Di Cavalcanti, Portinari, Ismael Nery, Anita e Tarsila e colecionava suas obras com a mesma paixão com que hoje julga essa arte “válida e importante apenas no seu tempo”. Ele vendeu tudo que tinha deles e comprou o acervo atual. As instalações são projetadas por Cildo Meireles, Ernesto Neto, Jarbas Lopes, Valeska Soares, Oiticica em parceria com Neville d´Almeida e tantos outros contemporâneos. Um dos prédios abriga uma única instalação de Tunga, o mais prestigiado em espaço físico entre os contemporâneos, “True Rouge” de 1997. Ela é construída com peças de plásticos, desentupidores de pias de cozinhas e outros itens descartáveis do nosso cotidiano, colocados numa pequena rede a formar uma embalagem. Esta, por sua vez, está presa por uma peça de madeira fixada ao teto por cordas e fios de aço. Pretende-se uma harmonia e equilíbrio na colocação e na composição. Exceto pelo aço, exigir-se-á manutenção permanente sobre os outros objetos da instalação para que ela tenha a perenidade que se espera de uma peça de museu, algo que o colecionador julga natural. “Qualquer obra precisa de manutenção”, explica ele.

Noutro prédio, o mesmo Tunga apresenta outra instalação com materiais mais que perenes: cobre, aço e imã. As dezenas de delgados fios de cobre foram agrupadas e trabalhadas de tal forma que resultam nas incríveis, delicadas e pesadas tranças femininas, um dos itens a compor a obra. Penteados parecem ser um de seus fascínios, uma vez que Tunga também criou pequenas esculturas com fios de cabelos humanos presos por “piranha”, denominação de objeto próprio para segurar as madeixas em forma de rabo-de-cavalo. A idéia da primeira instalação, segundo Paz, é transmitir “erotismo” através do vermelho e desta última “um grande bacanal”. Contrastando com a natureza do lado de fora, perceptível através dos vidros transparentes a cercar o prédio, há, por certo e internamente (este “internamente” de forma objetiva e subjetiva), mais choques emocionais, intelectuais e afetivos nas duas instalações do que desejos voluptuosos manifestados nas peças e no “rouge” do título.

Cildo Meireles se apresenta com uma peça construída durante 19 anos com material mais que perene: sua escultura “Immensa” é toda de chapa de aço e ocupa uma área no jardim, idêntica ao seu título. Sentimo-nos humilhados na sua presença, tão grande é o seu tamanho. Sua outra instalação “Glove Trotter” é feita também de aço, mas este em forma de malhas, colocadas como se estas fossem luvas a cobrir bolas de vários tamanhos, espalhadas pelo chão. Este articulista associa o seu nome e a própria instalação aos “Globe Trotters”, fantásticos jogadores americanos de basquete e o seu título a uma ironia polissêmica. Iran do Espírito Santo concretiza na escultura de pedra uma lembrança daquela desenhada por Dürer em sua célebre gravura “Melancolia”, que mexe com a cabeça dos artistas ao longo de seus mais de 500 anos de existência.

Ao visitar o acervo, o espectador de museus comuns se sentirá defronte do surpreendente, chocante, inusitado e absurdo, causador da mais pura perplexidade e, por causa desta, se sentirá paralisado. Quase todo o acervo é impactante para quem não está familiarizado com a arte contemporânea. Esse mesmo espectador se sentirá íntimo apenas de uma instalação literalmente móvel representada por três automóveis Volkswagen, o inesquecível fusquinha, pintados de cores e em partes diferentes e iguais, daí a sua denominação “Troca-Troca”, executada por Jarbas Lopes.

Bernardo Paz acha que esse choque cultural já existiu anteriormente quando Picasso e Braque criaram o cubismo; quando Di Cavalcanti pintou mulatas nuas: “quem vai querer um quadro desses, foi o que disseram na época, quando Di começou a expô-los”, explica ele. É verdade. E não foram somente esses artistas a terem dificuldades com as suas criações. Houve Ismael Nery, redescoberto e valorizado apenas trinta anos após a sua morte, e a do sempre lembrado Guignard passando privações em Belo Horizonte. E nem foi Di o único modernista a ter problemas com sua pintura; a lista de artistas injustiçados pelos seus contemporâneos é enorme. Antonio Bento informa que apenas a partir de 1950, vinte e oito anos após a Semana de Arte Moderna de 1922, os modernistas foram valorizados no Rio, a capital federal e intelectual do Brasil de então. A exposição da Escola de Paris, trazida de lá por Vicente do Rego Monteiro em 1930 e exposta em Recife, Rio e São Paulo passou ignorada nas três capitais. Todos os argumentos de Bernardo Paz têm, portanto, respaldo na história da arte e na biografia de vários artistas brasileiros e internacionais.

Mas há diferença fundamental entre certas instalações e vários objetos da arte contemporânea e o cubismo. Este surgiu a partir das composições de Cézanne e tinha apoio numa antiga e insolúvel questão filosófica: a impossibilidade de se ver o mesmo objeto de diferentes lugares ao mesmo tempo e pelo mesmo espectador. A tentativa de solução dessa dificuldade foi iniciada nas telas do mestre francês e aprimorada pelos cubistas através da representação de objetos geométricos, de preferência aqueles comuns e simples, como se eles fossem vistos desses vários ângulos, criando novas perspectivas, como se fosse também possível achatar o tempo e o espaço num suporte bidimensional. Não foi a única, mas é uma das mais importantes razões de seu sucesso e beleza até hoje e é parte da causa da sua perpetuidade. Quanto aos modernistas, eles executaram um somatório do que já ocorrera na Europa e trouxeram uma brilhante contribuição para um Brasil ainda acadêmico demais para perceber a grandeza deles.

Para este articulista chega a ser paradoxal encontrar um colecionador apaixonado pela arte contemporânea que julga os modernistas importantes apenas no seu tempo, mas que tem como peça principal de seu museu o jardim projetado pelo também modernista Burle Marx e a arquitetura dos prédios no estilo que consagrou Oscar Niemeyer. Paradoxos à parte, o lugar é maravilhoso e veio para marcar o Brasil na arte contemporânea e imortalizar seu criador.

A Arte Contemporânea

Quanto a arte contemporânea, esta é a nomenclatura dada por leiloeiros americanos e europeus, a partir dos anos 1960, a determinados objetos artísticos colocados à venda e que não se enquadravam em qualquer categoria então existente. Com freqüência, ela é o que se espera de toda arte: o reflexo da sua contemporaneidade. Neste sentido, ela representa e denuncia bem o que foi o século XX: cheio das piores idéias totalitárias de direita e de esquerda, muita tecnologia apurada e pouquíssimo humanismo. A dificuldade de sua compreensão e aceitação pelo grande público e por parte da crítica especializada começa quando vários desses artistas denunciam sucessivamente o que todos já sabemos e quando suas obras não apresentam contribuição para um novo e necessário despertar humanístico. Como denúncia é muito pouco. Como solução do impasse humano no qual vivemos é nenhuma. Ao contrário do que acreditam os humanistas quando afirmam que a arte tem por função única melhorar o ser humano, os apaixonados contemporâneos declaram que ela há muito perdeu esse objetivo. A premissa é falsa, perigosa e constrange porque nega a existência dos enviados de Deus, transformando-nos todos em ou pessoas comuns ou todos em artistas; nega a grandeza do ser humano e o que a arte tem de melhor, reduzindo as conquistas da nossa filogenia. Seus integrantes correm, e fazem todos correr juntos com eles, o risco de diminuir cada vez mais as oportunidades da volta de um novo humanismo, idêntico àquele que fez surgir o Renascimento. Risco e denúncia confirmados na escultura de Cerith Wyn Evans, também do acervo do INHOTIM, construída com fogos de artifício, madeira e fotografia, com os quais Evans gravou a frase “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”, que resume, em certos aspectos, a arte contemporânea e o século passado e que o INHOTIM, de forma contundente, desmente.

Alguns de seus criadores e admiradores alegam que a estética, a categoria das coisas belas, não precisa fazer parte dessa nova forma de apresentação de arte. Querer negar ou destruir uma categoria, sem ter algo de melhor para substituí-la, apenas ratifica a nossa pobreza, repetindo o que precisamos evitar. Além disso, o século XX, pelo que foi, não oferece nada capaz de substituir a milenar estética. Sempre coube aos artistas nos guiar nos imprudentes caminhos percorridos pelos horrores das diferentes globalizações mundiais. Não é possível reconhecer como arte equívocos passageiros, como cocô enlatado, o caos da cena de um quarto com a cama desarrumada com camisinhas e garrafas pelo chão, montinhos de areia e outros “cacarecos e idéias idiotas”, como os chamou o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, expostos em museus nacionais e europeus. Acreditar que objetos dessa natureza ficarão como registros artísticos é desvalorizar as gerações futuras. Além disso, somos todos filhos do modernismo, netos do cubismo e bisnetos do impressionismo, parentesco que nos vacinou contra a tragédia de não percebermos a grandeza de novos valores artísticos, como ocorreu no passado.

A ética piorou nas últimas décadas e, junto com a economia globalizada, desumanizou os governos e as pessoas. Entramos na era de Drácula e espera-se que desejamos sair dela e recuperar o humanismo perdido. A criação da beleza, privilégio dos artistas, é um dos caminhos para reencontrá-lo e, apoiados nele, sairmos do vampirismo que assola o mundo. Imaginar que essa é função a ser garantida pelos políticos e pelo Estado é o mesmo que ficarmos à sombra de cactos esperando colher pêssegos e uvas.

Vivemos o mais paradoxal dos séculos, o de sermos Midas e o anti-Midas simultaneamente. Como Midas, criamos um acervo de novas tecnologias impensáveis há 70 anos e, lastreados na freudiana pulsão de morte, tornamo-nos o anti-Midas, usando as mesmas invenções para destruir Varsóvia, Dresden, Pearl Harbour, Hiroshima, Nagasaki e as Torres de Nova Iorque. Naqueles paradoxos artísticos, aprendemos que a arte é como a verdade: ambas são filhas do tempo. Por isso, somente ele confirmará de qual ponto de vista se aplica a frase de José Saramago que abre este texto.

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