A história da arte é, com frequência, construída sobre os alicerces da incompreensão e da injustiça. Vemos hoje centenas de obras-primas expostas em museus e não compreendemos a falta de visão dos que as repudiaram na ocasião de suas apresentações. Manet, Cézanne, Van Gogh, Gauguin e o nosso sempre lembrado Guignard, admirado por seus alunos e poucos colecionadores apaixonados pelo seu trabalho, são lembranças em qualquer texto sobre o assunto. El Greco só começou a ser valorizado no final do século 19 e Vermeer foi descoberto duzentos anos depois de sua morte. Nosso Ismael Nery foi redescoberto a partir de 1965, mais de trinta anos depois de sua morte. Esses são artistas não contemporâneos deles mesmos, condição inexorável para ser reconhecido e valorizado em vida. Mas, muita atenção, houve centenas de pintores repudiados com justiça ao longo dos anos e dos quais nunca ouvimos falar, comprovando a opinião do júri dos diversos Salões. O motivo da existência desses recusados é a frequência cada vez maior de pessoas sem talento imaginando serem artistas.
Não foi o caso de Paul Cézanne, desvalorizado durante décadas na Paris da segunda metade do século 19, mas valorizado antes de sua morte aos 67 anos de idade, ocorrida no dia 22 de outubro de 1906. O mundo, muito justamente, registrou o seu centenário de morte com várias exposições, todas realizadas em países acima da linha do Equador.
Cézanne foi o pintor mais burguês de sua geração, atributo compensado pela coragem da transgressão pictórica. Seu pai era comerciante e, por causa de crise no seu segmento, tornou-se sovino banqueiro. Ganhou muito dinheiro e demorou a aceitar a idéia de ter um filho pintor. Preferia vê-lo dirigindo o banco da família. Enviava-lhe mesada de duzentos francos, valor causador de inveja entre seus colegas de paleta. Esse montante foi reduzido para cem depois que o pai desconfiou da existência da nora que ele repudiava e do neto, união negada pelo filho. A avareza do pai crescia na mesma proporção do seu dinheiro e velhice, enquanto Cézanne tinha medo de perder a sua pontual mesada.
O brilhantismo pessoal, o incomensurável talento, a coragem de transgredir, acrescidos da famigerada mesada, permitiram-lhe inovar o existente até então no mundo pictórico, sem se preocupar com venda de seus trabalhos. Viajando entre Paris e dando preferência descarada pelo interior da França, Cézanne foi construindo um caminho iniciado no impressionismo, mas abandonado-o cedo, fazendo a sua própria trilha. Ele deu sua contribuição definitiva à pintura quando geometriza os elementos de suas composições, apresentando-os em forma de sutis cilindros, cones e esferas, e, acima de tudo, cria a profundidade numa tela bidimensional exclusivamente pela valorização da cor. Esta vai formar as linhas e não o contrário, como havia sido até então. Era um caminho novo na pintura e um passo à frente dos impressionistas, que insistiam na tomada da luz como fim. É essa geometrização e a valorização das cores a governar toda sua criação, marcas perceptíveis nas paisagens de Auvers-sur-Oise e constituidoras do seu maior mérito, incompreendidas e vistas como deméritos pelos jurados. Esse procedimento foi aplicado nas pinturas de paisagens do interior francês e naquelas de naturezas-mortas com as célebres maçãs. Essas idéias cresceram e se apresentam nas composições que intrigam e literalmente desnorteiam o espectador até hoje. Os elementos de suas composições são pintados como se fossem vistos de diferentes ângulos por diferentes espectadores. Ao fazer isso, Paul Cézanne cria as bases do cubismo, nascido um ano após a sua morte. Nesta ocasião, Picasso e Braque passaram a pintar o mesmo objeto como se visto por vários lados, consolidando o que o artista francês iniciara. Cézanne é o pai do Cubismo, escola que consagrou os dois cubistas, ambos reconhecedores do tanto que deviam ao mestre francês. Sem Cézanne, não teríamos Matisse, nem os cubistas, nem Leger e nem a pintura moderna.
Por causa dessas transgressões, foi incompreendido e recusado nos Salões de Paris de 1863, 1864, 1865 e 1866, quando, revoltado, pede a volta do Salão dos Recusados para expor. Como este não foi restabelecido, ele insistiu no reconhecimento do seu valor, enviando novos trabalhos a cada ano, mas agora agredia os jurados com alta dosagem de ironia nos títulos de seus quadros “A Orgia”, “A Violação”, “A Mulher e a Pulga”, “O Grogue de Vinho”, pintando casal nu sobre a cama coberta com lençol banco ou outros temas considerados “indecentes”. Chocar os burgueses era a sua ordem e a de alguns seus amigos contemporâneos. Baudelaire foi um transgressor literário do seu tempo e o seu livro de poemas “Flores do Mal” foi retirado de circulação e ele pagou multa de cinqüenta francos pela sua publicação; “Naná” , de Zola, causou escândalo e direitos autorais impensáveis ao autor. Manet foi outro causador de reboliço em 1865, com a sua recusada Olympia, uma obra-prima arrasadora, esquecida durante anos e nunca vendida por falta de comprador, hoje patrimônio cultural francês. A mesma Olympia que, perturbando tanto Cézanne, foi por ele parodiada em vários quadros.
Os trabalhos de Cézanne foram causa de risos e troças durante muito tempo, em especial na célebre exposição nos estúdios do fotógrafo Nadar, em 1874, no Boulevard des Capucines, na qual estavam Sisley, Pissaro, Monet, Renoir, Cézanne e Berthe Marisot, um conjunto a formar a mais importante geração de artistas franceses. Nesta exposição surgiu a palavra “impressionismo”. Todos foram ridicularizados pela crítica e pelo público. Nem mesmo Zola agora um escritor consagrado e que havia defendido Manet, em 1865, com a sua Olympia, se mexeu em defesa dos amigos que admirava.
Dez anos antes de sua morte, conservando o lirismo de sempre, Cézanne volta a exaltar a forma e a cor, suas companheiras desde os primeiros anos de pintura e suas musas na invenção de novas realidades. Exaltações que Matisse e os fauvistas louvaram, de que os cubistas se apropriaram e Malevitch e Mondrian levaram às últimas conseqüências. Não há qualquer pintor em qualquer lugar do mundo que não tenha se apropriado de algo de Cézanne.
O mestre morreu em decorrência de pneumonia, adquirida enquanto ele continuava pintando sob a chuva que encharcava o seu casaco. Doente, aguardou quase uma semana a chegada de Hortense, sua mulher, que sempre preferiu Paris, e do sempre amado filho Paul. Nenhum deles chegou a tempo de vê-lo ainda com vida.