Um dos mais influentes e requintados pintores dos Países Baixos da metade do século XV, Rogier van der Weyden nasceu em Tournai, na Bélgica. Depois de estudar com Robert Campin, mudou-se para Bruxelas, onde logo chegou a pintor oficial da cidade. Executou também inúmeras e importantes encomendas para membros da corte de Borgonha, incluindo o Duque Filipe, o Bom.
Foi um homem pacato, cuja carreira, também tranqüila, muito o gratificou: ficou rico e alcançou fama internacional. Com intensa carga emocional, suas pinturas religiosas refletem uma forte convicção pessoal, enquanto seus retratos sempre se caracterizaram pelo caráter introspectivo. O estilo naturalista expressivo de sua obra exerceu grande influência, determinando o rumo das artes nos Países Baixos.
O Pintor Oficial de Bruxelas
Um dos mais importantes artistas do século XV, Van der Weyden
nunca foi revolucionário: sempre se ateve aos cânones
éticos e estéticos de sua época, mas foi brilhante em tudo o que fez.
O nome de Rogier van der Weyden esteve, ao longo da história, seriamente ameaçado: como nunca assinou nem datou seus trabalhos, eles foram confundidos com os de contemporâneos seus, como Van Eyck e outros homônimos, também pintores, na Bélgica flamenga do século XV; e críticos chegaram a levantar a hipótese de que ele nem teria existido. Assim, não fosse a descoberta de documentos a seu respeito, em meados do século XIX, seria impossível reconstituir sua trajetória. Homem de grande religiosidade e de vida familiar impecável, sua obra desde cedo também se caracterizou pela sobriedade e por um realismo austero, conjugado a uma precisão de traços quase naturalista.
Pelo que se sabe, Van der Weyden teve uma vida pacata e sem sobressaltos, recebeu muitas honrarias e encomendas prodigamente remuneradas. Como pintor e como cidadão estava longe de ser revolucionário: seu trabalho e sua conduta jamais ultrapassaram os cânones estéticos e morais vigentes em sua época e em sua terra. Mas, no que fez, foi brilhante.
Nasceu por volta de 1399, na cidade de Tournai, na Bélgica, filho de um cuteleiro ou de um escultor — não se sabe ao certo.
Dos dados oficiais sobre sua vida, concluiu-se que, por volta de 1427, era aprendiz do pintor Robert Campin, ainda em Tournai. Essa iniciação artística deve ter durado cerca de cinco ou seis anos, época em que ele se dedicou a copiar esculturas e portais de igrejas, como era costume. Esses exercícios deixariam marcas duradouras em suas pinturas, tanto pela inclusão de motivos arquitetônicos como na plasticidade de suas figuras. Nessa mesma época, supõe-se que Van der Weyden tenha estado em Bruxelas, onde se casou com Ysabel Goffaerts, com quem teria dois filhos: Cornélio e Pedro.
A idade de 26 ou 27 anos era considerada já um pouco tardia para a iniciação artística, e é provável que ele já trabalhasse com Campin e que, então, tenha se matriculado como aprendiz apenas para preencher as condições exigidas de um professor independente: a Associação dos Pintores de Tournai só qualificava um artista como mestre depois de um aprendizado formal de quatro anos. Parece, no entanto, que Rogier prolongou seu curso por cinco anos, já que seu registro como mestre data de 1432.
Na Tournai de língua francesa, Rogier era conhecido como "de la Pasture", nome traduzido para Van der Weyden quando ele se transferiu para Bruxelas, capital do Ducado de Brabante, em 1435. Foi tão bem-sucedido que já no ano seguinte era nomeado pintor oficial da cidade — seria, aliás, o último artista a receber tal distinção, extinta depois de sua morte.
UM HOMEM SEDENTÁRIO
O novo título o conduziu a encomendas oficiais, como os quatro grandes painéis sobre a Justiça, pintados na sala do tribunal da Prefeitura. Ilustravam a Justiça de Trajano e Herkinbald, o legendário Duque de Brabante, e destinavam-se a servir de lembrança aos juízes sobre seus ancestrais ilustres. Era um projeto enorme e deve ter consumido muitos anos de trabalho: o primeiro painel data de 1439 e presume-se que os outros tenham sido terminados no decorrer da década de 1440. (Seriam destruídos pelos soldados de Luís XIV, em 1695.) No entanto, parte de seu esplendor pode ser medida numa tapeçaria atualmente exposta em Berna, que inclui o retrato do próprio Van der Weyden.
O cargo de pintor oficial não o impedia de aceitar outros trabalhos. Assim, trabalhou também para o Duque de Borgonha, Filipe, o Bom (1396-1467), e produziu retratos famosos que só chegariam até nós em cópias — de Filipe e de seu sucessor, Carlos, o Temerário. Membros da corte de Borgonha, entre eles o filho ilegítimo de Filipe, Antonio, também lhe solicitaram retratos, com o objetivo de terem a própria imagem eternizada em quadros votivos. Outras encomendas para obras públicas chegavam às mãos de Van der Weyden, especialmente os grandes retábulos: Juízo Final, por exemplo, foi pintado a pedido do chanceler de Borgonha, Nicholas Rolin, para seu hospital (Hotel-Dieu) em Beaune.
Nessa época não havia divisão entre patrões seculares e eclesiásticos, pois tanto os bispos como os dirigentes religiosos vinham das mesmas famílias nobres; outras vezes, também estavam a serviço do Duque de Borgonha, como Jean Chevrot, bispo de Tournai entre 1436 e 1460, que encomendou a Van der Weyden o Retábulo dos Sete Sacramentos, e foi incluído entre as figuras da composição.
Mas o acesso a Van der Weyden não era privilégio dos dignitários da Igreja e do Estado, estendendo-se a qualquer um que pudesse pagar por seus trabalhos. O Tríptico de Santa Columba, por exemplo, hoje em Munique, foi solicitado por um dos mais prósperos comerciantes de Colônia. Havia também as encomendas de sociedades, tal como a da Associação dos Arqueiros de Louvain, para a qual Van der Weyden pintou A Deposição.
Ele não precisava viajar em busca de trabalho, pois, desde que se instalou em Bruxelas, saiu dali apenas uma vez — segundo os registros: em 1450 esteve em Roma, onde proclamou Gentile da Fabriano o maior pintor da Itália na época. Sentia-se seguro para emitir tal juízo após examinar os afrescos de Gentile na Basílica Lateranense, em Roma (também destruída). Pouco antes de 1450, acredita-se que estivera em Ferrara, onde o Marquês Leonello d'Este lhe encomendou algumas obras. Ainda antes de chegar a Roma, os historiadores presumem que Van der Weyden teria estado também em Milão e Florença. Essa hipótese surgiu devido à transformação que se processou em sua pintura: muito da dramaticidade e da plasticidade incorporadas às obras do período seguinte a 1450 teriam origem na visita do pintor à Igreja del Carmine, em Florença, onde os afrescos de Masaccio muito o impressionaram.
PRESTÍGIO E AUSTERIDADE
Como Van der Weyden não costumava viajar, os outros artistas tinham que vir até ele. Em 1460, por exemplo, a Duquesa de Milão enviou seu pintor da corte, Zanetto Bugatto, para estudar em Bruxelas. Além da técnica de composição, Bugatto estava ansioso por aprender a téc- -g nica da pintura a óleo que permitia maior realismo nos retratos e ainda era praticamente desconhecida na Itália.
Mas a temporada de Bugatto em Bruxelas não passou sem estremecimentos. Segundo um relatório dos embaixadores de Veneza nos Países Baixos, Bugatto e Van der Weyden teriam se desentendido e o pintor flamengo só aceitou seu discípulo de volta depois de uma intervenção de nada menos que o exilado delfim da França, o futuro Luís XI. O motivo da briga parece ter sido o gosto exagerado de Bugatto por vinho.
Esta passagem, além de ilustrar a austeridade de Van der Weyden, ilustra também a dimensão de suas relações sociais. Prestigiado e rico, ele pertencia à respeitada confraria de Santa Cruz da Igreja de Saint Jacques-sur-Coudenberg e ganhava o suficiente para investir não apenas em fundos em Tournai como também para oferecer generosas doações às instituições religiosas, especialmente para os Conventos de Scheut e Herinnes, onde seu filho Cornélio era monge.
São apenas esses os fatos que se conhecem a seu respeito. Outras informações não resistem a um estudo mais aprofundado. Sabe-se, por fim, a data de sua morte em Bruxelas: 18 de junho de 1464. Foi enterrado em Sainte Gudule, a Catedral de Bruxelas.
Mestre das Emoções
Das emoções ele foi, sobretudo, mestre em compor a tristeza,
em quadros que estabeleciam uma relação mais íntima
entre figuras sagradas e mortais, humanizando, assim, os temas religiosos.
A arte de Rogier van der Weyden, com sua representação sóbria e precisa do sentimento religioso, constitui uma das grandes vertentes da pintura flamenga dos anos 1400.
Outra é a de Jan van Eyck (1390?-1441), de quem é justo reconhecer a mestria de execução e de criatividade. Como ele, Van der Weyden foi considerado um dos mais notáveis pintores de Flandres. Mas sua influência sobre toda a floração artística da Alemanha foi incomparavelmente superior à de Van Eyck. Finalmente, foi ainda Van der Weyden quem transmitiu pela primeira vez aos italianos o segredo da pintura a óleo — contribuindo, assim, de modo decisivo paia o desenvolvimento da arte renascentista.
E, enfim, dono de uma obra que contribuiu para o estabelecimento de novos padrões artísticos nos Países Baixos e cuja novidade seria aceita e divulgada por toda a Europa.
Essencialmente religioso, ele, no entanto, sempre se inclinou para o lado trágico e sombrio da religiosidade cristã: Deposições da Cruz, cenas de martírio da Paixão foram seus assuntos mais freqüentes e superam o número das Adorações de Reis Magos e das Natividades. Mas seus retratos já se libertam dos modelos ideais, rumo à captação de uma realidade psicológica. Além disso, a preocupação com os detalhes fez de suas telas um documento objetivo da moda de seu tempo e da aparência física de seus contemporâneos.
Por isso, sua nota mais pessoal se firmaria nos quadros religiosos — abrindo um caminho que seria ampliado com a mais completa originalidade por El Greco (1541-1614).
São quadros em que as cenas da história de Cristo soam como episódios de uma vida burguesa, onde, por exemplo, o anjo que vem anunciar à Virgem o nascimento de Jesus parece que visita uma senhora de elegância sóbria. E a humanização dos temas sacros que a pintura flamenga inaugura. Sem nada ceder ao devido respeito à divindade, instaura uma relação mais íntima entre anjos e mortais, santos e grão-senhores — todos lado a lado em cada tela.
Tal característica se repete no Retábulo de Miraflores, onde Van der Weyden retoma os três momentos fundamentais da Paixão: a Natividade, a Morte e a Ressurreição. E traz os pormenores típicos de sua arte: os anjos e apóstolos que compõem os arcos em primeiro plano, como esculturas e portais góticos; a descrição simultânea de várias cenas (no quadro da extrema-direita vê-se através da janela a ressurreição de Cristo); a utilização freqüente de colunas e detalhes arquitetônicos que dá profundidade às situações representadas. O painel central — que agradou muito ao público e aos críticos da época — constitui um tema conhecido como "Dieu de Pitié", ou seja, a representação de uma tragédia sacra, a morte física de Cristo.
Mas essas obras parecem tímidas diante da monumental Deposição. Salva por sorte de um naufrágio quando enviada à Espanha pela regente húngara Maria, tia de Filipe II, que a comprou da Associação dos Arqueiros de Louvain, tornou-se um dos temas solicitados com mais freqüência a Van der Weyden, devido à mestria com que foi realizado. O ritmo e a dinâmica dessa composição surgem das massas diametrais e paralelas dos corpos que se tocam com extraordinária suavidade: o de Cristo morto e o da Virgem. As expressões são todas de sofrimento e contrição. E a simbologia medieval das cores acentua o clima trágico: o vermelho do manto de São João Evangelista é um símbolo recorrente da Paixão; o azul do manto da Virgem representa a perseverança na Fé; os trajes luxuosos da figura que parece ser um nobre chamado Nicodemo significam a transitóriedade do poder e dos bens terrenos diante da morte (a caveira e os ossos dispersos). Enfim, sem ser um grande colorista, Van der Weyden imprimiu grande beleza cromática a esse quadro movimentado, cuja sóbria dramaticidade orquestrada em surdina.
COMPONDO AS EMOÇÕES
Muito da obra de Van der Weyden se perdeu, chegando até nós apenas em forma de cópias. E só três quadros podem ser considerados — com segurança — originais: o Tríptico da Virgem (ou Tríptico de Miraflores), hoje em Berlim, a Crunficação, que está no Escorial, e A Deposição, exposta no Museu do Prado, em Madri.
Van der Weyden transmite o significado religioso de sua obra especialmente por meio da intensidade das atitudes e das emoções de suas figuras. Nas emoções fortes, aliás, ele foi um mestre em compor a tristeza: a figura retorcida de Maria Madalena em A Deposição e as almas angustiadas que se dirigem para o inferno em O Juízo Final.
Nesse quadro, realizado para decorar o altar do hospital de Beaune, não são necessários demônios para traduzir a condenação. bastam os próprios condenados; e. finalmente, a profunda tristeza estampada no rosto de outra Maria Madalena, retratada como uma típica mulher medieval. Aqui, ainda, mesclam-se mais uma vez os detalhes religiosos e profanos: o traje da santa hesita entre a simplicidade do manto azul e a riqueza do brocado; e não há motivos arquitetônicos — a natureza ao fundo dimensiona um contexto terrestre imediato. Nesse quadro, assim como em outros retratos, os contornos nítidos do desenho, a suavidade da cor e a tênue transparência das pinceladas reforçam a impressão do grande domínio técnico alcançado por Van der Weyden no final de sua carreira. E, mesmo revestindo de colorações religiosas, ele captou e soube expressar as profundas emoções do homem.