Filho de um homem rico e extremamente dominador, Cézanne estudou Direito e trabalhou no banco de propriedade da família, em Aix-en-Provence, antes de mudar-se para Paris. As primeiras telas — exacerbadamente eróticas —, bem como um temperamento tenso, quase neurótico, contribuíram para forjar a imagem de excêntrico. Trabalhou anos, porém, para dominar sua técnica, emergindo como um dos maiores artistas do século XIX. Aderiu ao Impressionismo, mas aos poucos foi criando uma linguagem própria, que iria firmá-lo como "o pai da arte moderna". A fama chegaria tarde: em 1895, uma primeira grande mostra individual revelou sua genialidade a um público incrédulo. Nos últimos anos, na solidão do interior da Provença, dedicou sua vida à arte, pintando intensamente até que a morte chegasse, aos 67 anos.
Estranho, Arredio e Obstinado
Durante a infância, Cézanne viveu dominado pela forte
personalidade do pai. Cresceu e se tornou uma figura solitária
e excêntrica, voltada apenas para o universo de sua arte.
Paul Cézanne nasceu a 19 de janeiro de 1839, em Aix-en-Provence, pequena cidade da região mediterrânea francesa. Seu pai, Louis-Auguste Cézanne, era um próspero chapeleiro que, em 1848, fundou com um sócio o Banco Cézanne & Cabassol — o único existente em Aix cujo crescimento trouxe fortuna à família. A mãe, Anne-Elisabeth-Honorine Aubert, havia sido operária da fábrica de chapéus de LouisAuguste, com quem se casou em 1844, quando Paul já tinha 5 anos. A fortuna de Louis-Auguste tinha como símbolo uma enorme propriedade fora dos limites de Aix, chamada Jas de Bouffan, e que seria o lar da família a partir de 1859. Esse berço dourado garantiu a Cézanne, ao longo da vida, a sobrevivência material, mas sua luta se desenvolveria noutro plano.
AMIGOS DA JUVENTUDE
Aos 13 anos, Cézanne ingressou no Colégio Bourbon, em Aix, revelando-se um aluno aplicado e com bom desempenho nas várias disciplinas. A exceção — que não deixa de ser irônica — era o desenho. Pois seus traços pouco convencionais não eram bem recebidos pela ortodoxia de seus mestres. Apesar de pouco sociável, fez bons amigos no colégio, entre outros, Emile Zola, o futuro grande romancista. Era o início de uma sólida amizade, que os uniria por mais de trinta anos. Juntos estudavam e se divertiam nas horas livres. Costumavam nadar e pescar, declamar poemas e sonhar com o futuro. Cézanne sempre se lembraria com nostalgia dessas cenas da infância.
De início, Cézanne e seus amigos pensavam que ele se tornaria um poeta. Mas, com o passar do tempo, seu interesse se dirigiu para a pintura, e ele começou a freqüentar com entusiasmo um curso livre de desenho na Academia de Arte de Aix. Concluindo aos 20 anos os estudos no Colégio Bourbon, Cézanne só tinha um objetivo: deixar Aix e unir-se a Zola, que morava por essa época em Paris, para dedicar-se inteiramente à arte. Mas Cézanne não podia romper com a familia. Tinha muito medo de seu pai dominador, que não se interessava absolutamente por arte e valorizava apenas o dinheiro.
Cedendo à imposição paterna, Cézanne matriculou-se nesse mesmo ano na faculdade de Direito. Mas em abril de 1861, enfim, vencendo a oposição do pai e suas próprias incertezas pois já revelava certa tendência à apatia e à depressão —, chegou a Paris. Recebia do pai uma mesada, o bastante para sobreviver razoavelmente instalado.
Seis meses mais tarde, Cézanne retornava a Aix. Apesar do apoio de Zola, não conseguira integrar-se no meio artístico e social de Paris nem superar a forte depressão que o fez destruir todas as suas telas. Voltou cheio de dúvidas. Mas um ano de trabalho e tédio no banco do pai o convenceu a tentar Paris novamente. Em novembro de 1862, aos 23 anos, transferiu-se para a capital, com o firme propósito de prosseguir na carreira artística.
Em Paris, Cézanne se submeteu aos exames de admissão na Escola de Belas-Artes. Sem êxito, nunca mais faria nova tentativa. Mas continuava pintando e regularmente enviava telas ao Salão oficial. Mas, ano após ano, o júri se recusava a exibir seus trabalhos. Paradoxal, Cézanne, ao mesmo tempo que buscava o reconhecimento de sua arte, provocava a rejeição que tanto temia: proclamava abertamente as incoerências do sistema oficial, dava títulos provocativos às suas telas e escrevia cartas agressivas à superintendência do Salão.
Havia outros elementos contraditórios na personalidade de Cézanne que o incompatibilizavam com os colegas. Era tímido e irritadiço, não gostava de interferências — o que se traduzia num medo quase patológico de ser atingido. Tinha profundas dúvidas quanto ao valor de seu trabalho, ao mesmo tempo que suspeitava que outros copiassem suas idéias. Na companhia de amigos, adotava posturas deliberadamente estranhas, posando de camponês grosseiro e acentuando seu sotaque provençal.
O CONTATO COM OS IMPRESSIONISTAS
Na década de 1860, o Café Guerbois era ponto de encontro de artistas, entre eles, Manet e Degas. Cézanne foi levado até lá pela primeira vez por Camille Pissarro. No café, comportava-se ainda de forma mais estranha, ouvindo em silêncio as discussões entre os amigos. Mas, se algum comentário sobre sua pessoa o irritasse, retirava-se bruscamente. "São um bando de bastardos; vestem-se tão bem quanto mendigos", blasfemou certa vez contra o grupo do Guerbois.
Embora com apenas 20 anos, Cézanne já era tido com um excêntrico incurável. O bem-humorado Renoir declarou anos mais tarde: "Desde o início, mesmo antes de conhecer suas pinturas, senti que era um gênio". Mas também o estranho e excêntrico temperamento de Cézanne não lhe passou despercebido: "Seus movimentos pareciam estar limitados, como se ele estivesse incrustado numa concha invisível". Todas as descrições sobre sua pessoa sugerem que Cézanne vivia submetido a enormes pressões internas, lutando para controlá-las. Executadas com um vigor extraordinário, suas telas da década de 1860 espelham esses distúrbios interiores: cadáveres, assassinatos, estupros e orgias.
Aos 30 anos, os hábitos de Cézanne e o estilo de sua pintura mudaram radicalmente. Em 1869 conheceu uma jovem modelo e estilista, de nome Hortense Fiquet, e tornaram-se amantes. O relacionamento foi duradouro, embora fossem personalidades totalmente opostas: se Cézanne era austero e circunspecto, ela, por sua vez, mostrava-se sempre alegre e comunicativa. Este foi seu primeiro — e único — envolvimento sério, porque jamais se sentiu à vontade na companhia de mulheres, pois temia que elas o aprisionassem.
No plano artístico, iniciava-se um período de renovação. Cézanne abandonava gradualmente os temas eróticos do início da carreira e mostrava um crescente interesse pelo paisagismo, pintando ao ar livre como os impressionistas. Muitas de suas primeiras paisagens foram feitas em L'Estaque, vilarejo pesqueiro nas proximidades de Marselha, onde o artista passou a maior parte do ano de 1870. A permanência ali não era totalmente voluntária, uma vez que a pequena cidade servia de refúgio para Cézanne escapar da convocação para a guerra franco-prussiana que estourara em julho desse ano. Foi um período em que surgiram obras significativas, que traduziam, acima de tudo, a busca de um estilo próprio.
O FILHO ILEGÍTIMO
Em 1872, Hortense deu à luz um menino o único filho do casal —, também de nome Paul. Cézanne sempre o amou muitíssimo. Mas temia tanto o seu próprio pai que não ousou dizer-lhe que já tinha constituído família. Dessa forma, via-se obrigado a sustentar Hortense e o bebê com a pequena mesada que recebia como solteiro.
Surpreendentemente, essa situação permaneceu inalterada durante anos — o casamento só se realizaria em 1886 —, e, quando Cézanne ia para a casa dos pais em Aix, alojava Hortense em outro lugar.
No ano em que Paul nasceu, Cézanne levou a família para Pontoise, cidadezinha nos arredores de Paris, onde vivia Camille Pissarro. Durante os dois anos seguintes, ambos trabalhariam lado a lado por longos períodos. Cézanne ficou de início em Pontoise; depois, na vizinha Auvers. Esse período foi singular na vida de Cézanne, pois Pissarro, com sua figura de pai benevolente, era o único mestre que Paul aceitava. Introduziu-o nas novas técnicas do Impressionismo e assegurou-se de que os trabalhos de seu protegido fossem exibidos na primeira mostra dos impressionistas, em 1874.
As experiências de Cézanne com Pissarro foram decisivas para seu desenvolvimento artístico. Apesar de, posteriormente, ter transcendido de muito o Impressionismo, Cézanne conservaria a prática de inspirar-se diretamente na natureza. Sua personalidade continuava difícil mas, enquanto artista, encontrava novo ânimo e disciplina em contato com a natureza.
UM ANO DECISIVO
Nos dez anos seguintes, Cézanne viveu uma existência solitária e instável, dividindo-se entre Paris, Aix e arredores. Silenciosa e cuidadosamente, desenvolveu sua própria técnica de pintar "construções a partir da natureza". Público e crítica, porém, ainda recebiam suas obras com hostilidade. Após anos de tentativas, apenas um trabalho foi aceito pelo Salão.
O ano de 1886 foi pleno de episódios marcantes. Um fato extremamente desagradável foi o rompimento da antiga amizade com Zola. O escritor, já famoso, não havia esquecido o companheiro de infância, oferecendo-lhe hospedagem em seu castelo de Médan, perto de Paris. Mas em seu romance A Obra, o personagem central era um pintor fracassado, que revelava muitas das características do difícil temperamento de Cézanne. Embora este tenha escrito a Zola agradecendo o envio de uma cópia do livro, estava profundamente magoado e nunca mais estaria com o escritor.
Algumas semanas mais tarde, Cézanne, que havia, enfim, admitido publicamente a existência de sua família, casou-se com Hortense. Não se sabe ao certo por que ele o fez, uma vez que a relação, já havia tempos, perdera seu ardor. Em outubro desse mesmo ano, Louis-Auguste Cézanne morreu, deixando o filho rico e independente. "Meu pai foi um gênio", disse Cézanne, em tom sardônico. "Deixou-me com uma renda de 25.000 francos." Apesar da ironia e da fortuna herdada, a ausência da figura paterna fez acentuar suas crises depressivas.
EM RETIRO SOLITÁRIO, ATÉ O FIM
Os acontecimentos de 1886 reforçaram em Cézanne o desejo de afastar-se do convívio social. "O isolamento é tudo o que mereço", disse certa vez a um amigo. Hortense e o filho Paul viviam em Paris a maior parte do tempo, enquanto o pintor permanecia em Jas de Bouffan com sua família. Ia cada vez menos a Paris e cessou de enviar telas para o Salão. Sua produção, no entanto, continuava intensa. Só tinha contatos — raros — com os velhos companheiros de Aix. Em pouco tempo, Cézanne foi sendo esquecido. Já estava com quase 60 anos quando sua obra começou a atrair a atenção merecida. Em 1895, o famoso marchand Ambroise Vollard organizou-lhe uma grande exposição individual em Paris. Pela primeira vez depois de vinte anos, as pinturas de Cézanne eram vistas na capital, e, embora sua arte não fosse compreendida, o público parecia reconhecer seu valor.
De tempos em tempos, jovens admiradores faziam peregrinações ao refúgio do já lendário mestre de Aix, e Cézanne parecia apreciar essas homenagens. Era uma velhice tranqüila, abalada apenas pela morte da mãe em 1898. No ano seguinte, o pintor vendeu o Jas de Bouffan. Alugou em Aix um apartamento com estúdio anexo, antes de comprar, em 1901, um terreno nos arredores, nas colinas do Chemin des Lauves. Possuía um outro estúdio nessa mesma localidade e para lá se dirigia, a pé, todos os dias.
Cézanne continuava a pintar ao ar livre. Em 15 de outubro de 1906, exposto a uma tempestade, contrai uma forte gripe que o deixa extremamente prostrado. E as tentativas de retornar ao trabalho agravam ainda mais seu precário estado de saúde. Uma semana depois, a gripe evolui para pneumonia, e o pintor falece no dia 22 de outubro de 1906, aos 67 anos de idade. A mulher e o filho estavam em Paris.
Uma Nova Percepção da Realidade
Antecipando-se às vanguardas do século XX, Cézanne criou uma
nova maneira de representar o real, mediante um
hábil e vigoroso jogo de cores, formas, texturas e perspectivas.
As telas do período da maturidade de Cézanne contrastam profundamente com o estilo das obras do início da carreira. De fato, é difícil ver qualquer semelhança entre a sutileza e o equilíbrio deliberado das obras da fase adulta e a morbidez e o erotismo das telas da juventude. Com freqüência, essas primeiras telas causavam a impressão de terem sido produzidas em estado de alucinação. E, como que para reforçar seu envolvimento nessas fantasias e dar um toque de realidade, Cézanne costumava se auto-retratar nessas obras, como, por exemplo, em Uma Olímpia Moderna.
Gradualmente, Cézanne ia se voltando para o mundo exterior em busca de inspiração. Em outubro de 1866, escreveu ao amigo Zola: "As telas pintadas dentro de um estúdio nunca serão tão boas quanto as feitas ao ar livre" . Estranhamente, porém, foi apenas depois de 1870 que seguiu essa intuição. Naquela época, Pissarro e seus amigos Monet e Renoir estavam criando o Impressionismo, que Cézanne iria assimilar em parte e, posteriormente, ultrapassar.
O Impressionismo transformou Cézanne num pintor de paisagens — figura empoeirada e mal vestida, sempre usando um chapéu de abas largas e pesadas botas, que marchava para o campo todos os dias com uma mochila às costas. Apesar de nunca ter abandonado o hábito de pintar ao ar livre, logo se desencantou com alguns aspectos do Impressionismo. Possuía um senso de construção e estrutura mais forte do que seus contemporâneos, cujas pinturas produziam o efeito de dissolver os objetos num jogo de cores luminosas e vibrantes. Ele queria conservar a luminosidade do Impressionismo, mas transformar sua arte em "algo sólido e duradouro como a arte dos museus ".
ALÉM DO IMPRESSIONISMO
A dinâmica do Impressionismo, que buscava inspiração no movimento, nunca obteve a plena aceitação de Cézanne. Na verdade, ele assimilou a união dos tons difusos com toques justapostos — que na pintura impressionista levou a uma dissolução das formas — para, ao contrário, construir formas. No final da década de 1870, suas pinceladas se transformaram em traços de tinta alongados e repetidos, dispostos em linhas paralelas e regulares, como em O Castelo de Médan.
Por volta de 1878, o artista se afastou definitivamente do Impressionismo para dedicar-se à análise dos objetos, enfatizando seu volume. Essa fase, chamada de "análise construtiva", vê nascer telas cuja composição contraria radicalmente as regras tradicionais.
A medida que seu estilo se desenvolvia, Cézanne tinha a certeza de que o aspecto bidimensional da pintura não poderia ser negado. Não tinha interesse, porém, em imitar o mundo real. Definia seus quadros como "construções a partir da natureza", onde os elementos tridimensionais do mundo exterior apareciam reunidos e recriados numa tela plana. E, para representar as verdadeiras relações espaciais entre os objetos sem quebrar a uniformidade da tela, desenvolveu um método próprio: a célebre "profundidade rasa", que foi considerada um dos milagres da arte e que consistia em representar os objetos dentro de uma óptica de criativo geometrismo, onde volume e espaço estão unificados.
Cézanne adquiriu essa técnica sobrepondo camadas de tinta. Para ele, as figuras deveriam ser recriadas por meio da cor: "O desenho e a cor não são de modo nenhum distintos. (...) Quando a cor atinge sua riqueza, a forma atinge sua plenitude". Além disso, Cézanne pintava os objetos de múltiplos e simultâneos ângulos, aparentemente trazendo-os à superfície. Essa nova concepção alterou de forma profunda a percepção da realidade, antecipando o aparecimento do Cubismo.
UMA NOVA LIBERDADE
Nas últimas telas de Cézanne, mais precisamente de 1880 em diante, uma nova forma de liberdade expressiva começava a emergir. As telas da plena maturidade revelam a economia de meios e a sutileza de um artista que domina sua arte. A textura tornou-se menos densa, o colorido mais rico, e as pinceladas, rigidamente regulares, cederam lugar à suavidade de camadas de cor e à divisão das massas tonais, tal como em A Curva na Estrada. Era uma maneira revolucionária de pintar, que estabeleceu os fundamentos da maior parte das tendências estéticas do século XX, inclusive do Abstracionismo.
Talvez em virtude de seu enorme desejo de reorganizar a natureza, Cézanne se tornou um dos grandes mestres de um estilo de pintura que já tinha sido negligenciado — a natureza-morta. Ele podia escolher e dispor os elementos, e não hesitava em reorganizá-los para garantir a arrumação pretendida. Perfeccionista, Cézanne trabalhava numa tela durante meses, às vezes anos. E, ao pintar figuras humanas, exigia uma imobilidade quase absoluta. Tinha ainda mais dificuldade em lidar com os modelos de nus. Suas telas com banhistas foram pintadas com o auxílio de fotografias. Tais cenas evidenciam uma maior liberação de emoções, sendo provável que estejam relacionadas com as cenas de orgia pintadas na juventude. Mas na maturidade, pelo menos enquanto artista, Cézanne dominou seus demônios: em telas como As Grandes Banhistas, as figuras tornam-se parte integrante da paisagem.
Certos locais exerceram um papel fundamental na arte de Cézanne. Pintou quase exclusivamente nos arredores de Paris e na região mediterrânea. Os perfis ásperos da paisagem provençal estimulavam-lhe o desejo de criar uma "arte sólida e duradoura" . Pintou alguns lugares repetidas vezes — sobretudo a montanha de Santa Vitória, tema que domina cerca de sessenta de suas telas.
Espírito essencialmente inquieto e inovador, mesmo no fim da vida, ele ainda evoluía: "Estou começando a vislumbrar a terra prometida, mas por que tão tarde e com tanta dificuldade?"