Paul Gauguin foi um dos mais revolucionários pintores do século XIX. Tão pouco convencional em sua arte quanto em sua própria vida. Aos 35 anos, abandonou uma respeitável carreira na bolsa de valores para devotar-se à pintura. Mas o desejo de liberdade no plano artístico e no existencial o marginalizou da sociedade. Passou os últimos anos de sua vida nos mares do Sul: pobre, doente e quase sempre sem material adequado para pintar.
As cores e formas ousadas de suas telas expressavam muito mais sua própria visão interior do que a realidade externa. Quando morreu, estava praticamente esquecido. Mas, três anos mais tarde, uma retrospectiva em Paris revelou ao mundo todo o seu gênio.
Pela Arte, Aventura e Infortúnio
A trajetória de Gauguin foi um penoso exercício de liberdade.
Em benefício da arte, trocou a segurança material
por uma vida plena de contradições e episódios apaixonantes.
Paul Gauguin nasceu em Paris em 7 de junho de 1848. Seu pai, Clovis, era um republicano radical. A mãe, Aline, também tinha sangue de rebeldes radicais nas veias: era filha da feminista e socialista peruana Flora Tristán. Paul veio ao mundo num ano de grandes agitações políticas, que culminaram com a abdicação de Luís Filipe e a conseqüente proclamação da República. Mas, em 1851, com o golpe de Estado de Napoleão III, que pretendia a restauração do Império, Clovis decidiu abandonar o país, partindo com mulher e dois filhos para o Peru.
Durante a viagem, o pai de Gauguin morreu após sofrer um ataque cardíaco. Aline, Paul e Marie — a outra filha do casal — chegaram a Lima, onde se instalaram em casa de um tio-avô. Quatro anos mais tarde, falecia na França o avô paterno de Paul. E a família voltou para receber a herança. Foram para Orléans.
Provinciana e burguesa, Orléans representava um deprimente contraste com o colorido e subtropical Peru. Paul detestava a cidade. Ali iniciou sua escolarização. Foi no liceu de Orléans que aprendeu, segundo afirmaria mais tarde, "a odiar a hipocrisia, as falsas virtudes, a delação". Foi também no liceu que se percebeu diferente dos companheiros. Tinha um espírito rebelde, fugidio, isolando-se solitário em seu mutismo.
Quando contava 17 anos, fez o que milhares de jovens intrépidos fizeram antes dele: foi viver no mar. Trabalhou durante três anos num navio mercante e, quando estava em idade de alistar-se no serviço militar, entrou para a Marinha. Paul foi dispensado do serviço militar em 1871, e parecia ter adquirido no mar o gosto pela aventura. Fora do sistema, porém. Mas estava com 23 anos, e era o momento para um jovem de família respeitável estabelecer-se na sociedade. Antes de falecer, Aline providenciara para que o rico banqueiro Gustave Arosa fosse o tutor de Paul. Arosa acionou seus contatos e lhe conseguiu emprego no mercado de ações de Paris.
DAS FINANÇAS À PINTURA
A função de Gauguin como funcionário da Bolsa era bem remunerada e lhe proporcionava muitas oportunidades para especular no mercado financeiro e obter bons lucros.
Um futuro próspero lhe parecia assegurado. Em 1873, casou-se com uma jovem dinamarquesa, Mette Sophie Gad, e se transferiram de seu belo apartamento na cidade para uma ampla casa nos arredores de Paris, ao mesmo tempo que Mette se encarregava das futuras gerações dos Gauguin. Em 1883 Paul tinha dinheiro, reputação no mundo dos negócios, uma casa confortável e cinco filhos.
Mas se entusiasmava com um hobby: a pintura. O interesse pela arte tinha sido estimulado pelo tutor, que possuía uma respeitável coleção de quadros e cuja casa era freqüentada por pintores famosos da época. Gauguin também foi encorajado pela filha de Arosa, pintora diletante e, em 1874, recebeu aulas do impressionista Camille Pissarro — uma figura que o fascinou. Mas sempre foi, em essência, um autodidata.
Gauguin entrou em contato com os líderes do Impressionismo na casa de Arosa e nos meios artísticos que freqüentava, chegando mesmo a comprar algumas de suas obras.
Juntou-se ao grupo e, a partir de 1880 — e por três anos consecutivos —, expôs seus próprios trabalhos no Salão dos Impressionistas. Seus quadros agradavam.e vendiam bem. Gauguin deve ter brincado por algum tempo com a idéia de se profissionalizar. Mas em 1882 um estouro na Bolsa o fez abandonar tais planos. A segurança material de Paul estava ameaçada. Em 1883, confiando na sua capacidade de sustentar a família com sua arte, Gauguin pediu demissão do emprego.
Infelizmente, o clima de falência no mercado financeiro se refletiu no mercado de arte com o mesmo impacto. Em 1884 as economias de Gauguin se acabaram, e era raro vender um quadro. Apesar de a mudança de Paris para Rouen, na Normandia, ter diminuído consideravelmente suas despesas, a família estava quase à beira da ruína. Mette agora tentava se impor. Durante um ano inteiro Paul tinha trabalhado como pintor. E fracassara. Mette insistia, então, para que se transferissem para a Dinamarca.
O ABANDONO DA FAMÍLIA
A mudança, porém, não teve êxito. Apesar de ter encontrado emprego como representante de vendas de um fabricante de encerados, Gauguin não se adaptou ao trabalho.
Além disso, seu envolvimento com a arte adquiria intensidade cada vez maior. Mas os dinamarqueses não aceitaram as extravagâncias de sua arte. E Gauguin, por sua vez, não se adaptava aos rígidos hábitos luteranos do país. Só havia uma solução: voltar. Em 1885 partiu para Paris. Com ele, apenas Clovis — o filho mais velho.
O ano seguinte foi ainda pior. No inverno de 1885/86, ele e o pequeno Clovis estavam condenados a viver num quarto miserável. Em junho, já sozinho, transferiu-se para Pont-Aven, na Bretanha, onde encontrou moradia barata e a companhia de artistas. Mas o sucesso financeiro não era proporcional à crescente autoconfiança em seu trabalho. De volta a Paris em fins de 1886, quase morreu de fome. No ano seguinte decidiu viver no Panamá "como um nativo". Conseguiu dinheiro para a passagem, mas a aventura acabou se traduzindo no trabalho pesado com pá e picareta na construção do canal do Panamá. Após algumas semanas, abandonou o país e aventurou-se pela Martinica. Quatro meses depois, doente e na miséria, retornava à Bretanha.
ARLES, BRETANHA, TAITI
Aos 40 anos, Gauguin começava a ser reconhecido como grande pintor. Iniciava-se um período vital para sua arte. Mas os invernos na Bretanha o deprimiam profundamente. Em outubro de 1888, aceitou o convite de Van Gogh, que conhecera em Paris, para fundar com ele uma colônia de artistas em Arles, no sul da França.
Ficou lá apenas dois meses, partindo depois que Van Gogh, num de seus famosos acessos de loucura, o ameaçou com uma navalha. Nada mais havia a fazer, a não ser voltar de novo a Paris.
Durante os anos seguintes, viveria entre Paris e a Bretanha, produzindo algumas de suas melhores obras. Sua fama entre os contemporâneos crescia. Mas as condições financeiras ainda eram péssimas, e nunca abandonou o desejo de voltar aos trópicos. Instalou-se, então, em outra colônia francesa — o Taiti — , partindo de Marselha em 1º de abril de 1891.
Num primeiro momento, o Taiti não era o que ele esperava. Em Papeete, a capital, foi recepcionado pelo governador e conseguiu uma audiência com o rei, Pomaré V.
Pensava em receber encomendas do governo. Pomaré V, no entanto, morreu horas antes de se entrevistar com Gauguin. Ao mesmo tempo, desencantava-se com a cidade: "Era a Europa novamente, com tudo aquilo com que eu pensava ter rompido".
Foi na aldeia de Mataiea que Gauguin encontrou a paz desejada. Compartilhava uma cabana com uma bela jovem taitiana, de nome Teha' amana. Mas, mesmo no paraíso, não podia viver sem preocupações de ordem material. Sem habilidade para pescar e plantar, Gauguin dependia dos enlatados — caros — que vinham da Europa. Pintava incansavelmente e teria ficado ali para sempre, não, fosse a doença e a falta de dinheiro. Em 1893, fez um apelo ao governador para que o enviasse de volta à França.
Foi um retorno humilhante. Apesar de tudo, conseguiu uma exposição. Muito embora as vendas tivessem sido fracas, Gauguin subitamente se viu como o centro das atenções do mundo artístico. E, enfim, uma boa notícia em sua vida financeira: a herança deixada por um tio de Orléans. Instalado agora num estúdio em Montparnasse, organizou uma exposição. Mas o público e a crítica rejeitaram o mundo colorido trazido pelo pintor. Decidido a voltar para o Taiti, deixou para sempre a França em 1895.
DE VOLTA AO TAITI
Os últimos oito anos da vida de Gauguin foram os mais bem-sucedidos em termos artísticos. Mas ele era um homem infeliz. Quase sempre sem dinheiro, não podia tratar de sua saúde debilitada pela sífilis. Em 1897, chegou a tentar o suicídio. Desgostoso com o governo colonial e seus reflexos negativos sobre o povo taitiano, Gauguin começou a escrever contundentes artigos para um jornal local. Em 1901 abandonou o Taiti, viajando cerca de 13 km até as ilhas Marquesas, também colônia francesa da Polinésia. Em Atuona, a capital, construiu "A Casa do Prazer" — como ele mesmo denominou seu ateliê-residência. Vinha recebendo regularmente dinheiro de Paris, enviado por admiradores, e trabalhava com vigor e alegria. Mas ainda fazia inimigos. Prosseguia nas críticas à administração colonial e havia declarado guerra à Igreja Católica.
Em 1903, as autoridades revidaram. Gauguin foi condenado a três meses de prisão por "difamação". Mas não houve tempo para cumprir toda a pena. No dia 8 de maio do mesmo ano, Gauguin falecia em sua cela, aos 54 anos. O bispo local deixou um testemunho pouco caridoso: "O único fato relevante aqui foi a morte repentina de um indivíduo chamado Gauguin, artista conhecido, porém inimigo de Deus". A posteridade lhe reservaria um veredicto bem diferente.
Mistérios do Paraíso e do Espírito
O exotismo das ilhas dos mares do Sul exerceu profundo fascínio sobre
Gauguin, que empregou um colorido vibrante e muitas vezes irreal
para expressar, com emoção intensa, a beleza e o mistério lá vivenciados.
Paul Gauguin tinha cerca de 20 anos quando começou a se dedicar à pintura. A princípio, a arte era apenas um passatempo, mas admirava e comprava obras dos primeiros impressionistas, construindo seu próprio estilo a partir dessa nova estética. A medida, porém, que sua dedicação crescia, Gauguin logo se deu conta de que, embora esses artistas — com suas cores e técnica arrojadas — tivessem libertado a pintura dos liames da tradição, o Impressionismo também tinha um alcance limitado. Gauguin iria mais além, desenvolvendo gradualmente as idéias que o transformariam mais tarde — ao lado de Van Gogh e Cézanne — num dos maiores nomes do Pós-Impressionismo.
Gauguin, ao contrário dos impressionistas, interessava-se mais pelas idéias do que pela aparência, pelo efeito. Além disso, queria que sua arte expressasse emoções fortes. E questionava-se: "A criação de uma tela começa por onde? E onde termina? No momento exato em que sentimentos intensos se manifestam nas profundezas do ser e irrompem feito lavas de um vulcão. O cálculo frio e racional nada tem em comum com essa erupção, pois quem saberá dizer quando, no mais íntimo de seu ser, e talvez inconscientemente, a obra começou a nascer?"
Para expressar tal intensidade de sentimentos, Gauguin teve que criar um estilo de pintura totalmente novo. Rejeitava a idéia de que uma tela devesse representar alguma coisa que pode ser vista no mundo real, e buscava novas fontes de inspiração na arte não européia. Gauguin, aliás, foi um dos primeiros artistas a manifestar sério interesse pelas culturas primitivas. Falava muito a respeito de seu próprio "sangue selvagem". E, talvez, lembrando-se da infância no Peru, sentia forte afinidade com o vigor da arte pré-histórica das Américas do Sul e Central. Teve oportunidade de apreciar exemplos desse tipo de trabalho na Feira Mundial de Paris de 1889.
CORES REVOLUCIONÁRIAS
Gauguin também buscava inspiração nas esculturas egípcia e cambojana, na arte medieval e na gravura japonesa. Colecionava cartões-postais de pinturas e esculturas.
Todavia, no poder expressivo de seu colorido, transcendeu todas as suas fontes de inspiração. Em Visão Depois do Sermão, uma de suas obras mais revolucionárias, usou de um vermelho-vivo para estabelecer o tom emocional da tela — de profundo sentido místico.
Visão Depois do Sermão foi criada em PontAven. Por essa época, a cor para Gauguin se tornava mais arbitrária, e as tintas puras — não misturadas na paleta — ocupavam áreas sempre maiores. Mas seu estilo atingiu pleno desenvolvimento no Taiti. O gosto de Gauguin por temas simbólicos se apoiou fortemente nas tradições nativas; a intensa luminosidade produzia as cores vibrantes que ele tanto amava; e a beleza exótica dos habitantes da ilha causaram forte impacto emocional em seu espírito.
Acreditava que os modelos nativos "possuíam algo mais misterioso e profundo que apenas a beleza no sentido estrito do termo".
Um dos traços característicos da arte de Gauguin no Taiti foi a elaboração de composições planas, que lembram antigos frisos de parede. Pode-se observar aí uma influência da arte egípcia. Nesse tipo de composição, as figuras imponentes "na majestática religiosidade de seus gestos" são colocadas em primeiro plano, com pouca profundidade, criando um clima solene.
A técnica utilizada por Gauguin em suas telas taitianas não é menos surpreendente. Material de trabalho não era de fácil obtenção, e, muitas vezes, teve de usar panos de saco em lugar de telas, economizando na tinta para que pudesse prosseguir seu trabalho. Da adversidade Gauguin extraiu sua inspiração, pois as limitações materiais o estimulavam a pintar com o vigor adequado à sua ousada visão de mundo.
IMPACTO NA ARTE MODERNA
Quando Gauguin morreu em 1903, poucos concordariam com estas palavras — presentes numa carta dirigida a sua mulher: "Sou um grande artista e sei disso. E é por ser tão bom que tenho suportado tanto sofrimento". Mas esse sofrimento seria logo recompensado. Três anos após sua morte, uma mostra realizada em Paris exibia 227 obras suas. O evento veio consolidar sua reputação entre os artistas da vanguarda, e ele se tornou uma das grandes inspirações para a arte do século XX. O impacto emocional da obra de Gauguin e sua total dedicação à pintura o transformaram — assim como ao amigo Van Gogh — em herói da cultura moderna.