A paisagem foi o gênero predileto de John Constable e aquele em que seu talento atingiu o apogeu. Seus quadros focalizam aspectos de locais significativos para ele, como a região onde nasceu, no interior da Inglaterra. A escolha de lugares tão simples e a maneira como os pintava desagradavam aos conservadores da época — o que jamais lhe permitiu viver exclusivamente da arte.
O reconhecimento de seu talento iniciou-se na França, onde o aclamaram os românticos, os paisagistas da Escola de Barbizon e os impressionistas. O pintor, contudo, não teve tempo de usufruir o doce gosto da glória: aos 60 anos, depois de premiado no Salão de Paris e recebido como membro vitalício da Real Academia inglesa, morreu recluso em sua casa, praticamente esquecido por seus compatriotas.
PERFIL DO ARTISTA
As Raízes no Campo
Da terra onde nasceu, Constable tirou a inspiração para criar obras de profunda beleza e força para enfrentar a hostilidade dos contemporâneos que não compreendiam o valor de sua arte.
Quarto filho de um rico negociante de trigo, John Constable nasceu no vilarejo de East Bergholt, condado inglês de Suffolk, em 11 de junho de 1776. Desde criança revelou especial interesse
pela paisagem que o rodeava: o plácido rio Stour, os extensos campos verdes, as atividades rurais, os diferentes aspectos do céu, os efeitos da luz.
Anos mais tarde, em 1821, escreveu: "Associo minha 'despreocupada infância' a tudo que existe às margens do Stour. Foi o que fez de mim um pintor — e eu sou grato, quero dizer, pensei em tudo aquilo como quadros antes mesmo de pegar num lápis".
E, quando se animou a "pegar num lápis" para desenhar aspectos da paisagem, de imediato recebeu a atenção e o estímulo de seu professor, na escola primária de Dedham, vilarejo próximo a East Bergholt. Animado, passou a exercitar-se mais e mais e a acompanhar o pintor amador John Dunthorne em suas longas excursões pelo campo para elaborar esboços. Com
ele adquiriu não só as primeiras noções de pintura, mas também um método de trabalho que usaria pela vida afora: registrar determinado aspecto da paisagem sempre à mesma hora e interromper a pintura assim que a luz se alterava para retomá-la no dia seguinte.
Ao perceber a vocação do filho, o negociante Golding Constable tentou desencorajá-lo, encaminhando-o, inicialmente, para a carreira eclesiástica. Diante do completo fracasso, resolveu treiná-lo para assumir a direção da empresa (o primogênito da prole era deficiente mental, e, como segundo filho homem, caberia a John substituir o pai à frente dos negócios). O
jovem chegou a passar um ano num dos moinhos paternos, e aprendeu muita coisa sobre técnica de moagem, mas deixou bem claro que não pretendia dedicar-se a tal atividade.
UM ENCONTRO DECISIVO
Em 1795, John conheceu sir George Beaumont, pintor amador e colecionador de obras de arte. Em sua galeria contemplou trabalhos de mestres estrangeiros como o francês Claude Lorrain, cujo Hagar e o Anjo impressionou-o profundamente, tendo até, segundo alguns, influenciado de modo definitivo sua resolução de dedicar-se à pintura. A tela inspirou-lhe a composição de dois quadros sobre o vale de Dedham, elaborados em 1802 e 1820.
Apesar da relutância do pai, em fevereiro de 1799 o rapaz seguiu para Londres e, no mês seguinte, ingressou na escola da Real Academia.
Freqüentava as aulas com obstinada assiduidade, resignando-se a dedicar horas inteiras à tediosa elaboração de nus acadêmicos, que, entretanto, contribuíram para aperfeiçoar-lhe o sentido da forma. Seu traço era pesado, difícil, hesitante, e ele próprio sentia que precisava esforçar-se muito para obter os resultados que desejava. "Não existe maneira fácil de alguém
se tornar um bom pintor", declarou certa vez.
Quando não estava na escola, lia muito, não apenas sobre pintura, mas também sobre física particularmente óptica, para melhor lidar com a luz e as cores — e geologia — para "compreender melhor a terra". E, quando não lia, exercitava-se no desenho, copiando obras de Ruisdael, Rembrandt e outros mestres.
Pouco sociável e relutante em fazer concessões, vivia praticamente solitário. Durante algum tempo, compartilhou moradia com um colega, Ramsay Richard Reinagle, que lhe pintou o retrato. Logo, porém, agastou-se com o rapaz, que usava de meios ilícitos como o plágio — para conquistar espaço no mercado de arte.
Além da solidão, da saudade de casa, do desencanto com gente como Ramsay, da dificuldade em dominar sua técnica, Constable deprimia-se por aperceber-se, dia a dia, da baixa conta em que era tida a paisagem. Nem os acadêmicos, que afinal ditavam as normas estéticas, nem o público viam valor artístico na paisagem, aceitando-a apenas como pano de fundo para um retrato ou uma cena grandiosa de inspiração histórica, religiosa ou mitológica. Esse tipo de cena e o retrato eram, aliás, os gêneros favoritos de artistas, críticos e colecionadores. O pintor sir Joshua Reynolds, primeiro presidente da Real Academia, dizia que a natureza "comum" não podia ser tema de grandes obras. Mas era justamente essa natureza que Constable queria pintar — e pintou —, porque via nela elementos nóbres e belos, capazes de inspirar quadros inestimáveis, desde que o artista a reproduzisse com fidelidade e a amasse sem restrições.
Para completar a mesada que o pai lhe enviava, e tentando abrir caminho como profissional, Constable elaborou, por encomenda, alguns retratos e pinturas de caráter religioso.
Sempre que podia, entretanto, voltava para a paisagem, para o amado vale do Stour, para os esboços ao ar livre. Seus colegas não entendiam por que, pertencendo a uma família rica, não viajava para Paris, Amsterdã ou Viena, onde havia tantos tesouros artísticos e tanta fervescência cultural. Ele simplesmente não parecia interessado em trocar a tranqüilidade e a beleza dos campos de Suffolk pela agitação de qualquer cidade grande. Nunca saiu da Inglaterra e, mesmo assim, não percorreu o país todo. Esteve nos condados de Derbyshire, Kent, Dorset e Wiltshire; visitou Brighton várias vezes e, em 1806, passeou pelo Lake District, região quase obrigatória para paisagistas. Embora se declarasse "oprimido" pelas montanhas e se sentisse pouco à vontade com a grandiosidade dos lagos, Constable fez ali vários óleos e aquarelas que, em vez de tentar captar o pitoresco convencional, como os trabalhos de vários outros pintores, enfatizam os efeitos do clima sobre a paisagem e a atmosfera misteriosa das montanhas envoltas em nuvens. Em muitos esboços, anotou a hora e as condições climáticas em que foram elaborados, fiel à prática que seguiu durante toda a sua carreira.
UM AMOR PARA SEMPRE
Por volta de 1809, Constable já tinha certo domínio da técnica, mas estava longe de ser um artista de sucesso e praticamente vivia às custas da família. Nessa situação pouco confortável, apaixonou-se por Maria Bicknell, doze anos mais jovem, filha de um alto funcionário público e neta do rico vigário de East Bergholt. Este, quando soube do namoro, ameaçou deserdar a moça, se insistisse em levá-lo adiante. Para não causar maiores atritos, os namorados tiveram de encontrar-se às escondidas e lançar mão dos mais diversos estratagemas para conseguir trocar correspondência, porém mantiveram-se rigorosamente fiéis um ao outro.
As contrariedades profissionais somava-se agora a infelicidade no amor, e Constable, já propenso à reclusão, tornou-se mais fechado e irritadiço. Consciente de sua capacidade artística, avesso aos ditames acadêmicos, incapaz de adulação, encontrava grande dificuldade para vender seus quadros e não achava comprador para uma só de suas paisagens. Colecionadores, críticos e colegas não o viam com bons olhos no que, aliás, eram plenamente correspondidos. A difícil situação do artista agravou-se em 1815, com a morte da mãe, que sempre defendera seu direito de seguir a própria vocação embora o aconselhasse repetidas vezes a trocar a paisagem pelo retrato ou pelas cenas magnificentes que tanto agradavam aos conservadores. Mal se refazia do golpe, Constable sofreu outra grande perda: em maio de 1816, o pai faleceu repentinamente. Abram, seu irmão mais novo, assumiu a direção dos moinhos e, fiel à determinação paterna, passou a pagar ao pintor uma pensão anual de duzentas libras. Não era uma fortuna, mas possibilitava o casamento com Maria, finalmente realizado em 2 de outubro de 1816. Nenhum membro da família da noiva compareceu à cerimônia, oficiada pelo reverendo John Fisher, um dos poucos amigos de Constable.
Depois de uma longa lua-de-mel em Osmington, perto da cidade costeira de Weymouth onde o artista elaborou suas primeiras marinhas importantes —, o casal voltou para Londres, em
dezembro. No ano seguinte, Maria engravidou,porém logo perdeu a criança. Atribuindo o aborto à vida pouco saudável que levavam, o pintor mudou-se para uma casa maior e mais afastada da poluição de Londres. Foi nessa nova residência que, em 1817, nasceu seu primeiro filho. Dois anos depois, a Real Academia dignou-se a receber Constable como membro associado e seus quadros passaram a ser vistos com maior freqüência nas concorridas mostras promovidas pela instituição. Mesmo assim, ele não vendia o bastante para viver da pintura, e até o começo da década de 1830 ganhava por ano o que muitos colegas de menor talento recebiam por um único quadro.
UM GOLPE ARRASADOR
A delicada saúde de Maria piorava de ano para ano, e, em 1821, sempre à procura de ar mais puro e espaços maiores, o pintor transferiu-se com a família para Hampstead, na época uma região agrícola pouco distante de Londres, que lhe inspirou alguns de seus melhores trabalhos.
Enquanto Maria definhava, evidenciando-se os sintomas da tuberculose que a mataria, Constable finalmente começava a obter algum sucesso. Seu quadro A Carroça de recebeu a medalha de ouro no Salão de Paris em 1824, chamando a atenção dos franceses para sua obra e aumentando a cotação de suas telas no mercado inglês. Conta-se que o quadro foi enviado à mostra parisiense sem o conhecimento do autor, que, ao saber da premiação, recusou-a, explicando, em curtas palavras, que não a havia pleiteado e, portanto, não se via na obrigação de recebê-la.
Mais interessado na saúde da mulher que em honrarias ou venda de quadros, no mesmo ano de 1824 Constable mandou a família para Brighton, um balneário da moda, onde o clima era mais quente. Ele próprio viveu ali durante algumas temporadas, realizando marinhas preciosas.
Em janeiro de 1828, Maria deu à luz seu sétimo filho. Pouco depois, recebeu a notícia do falecimento do pai — perda que a abalou profundamente, mas deixou-lhe uma fortuna que pôs fim às preocupações financeiras do casal. Em novembro, Maria faleceu. "A face do mundo mudou totalmente para mim", Constable escreveu para o irmão.
Continuou pintando, mas sem o velho entusiasmo. E não parece ter exultado, quando soube que por fim a Real Academia o elegia — por um único voto — membro vitalício. Pouca coisa lhe interessava, além dos filhos e do trabalho. Na noite de 31 de março dé 1837, faleceu repentinamente, vitimado por um ataque do coração, e foi sepultado ao lado da esposa.
TÉCNICA E ESTILO
Fidelidade à Natureza
Tudo que Constable queria era reproduzir fielmente a paisagem — mesmo que para isso precisasse realizar centenas de esboços, infringir normas acadêmicas, desagradar a críticos e público.
Exercitando-se em sua arte desde a infância, Constable, no entanto, só definiu claramente seus objetivos estéticos em 1802, quando decidiu pintar a natureza — seu tema favorito com o máximo de fidelidade, embora não tivesse ainda uma técnica segura. Com essa finalidade, trabalhava febrilmente em pequenos estudos a lápis sobre papel, focalizando a cena sempre sob a mesma luz e anotando no verso a hora do dia, a condição meteorológica, a direção e a velocidade do vento.
Em 1802, seus quadros começaram a figurar nas mostras da Real Academia. Mas, tanto pelo tema quanto pelo tamanho — poucas vezes chegavam a 50 x 70 cm e muito raramente excediam estas medidas —, passavam despercebidos entre as enormes telas de seus colegas.
O ESBOÇO COMO EXPERIÊNCIA
No período de 1811 a 1816, Constable usou extensivamente o esboço a óleo, algumas vezes sobre tela, mas em geral sobre papel ou madeira e não raro nas dimensões do quadro que planejava criar. Na época, esboço a óleo não constituía novidade, embora fosse encarado, basicamente, como um meio de registrar aspectos essenciais e exercitar a composição. Para Constable, não se tratava de estudar a composição salvo em pouquíssimos casos —, e, sim, de realizar experiências, tal qual um cientista no laboratório.
Muitos esboços eram usados depois como referência para pintar as telas definitivas, às vezes até anos mais tarde. Constable preocupava-se então em reproduzir os detalhes com precisão e procurava manter a mesma espontaneidade do esboço. Talvez por isso tenha recebido com freqüência a crítica de que seus quadros não eram "acabados", ou seja, não apresentavam as formas nítidas, o aspecto limpo, a textura uniforme dos trabalhos acadêmicos.
Nesse período, os esboços comumente eram feitos nos arredores de East Bergholt, onde o artista costumava passar parte do verão e do outono, e os quadros eram pintados em seu ateliê londrino. Muitas telas, porém, foram iniciadas ao ar livre e completadas no ateliê, e pelo menos uma — Construção de Barco Perto do Moinho de Flatford (página 42) — foi inteiramente elaborada no próprio local.
AS GRANDES DIMENSÕES
Depois de 1816, ano de seu casamento, Constable passou a aumentar gradativamente as dimensões de algumas de suas telas, sobretudo daquelas que pretendia apresentar nas mostras da Real Academia. O Moinho de Flatford (página 43), executado possivelmente no outono de 1816 e exposto no ano seguinte, já apresenta medidas incomuns em sua obra: 1,02 x 1,27 m. Ainda não eram, porém, as dimensões que adotaria a partir de sua admissão à Academia.
A FASE FINAL
Após a morte de Maria, em 1828, a paleta do artista escurece e sua pintura torna-se mais espessa, densa, com grossas camadas de tinta aplicadas com pincel ou espátula. Nessa fase, o que mais chama a atenção em seus quadros não é o tema, e sim, a maneira como foram pintados. Os detalhes já não são meticulosos e, em muitos casos, ele simplesmente os omite. A fidelidade à natureza diminui, e seu interesse volta-se basicamente para as grandes massas de luz e sombra, que trabalhou com maestria.
Apesar das mágoas e frustrações, foi nessa última fase que Constable atingiu a maior profundidade de sua arte e um domínio técnico que se pode qualificar de majestoso. Por vezes, chegou a inovar a si mesmo, como numa vista da catedral de Salisbury, executada em 1831, onde usou um largo simbolismo.