El Greco nasceu em Creta, mas trocou sua ilha por Veneza, onde estudou com Ticiano, e depois por Roma, onde conviveu com a elite artística e intelectual. Seu nome, porém, seria íntima e definitivamente ligado a Toledo, na época o centro cultural e espiritual da Espanha. Ali, El Greco se estabeleceu aos quase 40 anos de idade e produziu, sob o patrocínio da poderosa Igreja espanhola, uma série de trabalhos religiosos extremamente originais, cuja espiritualidade intensa e torturante traduz o clima recém-surgido durante a Contra-Reforma. El Greco foi reconhecido em vida, mas incompreendido pelas gerações seguintes, que não alcançaram a profundidade de suas imagens e o reprovaram. Mais que isso, o esqueceram. Apenas recentemente o interesse por sua obra seria revivido.
Um Grego Adota a Espanha
Embora nascido grego, Domenikos Theotokopoulos iria adotar a cidade espanhola de Toledo: ali viveu praticamente a maior parte de sua vida e ali também se afirmou como artista.
Três culturas distintas — bizantina, italiana e espanhola — misturam-se na vida, na obra e até mesmo no nome de Domenikos Theotokopoulos. conhecido na história da pintura como El Greco.
Depois de passar a infância em Creta, então sob o domínio da República de Veneza, viveu sua jventude na Itália, durante a afirmação do Renascimento. Seu pleno amadurecimento, porém, só se verificaria efetivamente na Espanha, reduto da Contra-Reforma e do poder religioso sede da reação às transformações político- ideológicas que se processavam na Europa.
Sabe-se pouco a respeito da vida de El Greco, um homem cuja verdadeira personalidade é apenas vagamente conhecida e em torno da qual existem grandes controvérsias.
Os documentos que restaram a seu respeito e as interpretações de sua obra evidenciam alguns traços de seu caráter, indicando um temperamento inquieto, explosivo, ao lado de uma atitude aparentemente altiva e aristocrática perante o mundo que o cercava.
UM ESPÍRITO CURIOSO
Domenikos nasceu em 1541, na cidade de Cândia — hoje Heraklion —, capital da ilha de Creta. Sua família, provavelmente católica, pertencia à pequena burguesia urbana e ligava-se à administração da ilha, a serviço da República de Veneza. Ali fez seus primeiros estudos e recebeu os rudimentos iniciais sobre a arte que iria explorar e dominar com genialidade ao longo de sua vida.
Os primeiros registros seguros a respeito de sua carreira datam de 1567, quando ele decidiu mudar-se para Veneza (há estudiosos que marcam essa partida em 1560). Não era uma decisão fora de propósito, já que, sendo Cândia uma possessão de Veneza, seus pintores e artesãos começaram a emigrar para a capital política em busca de oportunidades que certamente não encontrariam na terra natal.
A atmosfera requintada e cosmopolita que El Greco encontrou em Veneza certamente lhe provocou grande impacto, se comparada com a Creta provinciana que deixara para trás. A cidade era dona de um imenso império marítimo para proteger as importantes rotas de comércio que produziam sua riqueza e prosperidade. Também oferecia uma constituição republicana, uma população relativamente estável e satisfeita, e o dinheiro que subsidiava as grandes construções e as obras de arte era farto.
No entanto, também há pouca informação a respeito de sua vida em Veneza. Aceita-se, em geral, que ele teria passado a maior parte da década de 1560 no ateliê do velho mestre Ticiano (c. 1485-1576), como aprendiz. E, no convívio com artistas e intelectuais que circulavam em torno de Ticiano, teria iniciado sua formação humanística. Os quadros que produziu durante esse período demonstram, por sua vez, que ele não sé contentava em confeccionar intermináveis obras sacras, como seus compatriotas, e revelam seu conhecimento a respeito de outros pintores como Tintoretto, Paolo Veronese e Jacopo Bassano.
Conhecida por meio de inventários após sua morte, a biblioteca de El Greco revelou-o como um espírito intelectualmente curioso, de forte inclinação pela história, entusiasmado por literatura, política, filosofia e até pela medicina — revelando, na verdade, uma mente enciclopédica, própria de um humanista da Renascença.
Em 1570, o jovem pintor grego de 29 anos estava a caminho de Roma, onde fez amizade com o miniaturista croata Giulio Clovio, que, impressionado, escreveu ao Cardeal Alessandro Farnese: “Acaba de chegar a Roma um jovem de Cândia, aluno de Ticiano, que a meu ver é único no gênero da pintura: entre outras coisas, pintou um auto-retrato que desbanca todos os outros pintores de Roma”. (Infelizmente esse retrato se perdeu.) Clovio sugeria, então, que o cardeal oferecesse um lugar para esse jovem em seu palácio. O pedido foi aceito, El Greco se viu instalado com toda a pompa no Palácio Farnese, sob a proteção do cardeal e em contato com os mais eminentes mestres de Roma. Também conheceu o bibliotecário do Palácio Farnese, Fulvio Orsini, descendente de uma das principais famílias romanas. Nesse convívio ampliou sua formação humanística, pois Orsini era um intelectual e conhecedor das artes. Suas conversas com o pintor, assim como a apresentação e introdução do artista em seu círculo de amigos, seriam importantes em sua carreira. Em 1572 inscreveu-se na Guilda de São Lucas.
El Greco chegou a Roma apenas seis anos depois da morte de Michelangelo, mas os dias de glória da cidade, como um centro artístico, já entravam em declínio, e a atitude da Igreja em relação a assuntos artísticos começava a mudar. O Papa Pio V, por exemplo, contrariado com a nudez das figuras de Michelangelo nos afrescos do Juízo Final na Capela Sistina, pensava em cobri-las. Conta a lenda que El Greco, ao ser solicitado para executar a tarefa, teria sugerido refazer completamente os afrescos, provocando indignação geral entre os artistas — o que teria apressado sua saída de Roma. E a lenda, embora se acredite que não seja de modo nenhum verdadeira: de início porque El Greco nutria profunda admiração pela arte de Michelangelo, mesmo considerando-a mundana e com pouca sensibilidade espiritual. Além disso, El Greco jamais pintou afrescos e, por isso, não seria ele a redecorar a capela. Finalmente, a capela permanece até hoje com a decoração original.
DEFINITIVAMENTE, A ESPANHA
Em 1576 a peste devastava Roma e Veneza — e é provável que tenha influído na decisão de El Greco em deixar a Itália. O fator mais decisivo, porém, foi não ter recebido nenhuma incumbência importante. Ainda em Roma, ele conhecera eclesiásticos espanhóis de renome como Pedro Chacón — cônego da Catedral de Toledo — e Luis de Castilla, que seria um de seus melhores amigos. Luis influiu decisivamente na partida de El Greco: seu irmão, Don Diego de Castilla, estava contratando pessoas para a construção da nova igreja de Santo Domingo de Antiguo. Assim, a partir de 1577, a perspectiva de importantes encargos e também a esperança de obter trabalho no grande projeto da construção do mosteiro El Escorial, de Filipe II, abriram a El Greco um horizonte promissor na Espanha.
A data de sua partida de Roma ainda provoca controvérsias. E provável que tenha ficado algum tempo em Madri, quando chegou à Espanha, mas na primavera de 1577 El Greco já estava morando em Toledo, onde ficaria definitivamente. Até meados de 1560, Toledo fora a capital da Espanha, e, mesmo que Filipe II tenha transferido o centro do governo para Madri, em 1562, a vida da cidade não pareceu afetada. O florescimento do comércio da seda, da lã e da cerâmica — que a tornaram um dos centros mais ricos da Europa — caminhava paralelamente com a importância religiosa e intelectual da cidade. Era a matriz da Igreja espanhola e reunia inúmeros estabelecimentos religiosos que, em princípio, podiam garantir trabalho para um pintor como El Greco. Toledo foi também, antes de sucumbir à Inquisição, o centro de livres debates teológicos. El Greco, por sua vez, procurou ali a companhia de intelectuais, como fizera em Roma, e seus amigos mais próximos eram poetas, pregadores e professores.
Ali também conheceu Dona Jerónima de las Cuevas, com quem teve um filho, Jorge Manuel, em 1578, e que seria pintor. Mas não há registro de que chegaram a se casar. Dela, sabe-se apenas que seria de origem aristocrática e que seu rosto seria o modelo da maioria dos retratos femininos realizados por El Greco.
Como se esperava, seu primeiro trabalho foi para a Capela de Santo Domingo el Antiguo, e o completou em 1579. A essa tarefa seguiram-se outras obras nas maiores instituições religiosas de Toledo, e, mais que isso, El Greco procurava obter também o patrocínio real. Como soubera em Roma, Filipe II queria reunir os melhores artistas da Europa para trabalhar na decoração do Mosteiro El Escorial. Depois de ver A Alegoria da Santa Aliança ou O Triunfo do Nome de Jesus — algumas vezes também chamada de O Sonho de Filipe —, o rei o contratou para pintar o altar do Escorial, em 1580. No entanto, a obra terminada (O Martírio de São Maurício) não obteve a aprovação que El Greco esperava. Na verdade, ele jamais conseguiría a confiança real que tanto buscou. Isso, porém, não significava que sua reputação artística deixasse a desejar. Aos 40 anos ele chegava à maturidade artística, ao mesmo tempo em que alcançava renome nacional. Era solicitado para retratar não só os nobres da corte como os de outras localidades da Espanha. Pinturas suas enfeitam a Catedral de Sigüenza, as construções religiosas de Samora, Madri e Andujar. Seu talento também seria reconhecido, então, pelos humanistas e clérigos espanhóis — fortalecendo assim sua posição perante a Igreja e, consequentemente, multiplicando as ofertas de trabalho: os planos decorativos do Colégio Agostiniano de Dona Maria de Aragón, em Madri (1596/1600); a Capela de São José, em Toledo (1597/99); o Hospital da Caridade, em Illescas (1603/05); o Hospital de São João Batista Extra Muros e a Capela Oval de São Vicente (onde está a Imaculada Conceição), ambos em Toledo, no período de 1607 a 1613.
VIVENDO EM GRANDE ESTILO
Cada vez mais se firmava em Toledo, onde passou a ser chamado de El Greco (mistura do artigo espanhol com o substantivo italiano). Homem culto, bom conversador e melhor perdulário, era capaz de gastar fortunas em pagamento aos músicos que animavam seus jantares, e não hesitou em alugar uma luxuosa mansão gótica dos nobres de Villena, com uma soberba vista do rio Tejo correndo sob a ponte de Alcântara e emoldurada pelas colinas de Castela.
Criticavam-no por esse luxo, mas parece que El Greco procurava manter-se em grande estilo para fazer com que a posição do artista fosse reconhecida pela sociedade. Ele vinha da Itália, onde os artistas eram respeitados, para uma Espanha onde o artista ainda estava pouco acima do artesão. Considerava-se um artista filosófico e estava determinado a viver segundo essa condição e a marcar sua presença.
Infelizmente não conseguiu manter facilmente essa vida luxuosa, como provou o inventário após sua morte. Nos últimos anos de vida, em situação financeira cada vez mais frágil, El Greco dedicava-se sobretudo às experiências pessoais em pintura. Além disso, Toledo também já perdia seu esplendor econômico, deixando pouco espaço para os comissionamentos e patrocínios.
El Greco morreu em 7 de abril de 1614, tendo a seu lado o filho, que sempre o acompanhou como sócio e ajudante nos negócios. Foi enterrado na Igreja de Santo Domingo el Antiguo, com exéquias solenes, e sobre seu túmulo foi colocado o quadro A Adoração dos Pastores, o epitáfio que escolhera. Mas seu corpo não ficaria ali por muito tempo: Jorge Manuel deveria — e não conseguiu — pintar a igreja em pagamento pelo túmulo do pai. Assim, quatro anos depois, os restos mortais de El Greco seriam transferidos para o Convento de São Torquato, ali perto.
E, com a destruição do convento, tempos depois, restaria no chão apenas uma lápide insignificante, sem nenhuma referência especial a esse grande pintor da Espanha.