Talvez seja, hoje, o pintor italiano mais reverenciado de sua época. A celebridade, porém, é bem recente. Em seu tempo era conhecido como matemático, teórico da arte, além de pintar, mas no século XVII ficou quase esquecido. Apenas no século XX a pureza austera de suas formas e o completo domínio da luz e da cor passaram a ser devidamente apreciados. A demora para que Piero della Francesca subisse à galeria dos grandes artistas reflete a relativa obscuridade de sua carreira. Passou grande parte da vida na pequena Borgo San Sepolcro, cidade toscana, e na vizinha Arezzo. E, apesar de ter transitado por eminentes cortes renascentistas, nunca gozou do mesmo prestígio artístico de seus ilustres contemporâneos. Hoje, no entanto, os afrescos de Arezzo são reconhecidos como um dos grandes tesouros da arte.
A vida obscura de um artista célebre
São poucos os registros sobre a vida de Piero della Francesca. Sabe-se
que seus contemporâneos o reconheceram como grande mestre
e que trabalhou em algumas das mais brilhantes cortes renascentistas.
Piero della Francesca nasceu entre 1410 e 1420 na cidadezinha toscana de Borgo San Sepolcro (atualmente conhecida apenas como Sansepolcro), situada cerca de 65 quilômetros a sudeste de Florença. Dizem que seu pai, Benedetto dei Franceschi, um curtidor de couro e fabricante de botas, morreu antes do nascimento do menino. O relato da vida de Piero feito por Giorgio Vasari no século XVI conta que ele foi criado por sua mãe, Romana di Perino de Monterchi. Como se pode deduzir a partir do nome, Romana era originária da vizinha Monterchi, cidade cujo cemitério comporta em sua pequena capela um afresco de autoria de Piero — a Madona do Parto. O tema da obra é uma adequada homenagem à mãe do artista, provavelmente sepultada em sua cidade natal.
DOCUMENTAÇÃO ESCASSA
Não existe qualquer registro sobre os primeiros anos da vida de Piero. Na realidade, há poucos documentos referentes a qualquer período de sua vida. Ignora-se até mesmo por que era chamado della Francesca e não dei Franceschi como o pai. Em 1442 e novamente em 1467, foi eleito membro do conselho municipal de sua cidade, tendo recebido por essa época diversas encomendas de pinturas. Foi em Sansepolcro que redigiu seu testamento, vindo a falecer ali, como celebridade local, em 1492. Piero, indiscutivelmente, amava seu lugar de origem, pois no decorrer da vida, sempre que podia retornava a Sansepolcro. E traços da cidade, bem como de seus arredores, aparecem em várias de suas pinturas. Mas a busca de uma experiência artística mais rica e de novos encargos o levou à corte papal em Roma e às Cidades-Estados de Florença, Ferrara, Rimini e Urbino.
E em Florença que ouvimos falar dele pela primeira vez, trabalhando com o pintor Domenico Veneziano num afresco decorativo para a Igreja de Santo Egídio (hoje em parte destruído). O registro, datado de 7 de setembro de 1439, não deixa claro se Piero estaria ou não aprendendo seu ofício como assistente de Domenico. De qualquer forma, para um jovem com o talento de Piero, Florença tinha muito a ensinar e a estimular. Tendo derrotado Pisa, sua grande rival, a cidade vivia o apogeu de seu poderio. Em meio a uma efervescente vida artística e intelectual, Piero absorveu a influência de pintores como Gentile da Fabriano, que trabalhava dentro do estilo gótico flamboyant, e de Masolino e Masaccio, cujos afrescos devem tê-lo impressionado por sua austera monumentalidade. O artista deve, também, ter presenciado, com entusiasmo, as discussões a respeito das novas teorias sobre perspecticía apresentadas por Leon Battista no tratado Della Pittura (Sobre a Pintura). O próprio Piero chegou a se tornar um renomado mestre da perspectiva, ministrando aulas ao arquiteto Bramante, em Urbino, e escrevendo uma obra cujo título era De Prospettiva Pingendi (Sobre a Perspectiva na Pintura).
UM DIGNITÁRIO BIZANTINO
Um acontecimento ocorrido durante sua estada em Florença parece ter exercido forte impressão em Piero. Em 1439, João Paleologus, imperador bizantino, chegou à cidade vindo de Constantinopla. Viajava à Itália com os dignitários da Igreja do Oriente em busca de uma unidade cristã contra os turcos. No conselho de Florença foi solenemente proclamado um acordo entre as duas Igrejas. Esse acordo não teria vida longa, e a tomada de Constantinopla pelos turcos em 1453 levou a um clamor por uma nova cruzada. Esse tema seria posteriormente invocado por Piero em Flagelação de Cristo, na qual a figura de Cristo amarrado pode ser vista como símbolo do sofrimento infligido pelos turcos aos cristãos orientais.
Em 1439, obviamente, tudo isso ainda pertencia ao futuro. Mas o espetáculo do imperador e sua comitiva impressionou profundamente os florentinos. E o esplendor do Encontro de Salomão e a Rainha de Sabá, obra iniciada em 1452 e que integra o ciclo de afrescos que Piero pintou em Arezzo, revela que a lembrança desse evento ainda permanecia em sua memória, quase quinze anos mais tarde.
De Florença, Piero retomou à sua cidade natal onde, em 1445, recebeu sua primeira encomenda documentada pela história, o políptico conhecido como Retábulo da Misericórdia. Executado apenas parcialmente por Piero, é provável que tenha levado longo tempo para ser concluído: porque lento e meticuloso, o artista era também solicitado com freqüência a trabalhar para outros clientes.
Pouco antes de 1450, Piero visitou Ferrara. Embora não se encontre ali nenhum vestígio de seu trabalho, é clara a influência que deixou sobre a arte ferraresca posterior.
O TEMPLO DE MALATESTA
Piero foi chamado em seguida a Rimini, onde o célebre Sigismondo Malatesta requereu sua ajuda na ambiciosa redecoração da Igreja de São Francisco, conhecida como Templo de Malatesa.
O trabalho de Piero — um afresco mostrando Malatesta ajoelhado em veneração a Sigismundo, seu santo padroeiro — é sua única obra datada (a inscrição é de 1451). Piero trabalhou também para o grande rival de Malatesta, Federico da Montefeltro, cuja exemplar corte em Urbino era um famoso centro de aprendizado humanista e artístico. Trabalhou ali em diversos períodos entre 1450 e 1480, realizando duas de suas obras mais conhecidas: Flagelação de Cristo e o admirável díptico mostrando Federico e sua mulher, Battista Sforza, de perfil contra uma luminosa paisagem de colinas verdejantes e de águas claras e plácidas.
No início da década de 1450 Piero começou a trabalhar em sua encomenda mais vultosa: os afrescos de Arezzo. A família Bacci, prósperos comerciantes da cidade, confiara a decoração de sua capela, na Igreja de São Francisco, a Bicci di Lorenzo, pintor florentino da velha escola. Bicci, porém, morreu antes mesmo que começasse a trabalhar as paredes, e Piero foi convocado para realizar a tarefa. Ao lado de seus assistentes, dedicou a maior parte dos catorze anos subseqüentes a esse grandioso empreendimento. Em 1459 interrompeu por breve período o trabalho a fim de decorar os aposentos de Pio II no Vaticano — trabalho posteriormente coberto pela pintura de Rafael. Mas logo voltava a Arezzo. Em 1466, o ciclo estava concluído. Embora o futuro ainda lhe reservasse vários trabalhos importantes, Piero jamais se envolveria em tarefas de grande envergadura.
A CEGUEIRA NA VELHICE
De acordo com o que diz a tradição, Piero perdeu a visão na velhice. Marco di Longaro, um fabricante de lanternas de Sansepolcro, contou a um memorialista do século XVI que, quando menino, costumava "conduzir pela mão o mestre Piero della Francesca, excelente pintor, que estava cego". Seja como for, ainda em 1447, Piero pôde redigir seu testamento de próprio punho, declarando-se "sadio de mente, intelecto e físico" . Solteiro e sem filhos, legou seus bens a irmãos e sobrinhos. Cinco anos mais tarde, o artista falecia, sendo enterrado no jazigo da família na Abadia de Sansepolcro. O registro de sua morte pode ser visto no Palazzo, antiga sede da prefeitura e hoje museu municipal: "M. Piero di Benedetto e Franceschi, célebre pintor, falecido em 12 de outubro de 1492".
Beleza austera e rigor formal
Matemático e artista, Piero della Francesca foi o primeiro a tentar
uma aplicação sistemática rigorosa da perspectiva
geométrica à pintura, criando uma arte de austera beleza formal.
Altamente individual, o estilo de Piero della Francesca é bem diferente da pintura dos artistas italianos do século XV. Em lugar do detalhe decorativo e da ornamentação graciosa, ele propõe a harmonia geométrica e uma austeridade clássica que remontam à escultura grega. São esses aspectos, aliados a seu poder de captar as nuances da luz e à rica harmonia das cores — porque foi um grande colorista e inigualável no tratamento da luz —, que tornam sua obra tão atraente hoje. Uma obra que busca a celebração religiosa por meio de um diálogo solene e eterno entre o humano e o divino.
Profundamente imerso na sofisticada cultura humanística de Florença, Urbino e Arezzo, muitas das pinturas de Piero conservam, contudo, um poder quase primitivo. A virgem da Madona do Parto, as figuras de Adão e Eva já velhos representadas em A Morte de Adão e os músicos angelicais de A Natividade parecem espelhar um ideal de humanidade ao mesmo tempo simples é sublime. No conjunto, a obra de Piero della Francesca é um cortejo solene, majestoso e estático de figuras monumentais, permeadas de grave dignidade, imersas numa contemplação mística e dispostas segundo rígida geometria.
A quase totalidade de sua obra é constituída de temas religiosos, com freqüência representados dentro da estrutura tradicional do retábulo. Mas não é uma arte convencional. O que o observador apressado não vê é que, em termos conceituais, sua obra não pretende ser meramente uma exaltação religiosa. Vai além. Exprime o desejo de aproximar-se do conhecimento de Deus mediante a sacralização da vida humana.
UM MESTRE DA PERSPECTIVA
O mérito notável de sua originalidade técnica se apóia na mestria no uso da perspectiva o primeiro, aliás, a tentar uma sistematização nesse campo. Essa preocupação pode ser admirada nos detalhes arquitetônicos de pinturas como Flagelação de Cristo e em A Virgem e o Menino com Santos e Anjos, conhecida como o retábulo de Brera. O piso e o teto recuados da galeria, no primeiro, e a abside de mármore que emoldura a Virgem, no segundo, foram pintados com incrível precisão, intensificada pela representação exata de luz e sombra. Sabe-se pelos tratados teóricos de Piero que esse resultado era fruto de rigorosa pesquisa matemática. O artista, no entanto, raramente buscava o virtuosismo em si. Em Ressurreição de Cristo ele usou uma perspectiva dupla: os soldados diante do sepulcro são vistos de baixo para cima, representados em tamanho reduzido, enquanto a parte superior do quadro pressupõe um ponto de vista na altura do rosto de Cristo. Isso, porém, é mais ,que uma demonstração de habilidade técnica. E parte do conteúdo emocional e simbólico desse afresco, citie contrapõe a letargia do mundo humano ao despertar milagroso do ressuscitado.
O rosto e o vulto deste Cristo são um bom exemplo da representação de Piero do corpo humano. Embora suas figuras de homens e mulheres por vezes possam parecer inexpressivas à primeira vista e as posturas quase sempre pareçam mais contemplativas do que ativas, sua vitalidade e nobreza são inquestionáveis. Além disso, ao lado da magistral habilidade para criar figuras ideais e heróicas, Piero demonstrou, enquanto retratista, que conseguia captar o caráter distintivo, único, do modelo. Os retratos do Duque e da Duquesa de Urbino incluem-se entre as mais memoráveis imagens do Renascimento.
O talento de Piero como retratista, porém, é menos importante que seu poder de sugerir algo mais arquetípico e atemporal na forma humana. O jovem louro de Flagelação de Cristo e os anjos de O Batismo de Cristo e de A Natividade compartilham de uma serenidade reminiscente da escultura grega. Sabemos que Piero, como outros artistas do Renascimento, utilizava-se de modelos vestidos em trajes leves, a fim de estudar o caimento dos tecidos e a maneira como a luminosidade incidia sobre eles. E podemos apontar algumas características particulares — os pés, por exemplo, cuja firme aderência ao chão é tão convincente em todos esses casos — como segredos da arte de Piero. Contudo, tais detalhes não podem, por si só, explicar a visão arquetípica subjacente que o pintor transmitiu de forma tão notável.
CORES E ESPAÇOS
Outro aspecto desta mesma visão — e talvez o que proporcione o prazer mais imediato e intenso — é a harmonia das cores. Apesar de danificados, os afrescos de Arezzo nunca deixam de surpreender pelo fulgurante frescor. Em Vitória de Constantino sobre Massenzio, a paleta até então restrita de Piero atinge intensidade sinfônica. A mesma harmonia permeia as cores das vestes em Flagelação de Cristo e unifica os dois anjos na Madona do Parto, cujos gestos e vestimentas estão como que refletidos numa heráldica imagem espelhada.
Mais característico ainda do estilo de Piero é o sentido etéreo do espaço criado pela luz que ilumina os céus e se propaga pelas paisagens. Aqui, Piero em larga medida abre mão da perspectiva, usando a cor numa forma que antecipa os impressionistas. Em A Natividade, suas figuras angelicais e humanas estão ousadamente agrupadas contra um panorama rural que se perde na distância. O mesmo efeito é obtido de maneira ainda mais audaciosa no Díptico do Duque de Urbino, no qual nenhum fundo intermediário é colocado entre os perfis dos retratados e a paisagem idealizada de seus domínios. As terras aparecem bem abaixo e atrás de ambos, banhada pela luz clara e radiante do céu italiano.