Pintor formalista e zeloso diretor de escola, Ingres é um dos expoentes do neoclassicismo francês. Sua obra está marcada por uma singularidade toda especial, que a faz resistir ao tempo. Seus temas são vários. Retratos ao mesmo tempo realistas e reveladores da intimidade de seus modelos e do luxo da aristocracia de seu tempo.
Extraordinários estudos de nus femininos — uma obsessão em sua vida — e esplêndidos quadros em que a nudez da mulher está imantada por uma tensão de volúpia e erotismo contidos na magia de um instante romântico, de beleza suave e perfeita. Cenas poéticas do cotidiano, com forte clima intimista. Evocações da História recente e passada, em primorosas concepções épicas, que fazem apologia do herói (o povo francês idealizado nas revoluções ou figuras como Homero). Cenas mitológicas que emanam fantástica luminosidade, como se os seres tivessem fosforescência. E outras maravilhas.
UM ARAUTO DA TRADIÇÃO
Desde a época de estudante desconhecido até a velhice cercada de honrarias, Ingres foi um firme defensor dos valores tradicionais. Mas seu academicismo sempre teve o toque do gênio.
Montauban é uma poeirenta cidade provinciana bem no sudoeste da França, a uns 65 km de Toulouse. Seu filho mais famoso acabaria sendo Jean-Auguste-Dominique Ingres, lá nascido em 29 de agosto de 1780. Seu pai era um artista menor: escultor, decorador em gesso e pintor de miniaturas.
O pai de Ingres passou muitas de suas habilidades ao filho, ensinando-o a desenhar, a pintar, e também a tocar violino. Em 1791 a família mudou-se para Toulouse para que Ingres lá pudesse frequentar a Academia. Com a idade de 14 anos, ele podia ser visto tocando violino no Teatro Municipal, sendo muito aplaudido e até pago para se apresentar.
Em agosto de 1797, com 17 anos, Ingres transferiu-se para Paris, armado com uma carta de forte recomendação de Joseph-Guillaume Rocques, um de seus professores em Toulouse.
UM ESTUDANTE PREMIADO
Chegando a Paris, Ingres experimentou uma grande maré de boa sorte que iria traçar o curso de sua futura carreira. Foi rapidamente aceito para o estúdio de Jacques-Louis David (1748-1825), sem dúvida ajudado pelos extravagantes elogios de Rocques. David, nessa época, era o principal pintor da França, dominando muito bem a intoxicante mistura de arte, política e patronagem estatal que existia sob uma sucessão de governos revolucionários.
Ingres parece ter ignorado a política, mas reagiu entusiasticamente ao neoclassicismo ensinado por David. Em outubro de 1799, entrou para a Escola de Belas-Artes e, três meses depois, ganhou um prêmio por um estudo de figura humana na escala de três quartos. Em outubro de 1800, continuava a fazer sucesso, alcançando o segundo lugar na competição pelo Prêmio de Roma, que ele ganhou em setembro de 1801 com uma composição inteiramente "davidiana",Os Embaixadores de Agamenon na Tenda de Aquiles.
O Prêmio de Roma era então a mais importante consagração que um estudante podia ter. O próprio David o recebera em 1774. Além de distinguir Ingres entre os acadêmicos, o Prêmio de Roma dava-lhe direito a quatro anos de estudo na conceituada Academia de França em Roma. Mas Ingres não pôde viajar logo para a Itália, pois o próprio governo da França revolucionária do começo do século XIX (antes da ditadura napoleônica e ainda sob impacto da Revolucão Francesa de 1789) atrasou as burocracias e não liberou verbas. Enquanto o jovem pintor esperava, o governo francês pagou-lhe um salário para que ele se instalasse em Paris.
Hospedado no Convento dos Capuchinhos, onde montou um pequeno estúdio, o premiado Ingres não teve dificuldade em receber encomendas. Pintou retratos de mulheres da aristocracia francesa, que lhe deram mais fama como acadêmico. Em 1803, a cidade de Liege convidou Ingres a pintar um retrato de Napoleão, que na época era primeiro cônsul. O quadro, doado à cidade de Liege por Napoleão, seria exposto ao público em 1805.
Na falta de convites para pinturas históricas (que, na teoria acadêmica, constituíam o ramo mais elevado da arte), Ingres foi forçado a se concentrar em retratos, entre os quais a notável série de três, em 1805, mostrando os pais e a jovem filha da família Rivière, todos mortos tragicamente naquele mesmo ano. Em 1806 pintou Napoleão novamente, desta vez como imperador, em mantos de arminho.
Todos esses quadros foram mostrados ao público no Salão, em setembro de 1806. Mas, antes da abertura da exposição, Ingres recebeu a verba para sua viagem a Roma e partiu para a Itália. Na sua ausência, os quadros foram mal exibidos e receberam um tratamento cáustico por parte dos críticos. O trabalho de Ingres foi chamado de "gótico", com o significado de primitivo ou mesmo bárbaro, e o retrato de Napoleão chamado de "Napoleon mal-Ingre" — um trocadilho com o nome de Ingres sugerindo que o imperador parecia doente na pintura. Quando as notícias dessas críticas alcançaram Ingres no caminho da Itália, ele ficou profundamente abatido, referindo-se ao Salão como "teatro da minha vergonha".
AMIZADES EM ROMA
Em outubro de 1806, quando chegou a Roma, Ingres foi calorosamente recebido. Roma estava sob ocupação francesa, o que obrigava os colaboracionistas a bajular os hóspedes franceses. O diretor da Academia de França deu-lhe efusivas boas-vindas e um pequeno estúdio só para ele. Ingres passou quatro anos gozando de uma pensão estatal e estudando e copiando os velhos mestres, especialmente Rafael, por cujo trabalho desenvolveu um profundo respeito. Fez duas amizades pessoais que iriam ampará-lo nos anos difíceis que estavam para vir: o gravurista Edouard Gatteaux e o funcionário público Jean Marcotte d'Argenteuil.
Ingres continuou em Roma depois de terminada sua bolsa de quatro anos, pois preferia a vida de Roma à de Paris. Em 1811, mandou seu Júpiter e Tetis para a Academia, mas o quadro encontrou uma fria recepção. Ingres foi repreendido por esperdiçar seu talento — e a bolsa que permitiu que ele estudasse em Roma — em um trabalho tão bizarramente pessoal. Os franceses em Roma olhavam-no de maneira mais gentil e ele ganhava a vida razoavelmente bem, pintando retratos dos familiares do governador e outras pessoas notáveis. Em 1813, começou a pintar O Sonho de Ossian (sua encomenda mais importante até então: o quadro iria decorar o quarto de dormir do imperador no Palácio do Quirinal de Roma — mas Napoleão jamais o veria).
UM ANO DESASTROSO
O desastre veio em 1814. Naquele ano, Ingres recebeu um convite para pintar a Rainha Caroline Murat em Nápoles, mas os exércitos de Napoleão foram derrotados e todo o edifício do Império ruiu. Os patrocinadores oficiais de Ingres sumiram. Sua esposa ficou doente, com um bebê à morte. Seu pai morreu em Montauban, deixando sua mãe sem recursos. Durante um tempo ela também foi para Roma, na esperança de ser sustentada pelo artista, agora sem nenhum futuro, com o nome intimamente associado ao regime bonapartista.
Relutantemente, Ingres começou a ganhar a vida desenhando os turistas ingleses que iam em bandos para Roma, agora que a cidade estava aberta para eles depois dos anos de guerra. Seus quadros no Salão eram ignorados em Paris, mas ele continuava sua luta, completando seu célebre nu A Grande Odalisca. Enviou-o para o Salão em 1819 junto com Rogério Libertando Angélica. Mais uma vez, a reação da crítica foi fria.
Em 1820, Ingres mudou-se para Florença, indo morar com um velho amigo que conheceu no estúdio de David, fazendo pequenos trabalhos para manter um precário sustento como pintor de retratos semi-oficiais de embaixadores e visitantes importantes. Em 1824, completou 0 Voto de Luis XIII, encomendado pela catedral de Montauban, e acompanhou o quadro até Paris. O quadro foi exibido naquele mesmo ano no Salão, onde 0 Massacre de Chios do jovem Delacroix também estava em exposição. Em meio à controvérsia que este último suscitava, Ingres, então com 44 anos, ficou agradavelmente surpreso ao verificar que seu quadro era um enorme sucesso. Talvez em reação a Delacroix e ao incipiente movimento romântico, os críticos saudaram Ingres como o protetor dos valores tradicionais.
Retornando depois de anos de semi-obscuridade e mesmo de total fracasso na Itália, de repente ele era a fonte mais respeitada do conhecimento convencional. Carlos X condecorou-o com a Cruz da Legião de Honra e ele foi eleito para a Academia de Belas-Artes. Abriu um estúdio e mais de cem alunos se amontoaram para receber os ensinamentos de seu recém-venerável professor. O sucesso de Ingres trouxe-lhe as encomendas caras, como ele queria, pois valorizava sua arte. A primeira encomenda foi A Apoteose de Homero para um teto do Louvre, instalado em 1827. Em 1829, Ingres tornou-se professor na Escola de Belas-Artes e em 1834, seu presidente anual.
Nesse mesmo ano, aceitou o posto de diretor da Academia de França em Roma. Lá, foi um professor e administrador modelar, fazendo diversos melhoramentos nas instalações da escola. Os quadros que produziu na sua segunda estada em Roma incluem Antíoco e Estratonice.
A VOLTA TRIUNFANTE
Em 1841, Ingres retornou a Paris, agora como mestre incontestável da arte oficial francesa. Duques entravam em fila para terem seus retratos pintados, instituições imploravam por grandes temas simbólicos. Em 1849, sua devotada esposa faleceu. Cancelou o contrato para um enorme esquema decorativo que ele vinha desenvolvendo para o Duque de Luynes e saiu em viagem. De volta a Paris, atirou-se de novo ao seu trabalho, com uma gigantesca equipe de assistentes e respeitosos estudantes.
A divisão, de certo modo artificial, entre a pintura clássica e a romântica estava agora firmemente estabelecida e, na Exposição Universal de 1855, em Paris, Ingres e Delacroix, que criticavam um ao outro, receberam salas especiais para cada um exibir seus trabalhos. A inimizade entre os dois tinha crescido com os anos, desde o tempo em que o jovem Delacroix tinha manifestado uma admiração invejosa por Ingres, dezoito anos mais experiente, em 1824. Para Delacroix, o trabalho de Ingres era "a expressão completa de uma inteligência incompleta". Como resposta a essas agulhadas, Ingres murmurou "sinto cheiro de enxofre" quando Delacroix entrou na mesma sala que ele, na exposição. Em 1857, Ingres riu por último, pois quando Delacroix, com a saúde abalada, quis assegurar sua eleição para a Academia, teve que escrever uma humilhante carta a Ingres, o acadêmico mais antigo, para evitar o veto certeiro.
Para Ingres, agora aproximando-se dos 80 anos, as honrarias se acumulavam, e ele foi nomeado grande oficial da Legião de Honra. Para um homem da sua idade, ele ainda tinha muita energia e seus últimos anos trouxeram muito mais obras-primas, culminando com o extraordinariamente sensual 0 Banho Turco, terminado em 1863. Esse quadro confirma as suspeitas levantadas por muitos dos nus anteriores de Ingres, de que ele era dado a um erotismo de voyeur, o que não combinava muito com sua postura de sólido pilar da burguesia. Ingres morreu em Paris, em 14 de janeiro de 1867, com a idade de 86 anos, e foi sepultado no Cemitério de Père Lachaise. Deixou muitos quadros e mais de 4 000 desenhos para sua cidade natal, Montauban, onde agora estão abrigados, com sua paleta, seu violino e outros objetos de sua vida, no singelo Museu Ingres.
A BELEZA DAS LINHAS
Criador de uma pintura escultural em duas dimensões, Ingres baseou sua obra no estudo dos velhos mestres. Seu forte é o desenho ao mesmo tempo clássico e original, às vezes permeado de sensualidade.
Uma das piores aguilhoadas que Ingres tinha de suportar era o trocadilho com seu nome, engris, em gris (cinza). Seus críticos usavam essa piada para sugerir que seus quadros eram maçantemente descoloridos, em contraste com os do seu exuberante rival Eugene Delacroix. Mas se os ricos tons de roupas usadas por algumas figuras retratadas por Ingres desmentem essa acusação, por outro lado há uma semente de verdade nela. Para Ingres, desenhar era infinitamente mais importante do que colorir, e ele é quase inigualável como desenhista. Seus desenhos de rascunho para os retratos, por exemplo, têm uma precisão e uma clareza de qualidade excepcional. Anos mais tarde, diferentes artistas, como Degas e Picasso, se confessaram influenciados pelo traço de Ingres.
A ROTA PARA UM QUADRO
Para Ingres, entretanto, o ato de desenhar não era jamais um fim em si mesmo, mas um passo no caminho que levaria, através de um itinerário complexo, ao perfeito acabamento plástico do quadro final. Nisso, ele seguia os ensinamentos que tinha recebido no estúdio de David e na Escola de Belas-Artes da Academia. Produzindo dúzias de cuidadosos desenhos, ia descobrindo as articulações exatas e as poses mais perfeitas para suas figuras humanas. Mesmo quando trabalhava num retrato, fazia estudos de modelos nus para poder compreender a forma do corpo por baixo das camadas de roupas elegantes.
Da mesma forma que a seus desenhos de modelos, dava grande atenção às pinturas dos velhos mestres, particularmente do renascentista Rafael Sanzio (1483-1520), que cultuava acima de todos os outros. Durante sua estada na Itália, era assíduo copiador das pinturas do Vaticano e de outras coleções, e frequentemente ficava tão fascinado por suas descobertas que as copiava repetidamente. Podemos mesmo ver o rosto de uma madonna de Rafael em atitude de sensual espreita no magnífico A Grande Odalisca.
Além de suas próprias cópias e desenhos, o estúdio de Ingres estava cheio de gravuras inspiradas nos velhos mestres. O escritor Theóphile Silvestre, num ataque dirigido a Ingres, assim o descreveu em 1857: "Vejo-o lá, uma figura agitada rodeada por um círculo encantado de gravuras, virando-se, revirando-se, tomando uma atitude aqui, uma outra acolá, uma cabeça, um braço, mãos, uma figura, um grupo, uma tumba, uma coluna, uma cariátide, um templo...". O processo era obviamente cansativo, de tentativa e erro, de estudos repetidos e contínuo repensar.
ESBOÇOS
Os esboços de Ingres revelam algo mais sobre seus métodos de trabalho. As figuras humanas são quase sempre espantosamente naturalísticas. Rascunhos de nus para o quadro Rogério Libertando Angélica mostram um modelo nu com um penteado contemporâneo e tratamento realista, até o pelo púbico está incluído.
Certamente Ingres usou um modelo real para esses desenhos. Na pintura final, entretanto, o realismo foi substituído por pura fantasia. A graciosa figura de Angélica é agora um arquétipo de Ingres, com o pescoço distorcido, pose exagerada e rosto idealizado, com feições diferentes das dos desenhos mais naturais.
Para Ingres, o processo de desenhar e rascunhar era uma espécie de busca da perfeição, de uma forma ideal e platônica. Para usar termos que agora compreendemos, mas que seriam completamente estranhos para ele, Ingres procurava ritmos abstratos e formas que dependessem só parcialmente da figura, objeto ou ação sendo representada. Muito antes dos fauvistas, cubistas e pintores abstratos do século XX, ele via suas pinturas quase inteiramente em duas dimensões, com contorno firme e a forma predominante no primeiro plano da superfície.
DISTORÇÃO ANATÔMICA
Ingres não tinha nenhum escrúpulo em distorcer a anatomia de suas figuras para conseguir as curvas de ritmos langorosos que ele adorava. Uma de suas obras mais famosas, A Grande Odalisca, exibida em 1819, tem costas anormalmente longas (contendo três vértebras extras, de acordo com seus críticos) e quadris imensos. Para alcançar esse efeito, ele suprimia a modelagem da figura, para que a impressão de profundidade não interferisse com seu desenho bidimensional. Pelas mesmas razões, a superfície do quadro tinha de ser tão lisa quanto possível e sem marcas óbvias de pincel — a tinta deveria ficar tão fina e bem espalhada "como a casca de uma cebola", acreditava ele.
Depois que descobria uma forma perfeita, ou pelo menos uma que o satisfizesse, Ingres tornava-se obcecado por ela. As maravilhosas costas esculturais de A Banhista de Valpinçon foram para ele um achado de beleza, e ele repetiu esse mesmo motivo em vários quadros por muitos anos, como se pode perceber em O Banho Turco, terminado mais de meio século depois da "descoberta" dessa pose original.
Enquanto era tido por seus contemporâneos como o sumo pontífice do neoclassicismo, acatando suas regras e preceitos em cada pormenor, a contradição central da assaz contraditória arte de Ingres é que ele era um pintor inteiramente individualista. No fim, foram seus trejeitos pessoais, sua abordagem clássica de temáticas românticas, suas obsessões e maneirismos que o tornaram proeminente, muito mais que sua adesão ao credo acadêmico. Suas maiores obras, como observou o poeta Baudelaire (1821-1867), "são o produto de uma natureza profundamente sensual".