Original e brilhante, Joseph Turner foi um dos maiores pintores britânicos. Famoso já aos 30 anos, era figura de destaque na Academia Real inglesa. Mas nunca deixou de ser um homem áspero e solitário, conhecido também por seu desleixo no vestir e por certa avareza. Criado em Londres, viveu fascinado pelo Tâmisa: a água e os barcos, juntamente com os efeitos da luz, sempre foram sua inspiração maior. A área da cidade às margens do rio foi o local que escolheu para viver. Mas viajava muito — pela Grã-Bretanha e pelo resto da Europa —, em busca de novas paisagens para pintar. Quando morreu, aos 76 anos. deixou um imenso legado que totaliza mais de 20.000 obras, entre esboços, óleos e aquarelas.
Com Talento e Determinação
Marcado por um comportamento anticonvencional e pela
originalidade e audácia de sua pintura, Turner não só se dedicou
inteiramente a ela como sempre se empenhou em divulgá-la.
Joseph Mallord William Turner nasceu em Londres em 23 de abril de 1775. Seu pai era barbeiro, e sua mãe, filha de um açougueiro. A família morava sobre a barbearia, em Maiden Lane, Covent Garden, uma área da capital inglesa que, tal como ainda hoje, estava estreitamente ligada às artes.
Pouco se sabe a respeito de sua mãe, apenas que era propensa a ataques nervosos que a levariam à loucura: internada por insanidade no Hospital Bethiem, em 1790, viria a morrer quatro anos depois, num asilo particular. Turner jamais a mencionaria em sua vida adulta.
Com o pai, ao contrário, o relacionamento era muito próximo, embora ele tenha comentado certa vez: "Papai nunca me dispensou elogios, exceto por economizar meio penny". Esses elogios não foram em vão, pois Turner cresceu como um homem parcimonioso e extremamente astuto nas questões financeiras. E, na verdade, o pai também o encorajava de outras maneiras, inclusive exibindo seus desenhos na barbearia.
Quando garoto, Turner descobriu o amor pelo rio próximo à sua casa: as águas agitadas do Tâmisa, as constantes mudanças no jogo da luz de sua superfície, a neblina que dali emergia para as velas e o cordame dos navios, e mesmo o movimento das docas eram cenas que o perseguiriam durante toda a vida.
Na infância, Turner não recebeu nenhuma educação artística em particular. Entretanto, o treinamento que empreendeu, aliado a seu grande talento, foi suficiente para qualificá-lo a ingressar, aos 14 anos, no curso livre da Academia Real inglesa. Foi o mais jovem integrante da instituição, em toda a sua história. Ali, Turner trabalhou tão arduamente, e com resultados tão positivos, que atraiu críticas favoráveis e patronos. Ainda na Academia, estudou com Thomas Malton, autor de aquarelas detalhadas de motivos arquitetônicos.
A partir de 1794 e durante os três anos seguintes, Turner trabalhou na Monro School, copiando obras de outros artistas por alguns pence por noite. Entre os artistas cuja obra copiou estava John Robert Cozens (1752-1792). Seu contemporâneo — e rival —, Thomas Girtin, copiava os contornos; Turner completava, adicionando a aquarela.
As selvagens e românticas paisagens suíças e italianas de Cozens parecem ter inspirado o jovem artista a procurar pintar tais cenas por si mesmo. E, em 1798, Turner já podia afirmar que tinha bem mais encomendas do que tempo disponível para realizá-las.
UM CARÁTER SOMBRIO E FECHADO
Turner era de estatura baixa e, com o tempo, foi se tornando atarracado e pesado, sem que isso prejudicasse sua energia natural. No rosto destacavam-se o nariz e um par de olhos atentos. Vários retratos mostram que seu aspecto era um tanto desalinhado, certamente em conseqüência do eterno hábito de fazer economia, comprando roupas baratas. Era, sobretudo, um homem seco, taciturno, só revelando na intimidade seu lado mais caloroso. Cercou com uma aura de mistério seus métodos de trabalho e era notoriamente fechado quanto à sua vida pessoal.
No ano em que ingressou na Academia fez a primeira de uma série de viagens que iriam lhe dar os padrões de sua vida profissional. Exibia grande resistência física nessas viagens e uma infatigável capacidade para elaborar esboços rápidos e incisivos em seu caderno de anotações. São esboços que, inclusive, formaram a base de suas aquarelas "topográficas": os estudos detalhados das construções góticas, por exemplo, que fez até 1796. Nesse ano, aliás, expôs pela primeira vez um quadro a óleo, Pescadores no Mar — uma cena sob a luz do luar que ilustra dramaticamente os perigos enfrentados por pescadores durante um vendaval próximo à ilha de Wight's Needles.
No dia 31 de dezembro de 1799 Turner foi eleito sócio da Academia Real. Já era financeiramente independente e assim pôde sair de casa em 1800, estabelecendo-se na Harley Street. Nessa época mantinha um relacionamento com Sarah Danby, mãe de quatro filhos, que enviuvara recentemente. Tiveram, por sua vez, dois filhos, e este relacionamento durou vários anos, embora nunca tenham se casado nem vivido juntos. Os desenhos eróticos que Turner fez nesse período, retratando mulheres nuas, revelam seu vigoroso lado sensual; no entanto, ele nunca permitiria que qualquer relacionamento interferisse em seu rígido programa de trabalho.
Ainda em 1799, William Beckford, rico colecionador de arte e um dos patronos de Turner, abriu as portas de sua casa aos que se interessassem em estudar duas famosas pinturas de Claude Lorrain. Esses trabalhos causaram impacto em Turner, que imediatamente decidiu pintar temas históricos nas mesmas grandes dimensões. Ao invés de se sentir intimidado pelos mestres antigos, ele tentava imitá-los, competir com eles e, se possível, superá-los. A feroz competitividade era, aliás, outra característica de sua personalidade.
Em 1802, com apenas 26 anos, Turner passou a membro vitalício da Academia Real e, cinco anos depois, tornou-se professor de perspectiva. Apesar de seus desentendimentos periódicos com os colegas e de suas ocasionais ausências das exposições organizadas pela casa, Turner fez da Academia seu lar profissional e emocional: permaneceria sempre fiel a ela, tomando-a quase como sua "mãe" — da mesma forma que via seus quadros como "filhos".
A CARREIRA GRATIFICANTE
Turner viajou pela primeira vez ao continente em 1802, motivado por uma exposição no Louvre: Napoleão decidira mostrar os tesouros em obras de arte que pilhara durante suas conquistas na Europa. Turner foi um dos primeiros pintores ingleses a atravessar o canal da Mancha para vê-los. E desembarcou em Calais, durante forte tempestade que, num gesto típico dele, reproduziu em desenho no próprio local, acrescentando a nota: "Quase um naufrágio".
Antes de chegar a Paris, satisfez um antigo desejo, o de conhecer a Suíça — que percorreu em carruagem própria, comprada por medida de economia. Foi uma viagem exaustiva, e Turner comentou muito pouco a respeito do país.
Mas os Alpes o impressionaram vivamente, motivando mais de quatrocentos esboços, e estariam, a partir de então, entre os temas que mais abordou. Dez semanas depois estava em Paris, onde se dedicou a um estudo minucioso de mais de trinta obras expostas no Louvre.
De volta à Inglaterra, e com uma situação financeira cada vez melhor, em 1804 ele se sentiu suficientemente seguro para ampliar sua casa na Harley Street, construindo ali uma galeria onde organizava as próprias exposições: uma novidade entre os pintores britânicos, mas, na verdade, apenas mais um recurso de que Turner lançou mão para que seu trabalho fosse visto e mesmo compreendido.
Nos quinze anos seguintes ele iria restringir suas viagens à própria Inglaterra, visitando as propriedades e as regiões de seus patronos, fazendo estudos arquitetônicos e paisagísticos. No entanto, sua paixão por navios, pelo mar e pelos rios jamais arrefeceu. Em 1805 ele desenhou o Victory adentrando o rio Medway e trazendo ainda no convés o corpo do almirante Nelson.
Depois de viver por algum tempo em Hammersmith, Turner mudou-se para Isleworth, de onde supervisionou a construção de uma nova casa em Twickenham — sempre às margens do Tâmisa. Nessa ocasião seu pai juntou-se a ele, administrando seus negócios e trabalhando como seu assistente no estúdio.
Turner progredia e, pouco a pouco, foi sendo reconhecido como um dos maiores paisagistas de seu país.
ITÁLIA: O IMPACTO DEFINITIVO
Mas a primeira visita que fez à Itália, no outono de 1819, iria provocar uma mudança radical em sua vida. Tinha, então, 44 anos e estava no auge de seu poder criativo. A Itália e sua arte o impressionaram sob todos os aspectos, mas nada o tocou tanto e tão profundamente como sua luminosidade. Em apenas dois meses, preparou aproximadamente 1.500 esboços em grafite. E teve, também, a oportunidade de observar e desenhar uma erupção do Vesúvio: um espetáculo, aliás, sob medida para seu gosto.
Depois de conhecer a Itália, Turner se decidiu a expressar uma visão própria da luminosidade e de seu poder. Nenhum artista antes dele imprimira a mesma intensidade ao tratar a luz enquanto pura cor. Apesar disso, ele não rompeu com seu passado, apenas estabelecendo uma nítida divisão entre o trabalho que fazia para manter sua renda e as telas experimentais, onde sua criatividade não via limites.
Continuou a viajar e a executar suas encomendas. Uma delas — na verdade, uma encomenda real — pedia que ele retratasse a Batalha de Trafalgar. Turner a fez banhada de patriotismo, mas, para sua grande decepção, o quadro não foi bem recebido na corte.
Em 1828, Turner estava de volta a Roma e novo explosivo impacto iria se desenvolver a partir dali em sua produção. No ano seguinte, porém, a morte de seu pai, aos 85 anos, foi um golpe tão terrível que, segundo um amigo, "Turner jamais mostrou ser o mesmo homem". Algumas visitas a Petworth, a convite de Lorde Egremont, trouxeram-lhe certo conforto e estimularam uma série de esplêndidos interiores.
Logo depois, por volta de 1833, tudo indica que Turner iniciou novo relacionamento amoroso, com Sophia Booth, uma fazendeira de Margate. Tal como Sarah Danby, a sra. Booth era viúva recente e dispunha de meios próprios de sobrevivência; na verdade, já se casara duas vezes antes. Mas, como sempre, um mistério envolveu também esse relacionamento e só se sabe mesmo que os dois estiveram juntos até a morte do pintor.
Logo no início da década de 1830, Turner passara a retratar cenas de Veneza e, após nova visita, em 1835, a cidade e sua extraordinária luminosidade tornaram-se uma obsessão, permeando definitivamente sua obra. Só que ela já estava ousada demais para o gosto popular da época, e o público não escondia sua contrariedade. Turner, porém, vivia sua plena maturidade artística. Seus quadros continuavam a ser expostos na Academia Real, e ele, por sua vez, enfrentava as hostilidades sem ceder; mais que isso, reagiu violentamente ao desprezo popular por suas conquistas estéticas, tornando suas imagens cada vez mais rarefeitas.
Mas também se isolava sempre mais. Comprou uma casa em Cheyne Walk, em Chelsea, numa curva do Tâmisa, onde viveu com a sra. Booth e em cujo sótão montou uma pequena galeria. Tornou-se mais recluso do que nunca, chamando a si mesmo de sr. Booth. Estava com mais de 70 anos e sua saúde dava sinais de declínio. Não deve ter sido à toa, portanto, que intitulou Visita ao Túmulo o último quadro que enviou para ser exposto na Academia Real. Morreu em 19 de dezembro de 1851, em seu quarto, observando o Tâmisa.
Foi enterrado na Catedral de São Paulo. Antes dos funerais, porém, os presentes se surpreenderam ao encontrar em sua galeria no sótão uma quantidade enorme de pinturas, muitas delas apodrecendo em seus esticadores e manchadas por goteiras. Em seu testamento, Turner deixava para sua pátria cerca de trezentos quadros a óleo e aproximadamente 20.000 aquarelas, pedindo que fossem alojados numa galeria especial. Também determinava que sua fortuna somando 140.000 libras — fosse destinada a uma instituição que atendesse artistas ingleses necessitados, do sexo masculino. Mas seus desejos não foram cumpridos.
A Expressão Dramática da Natureza
No início de sua carreira, Turner documentava com precisão lugares
pitorescos. Transformou-se, depois, em grande pintor da imaginação,
evocando imagens dramáticas a partir da infinita majestade da natureza.
Turner exerceu na pintura européia uma influência mais duradoura, mais profunda e mais ampla que a de qualquer outro artista britânico. Foi um dos mais talentosos paisagistas de seu país, responsável por um trabalho artístico considerado revolucionário para sua época. E foi, também, um legítimo precursor do Impressionismo, pois, embora sua pintura seja essencialmente romântica, expressa de modo pessoal um diálogo do homem com a natureza.
A produção de Turner evoluiu dentro de grande unidade, de modo gradativo e linear, partindo de seu contato com a obra dos importantes paisagistas que o antecederam, sobretudo de Claude Lorrain (1600-1682).
No início dedicou-se às paisagens, seguindo o estilo acadêmico e adotando motivos marítimos e motivos arquitetônicos, como abadias em ruína, castelos abandonados e vilarejos decadentes, que seu gosto pelo pitoresco privilegiava.
Dotado de excelente memória, seus trabalhos se baseavam em esboços que ele depois retomava e reconstituía inteiramente em seu estúdio. Mas saía em campo aberto em qualquer tempo, disposto a captar as impressões da natureza e dando vazão à sua preferência pelo dramático e pelo catastrófico: vendavais, avalanches, tempestades em alto-mar e a destruição de grandes civilizações. Esses foram os temas que escolheu logo que se libertou dos cânones acadêmicos.
Turner trabalhou muito em aquarela, embora tenha óleos inigualáveis. Em ambos os campos foi um pesquisador incansável, experimentando tintas, e, por isso mesmo, muitas de suas telas — sobretudo os óleos — se deterioravam com muita rapidez. Além disso, Turner era um tanto negligente com seus quadros, o que acabou contribuindo para a danificação de muitos deles.
REDEMOINHOS DE LUZ
Já as primeiras telas expostas revelavam o interesse de Turner pelo mar e pelo estudo da luz. São quadros que, na linha evolutiva de sua obra, foram se tornando ainda mais fascinantes pela forma elíptica da composição, com áreas centrais claras e as bordas de cores e contornos mais imprecisos. Em 1805 ele já usava a tinta de maneira livre e arrojada e, ao compor suas telas em torno das formas circulares ou espirais, conduzia o olho observador através de suas vazantes curvas coloridas. Tal procedimento se acentuou nas paisagens marítimas. Outra de suas características, intimamente ligada a esta, é seu ponto de fuga, em geral localizado no sol ou em algum foco de luz, como uma lanterna. Aqui, é também importante notar o uso que fez da perspectiva, subordinando-a aos maiores ou menores graus de luminosidade: indicava a distância entre os objetos pelo grau de concentração da luz, quebrando linhas e tornando difusos objetos sólidos, a ponto de absorvê-los nas profundezas infinitas da atmosfera.
A IMAGINAÇÃO LIBERTA
Qualquer que fosse o motivo, o interesse primordial de Turner residiu sempre na paisagem representada, em geral, a partir de um ponto de vista segundo o qual a natureza assume importância extrema, confrontando sua grandiosidade e força com a fragilidade do ser humano.
Depois de conhecer a Itália, suas paisagens passaram a nadar num mar de luz. Essas viagens acentuaram o elemento anticlássico de sua obra. Ele já deixara de imitar os grandes mestres e desistiu de suas pretensões de alcançar uma construção clássica. Veneza foi o ponto máximo dessa mudança: ele ali encontrou uma arquitetura mais próxima de sua sensibilidade e podia pintar sem recorrer à idealização; diante de Veneza, sua imaginação se libertou de forma completa e absoluta.
Criando um espaço que não era real nem ilusório, Turner deu, enfim, uma dimensão dramática e sentimental à pintura de paisagem. Nunca, porém, deixou de ser fiel à realidade. E aqui é interessante notar que, consultados a respeito das tempestades de Turner, meteorologistas europeus confirmaram que elas correspondem fielmente à verdade dos fatos.
Mas é na fase final, que abrange praticamente os últimos vinte anos de sua vida, que ele se torna um artista singular. Sua pintura já não se apega mais às formas verdadeiras dos barcos, pontes ou castelos, porque é a luz que constitui, então, o centro de sua arte. Uma luz grandiosa, retórica, repleta de efeitos dramáticos; profundamente romântica e permeada, por vezes, de um lirismo que se revela não apenas na escolha temática, mas também no estilo e na técnica: a cor vai sendo sensibilizada até a sublimação total, transformando a matéria inerte em incorpóreo e inefável veículo.de sensações. Seu colorido se faz, então, por meio de uma progressiva purificação dos vários graus da luminosidade, chegando, finalmente, a uma luz que tudo absorve.
Essa luz que tanto o atraía acabou por consumir as referências objetivas de sua paleta, transformando seus quadros em manchas coloridas e fulgurantes, que marcaram uma orientação inédita na pintura. Formas e cores fundidas numa síntese luminosa e já quase abstrata, que seus contemporâneos não compreenderam e rejeitaram. Logo, porém, os impressionistas retomariam esse facho aceso por ele.