Albrecht Dürer foi o maior artista alemão da Renascença. Experimentou diversos meios de expressão e ficou conhecido por suas delicadas aquarelas da vida animal e vegetal, assim como por suas dramáticas xilogravuras e pelas elaboradas gravuras em metal de temas religiosos, que lhe deram fama internacional ainda em vida. Sua arte é uma mistura de tradições nórdicas e meridionais, profundamente influenciada pela pintura veneziana. Dürer era um homem independente, orgulhoso de sua aparência física e de seu talento. Inteligente e culto, relacionava-se com humanistas e eruditos e, entre seus clientes, incluía-se o Imperador Maximiliano I. Também profundamente religioso, em seus últimos anos deixou-se cada vez mais persuadir pela Reforma luterana.
Humanista e Religioso
Culto e inquieto, ainda que profundamente religioso, Dürer deu uma dimensão universal à sua arte e trouxe o Renascimento para o interior das rígidas e tradicionais fronteiras alemãs.
Albrecht Dürer era um homem religioso, inclinado ao misticismo. Mas tinha também uma curiosidade quase insaciável a respeito de tudo que se percebesse por meio dos sentidos. Possuía, ainda, um extraordinário poder de observar e pesquisar. Assim, aliando seu espírito inquieto, sempre em busca do novo, ao talento do artista, Albrecht Dürer deu uma dimensão universal às suas criações, trazendo o Renascimento para o interior das rígidas e tradicionais fronteiras alemãs.
Nasceu em 21 de maio de 1471, em Nuremberg, filho de um ourives que emigrara da Hungria. Sua mãe, Barbara Holper, era filha do mestre de seu pai. O casal teve dezoito filhos — e Albrecht foi o terceiro. Quando criança, freqüentou a escola latina local e ali conheceu Willibald Pirckheimer, jovem da nobreza, que mais tarde se tornaria um respeitado estudioso humanista. Ficaram amigos e manteriam correspondência por toda a vida. Depois de deixar a escola, Dürer estudou, como era costume, o ofício de ourives, na oficina paterna. Já demonstrava sinais de seu extraordinário talento artístico. Nas memórias que escreveu pouco antes de sua morte, comenta: “Meu pai sentia uma especial satisfação comigo, pois via que era ávido de saber como fazer as coisas e, assim, ensinou-me o ofício de ourives, mas, ainda que eu pudesse realizar aquele trabalho com tanto capricho quanto se espera, minha alma era mais da pintura. Expus toda a questão a meu pai que longe se sentir feliz, lamentou o tempo perdido; mesmo assim, cedeu’’.
Nessa época, os ourives pertenciam à classe dos artesãos (onde se incluíam também pintores) e por seus estúdios passavam pessoas cultas e de alto nível de vida — compondo, portanto, um ambiente estimulante para quem tivesse inclinação artística. Esse era, justamenre o caso de Albrecht. Só que, aos 15 anos, ele começava a trabalhar como aprendiz no estúdio de Michael Wolgemut, um pintor de prestígio em Nuremberg. Em 1490, depois de quatro anos ali, Dürer partiu para o tradicional “ano de bacharel” alemão, um período de viagens por muitas cidades, quando então o jovem desfrutava a vida antes de se estabelecer e de assumir responsabilidades familiares. Dürer viajou pelo que era, na época, o Sacro Império Romano, e desse tempo de tantas viagens há poucas notícias e se conhecem poucas obras. Entre elas há, porém, uma tela: Auto-Retrato com Flor de Rícino, de 1493. A flor, símbolo da fecundidade conjugal, tem sido interpretada como alusão ao noivado com Agnes Frey. Dürer retornou a Nuremberg para se casar, na primavera de 1494. Alguns meses após o casamento, partiria só, para sua primeira viagem à Itália.
EM BUSCA DO DEVIDO RESPEITO
Certamente sua curiosidade o levava ao encontro das novidades acerca do que faziam os novos mestres italianos da pintura e do desenho. Os artistas alemães, disse ele, eram “inconsistentes como uma árvore selvagem intata”, já os italianos haviam “redescoberto há duzentos anos a arte venerada por gregos e romanos”.
Era difícil o transporte nas viagens de longa distância, e a jornada pelos Alpes em lombo de cavalo oferecia tanto perigo quanto beleza. Dürer deixou registrada sua impressão do panorama alpino numa série brilhante de aquarelas. Em Pádua visitou Pirckheimer é, por seu intermédio, entrou em contato com a obra dos humanistas italianos, cuja curiosidade científica e independência de pensamento muito o impressionaram. Mas o ponto culminante de sua viagem foi Veneza. Com sua insaciável sede de conhecimento e com a perseverança que também sempre o caracterizou, Dürer dedicou-se a aprender tudo o que os mestres contemporâneos pudessem lhe ensinar. Estudou a ciência da perspectiva e o retrato do modelo nu; copiou os trabalhos de Mantegna e de outros gravadores; e discutiu a respeito das diversas teorias da arte em meio ao círculo de pintores venezianos.
De volta para casa em 1495, levava em sua bagagem os rudimentos do Renascimento italiano e a ambição de transplantá-los para sua própria terra. Ganhava a vida com xilogravuras e gravuras em metal, que sua esposa e sua mãe vendiam nos mercados públicos e nas feiras, e que corriam toda a Europa nas mãos dos mercadores.
Uma época tumultuada essa, e as inquietações místico-religiosas que envolviam a Europa do norte nos estertores da Idade Média foram invocadas com incomparável talento na gravura O Apocalipse de São João (1498), a primeira obra-prima de Dürer. Ainda que impressa na gráfica de seu padrinho, Anton Koberger, em Nuremberg, Dürer insistiu para que seu nome figurasse como editor. Isso fazia parte da campanha que sempre manteve para elevar o status do artista do norte europeu e também para assegurar o reconhecimento de sua arte. Dois anos mais tarde, pintou novo Auto-Retrato, encarando de modo direto o observador, em pose deliberadamente reminiscente de Cristo. Uma pose solene, que o exibe orgulhoso e consciente de sua distinção artística. Retratou-se como era visto.
Nos anos seguintes, Dürer continuou a assimilar as lições de sua temporada italiana, produzindo uma notável variedade de trabalhos. Algumas encomendas de pinturas chegavam de burgueses e de aristocratas, incluindo o poderoso Eleitor da Saxônia, Frederico o Sábio. Mas foram suas xilogravuras e, cada vez mais, suas gravuras em metal, que lhe deram fama e lhe permitiram alcançar a independência que sempre ansiara tão obstinadamente.
No final do verão de 1505, Dürer voltava à Itália com o encargo de pintar um retábulo para a associação dos comerciantes alemães, em Veneza — onde se estabeleceu por mais de um ano.
Suas gravuras eram então muito conhecidas na Itália, respeitadas por artistas e por figuras eminentes, como o doge e o patriarca de Veneza que o visitavam em seu estúdio. Ele estava decidido a mostrar aos venezianos que não era apenas um desenhista talentoso mas também um mestre da pintura e da cor, como o enigmático Giorgione, cujas imagens sombrias causavam grande admiração na época. Apesar disso, sua maior inclinação era a obra de GioVanni Bellini, grande mestre da geração anterior. Quando Bellini, aos 80 anos, o visitava e elogiava seu trabalho, Dürer, então com 35 anos, vivia momentos de realização.
Ele desfrutava a vida veneziana, a companhia de outros artistas, a comida, o vinho e a beleza da cidade. Apreciava, acima de tudo, o respeito dispensado pelos italianos a seus artistas, em franco contraste com a sovinice dos burgueses alemães. “Como sentirei falta do sol”, escreveu, lamentando seu regresso. “Aqui sou um cavalheiro; em meu país, um parasita”.
Estranhamente, porém, quando lhe foram oferecidos 200 ducados para que permanecesse em Veneza por mais um ano, recusou. E, em janeiro de 1507, chegava de volta a seu país. A situação em Nuremberg não mudara: continuavam poucas as oportunidades dos grandes encargos públicos — exatamente as bases em que os italianos erigiram a própria reputação. Assim, Dürer foi pouco a pouco abandonando a pintura para se concentrar mais em seu trabalho como gravador. Sua popularidade aumentou e, em 1509, ele pôde finalmente adquirir a casa em que vivia.
De 1512 a 1520, Dürer trabalhou quase exclusivamente para o Imperador Maximiliano I, tornando-se uma espécie de decorador oficial: além de ilustrar manuscritos e livros, desenhava brasões e estandartes, projetava cortejos e colaborou na criação do Arco do Triunfo, uma composição imensa, em forma de arco e constituída por centenas de xilogravuras. Em 1513, foi feito cidadão honorário do Grande Conselho de Nuremberg, honra sem precedentes para um artista do norte alpino; e, em 1515, o imperador lhe concedeu uma anuidade de 100 florins pelo resto de sua existência.
UM HOMEM DE SABEDORIA E FÉ
A despeito de todo o sucesso, nem tudo foi fácil para Dürer. Sua renda era relativamente elevada, mas logo suas despesas se equipararam a ela: gastava e emprestava dinheiro livremente, enchendo sua casa com objetos estranhos e preciosos, de todo o tipo. Em 1514, a morte de sua mãe o deixou abalado, mergulhando-o numa crise artística e espiritual, que se refletiu na gravura Melancolia I. Estava ainda obcecado pelo vulto das conquistas italianas e, em parte, pelos ideais de beleza e harmonia que sempre pareciam lhe escapar.
Em 1517, Martinho Lutero fez seu primeiro grande ataque à corrupção na Igreja, dando início à insurreição que culminaria na Reforma. Dürer lia avidamente os escritos de Lutero, que lhe chegavam às mãos por intermédio de reformadores como Filipe Melanchthon, um humanista erudito que, como o próprio Dürer, procurava transpor a distância entre o novo aprendizado da Itália e a nova fé da Alemanha. Os ensinamentos de Lutero parecem ter trazido certo alívio ao turbilhão interior de Dürer. Em 1520 ele iria escrever: “Se me acontecer, com a ajuda de Deus, de encontrar o dr. Martinho Lutero, gostaria de retratá-lo cuidadosamente, gravando-o em cobre, para que permaneça a lembrança desse homem cristão, que me auxiliou a livrar-me de grande angústia”.Com a morte do Imperador Maximiliano I, em 1519, o Conselho de Nuremberg suspendeu sua pensão vitalícia, levando-o a empreender uma longa viagem aos Países Baixos a fim de se encontrar com o novo imperador e lhe pedir a renovação de sua anuidade. Dürer deixou Nuremberg em 1520, acompanhado pela esposa e por uma criada. Levava consigo gravuras em metal e xilogravuras e com elas pagou as despesas ao longo da viagem. Manteve um diário detalhado, no qual registrou todas as despesas e tudo o que viu e ouviu, assim como um caderno de esboços. Na verdade, essa viagem foi do mais absoluto triunfo: em toda parte era recebido por homens ricos e poderosos, festejado pelos artistas como o maior artista alemão de seu tempo — ele concretizava, assim, o velho sonho de elevar o status público do artista.
Ao longo da viagem, Dürer também procurou conhecer as obras de arte notáveis e os artistas importantes de cada cidade. Fez uma penosa incursão à Zelândia, no norte agreste do país, em busca de uma baleia — como soubera — encalhada ali. Mas, ao chegar, a criatura já retornara ao mar. Da Zelândia restou-lhe apenas uma espécie de febre que o debilitaria pelo resto da vida. Em Aix-la-Chapelle, assistiu à coroação do novo imperador, Carlos V, e teve sua anuidade confirmada. Dürer ainda pintou diversos retratos e vendeu muitas gravuras, mas era tal sua paixão por coleções — incluindo objetos como cascos de tartaruga, papagaios, corais, conchas e marfins — que fez da viagem, em seu todo, um prejuízo financeiro.
Estava em Antuérpia quando chegaram notícias da prisão de Lutero. Ele e a mulher voltaram o mais rápido possível para Nuremberg e, ao chegarem, em agosto de 1521, encontraram sua cidade mergulhada em tumultos. Amigos e alunos de Dürer haviam sido banidos sob acusação de idéias heréticas; na zona rural crescia o descontentamento que, mais tarde, explodiría na Guerra Camponesa de 1525. Dürer, embora cauteloso, não disfarçava sua simpatia pelos novos movimentos. Aliando tal sentimento às próprias preocupações religiosas, preparou sua última grande pintura, o retábulo Os Quatro Apóstolos. Aqui, seu profundo sentimento religioso está em perfeita harmonia com seu amor pela arte e, mais que isso, nessa obra culminante, sua arte tomou o aspecto de um manifesto, traduzindo seu engajamento na Reforma Luterana. Doou a obra ao Conselho de Nuremberg, em 1526, inscrevendo nela esta advertência contra os falsos profetas: “Todos os governantes temporais destes tempos perigosos deveríam ficar atentos para que não venham a seguir o descaminho humano ao invés da palavra de Deus. Porque Deus nada irá acrescentar ou suprimir de sua palavra”.
Nos últimos anos de vida, Dürer concentrou esforços em seus escritos: publicou trabalhos sobre proporção e perspectiva, além de compor a crônica de sua família e as próprias memórias.
Também deu início, mas não viveu o bastante para concluir, a uma obra contendo recomendações aos jovens artistas. Morreu em 6 de abril de 1528, aos 57 anos, em Nuremberg. Não deixou discípulos, mas o legado de sua obra ajudou a arte alemã a florescer, primeiro no Renascimento, depois no Romantismo. Entre os artistas de seu tempo foi, sem dúvida, o mais universal. E para muitos, como Melanchthon, ele foi “um sábio, cujos talentos artísticos, eminentes como eram, ainda assim consistiam na menor de suas virtudes”.