bosch 6928b1450 - 1516

Ao longo de séculos, a obra de Bosch tem suscitado as mais diversas interpretações. Ainda em seu tempo, foi vista como altamente religiosa e exemplar; pouco depois de sua morte, começava a ser rejeitada como absurda, indecorosa ou mesmo herética. Oscilando entre tais extremos, a discussão estendeu-se até o início do nosso século, quando os surrealistas aclamaram Bosch como "um freudiano antes de Freud". Os historiadores de arte e os críticos especializados protestaram, afirmando que Bosch é um pintor essencialmente moralista, com propósitos muito bem definidos. Prevalecendo esta posição, os debates sobre a natureza da arte de Bosch parecem ter-se acalmado, mas as conjeturas sobre sua biografia, quase desconhecida, prosseguem, não raro dando margem a extravagantes especulações.

Religião e Arte Acima de Tudo

Toda a vida de Bosch girou em torno de dois eixos fundamentais:

a religião, que cultivou fervorosamente, e a arte, que transformou em instrumento de sua pregação cristã e moralizante.

Jheronimus (ou Jeroen) Anthonissen van Aken — conhecido e admirado em todo o mundo como Hieronymus Bosch — nasceu por volta de 1450 na província holandesa do Brabante Setentrional, muito provavelmente na pequena cidade de 's-Hertogenbosch, da qual é quase certo que derivou seu sobrenome artístico.

Acredita-se que a familia era originária de Aachen, na Alemanha, conforme sugere o sobrenome, e estabelecera-se na Holanda ainda no início do século XV. Anthonius van Aken, o pai de Bosch, era pintor, assim como o avô, Jan, dois ou quatro tios, o irmão Gopssen — que herdou a oficina patérna — e uma irmã (Heberta ou Katherine).

UMA VIDA TRANQUILA

Pouco se sabe sobre a vida de Bosch, mas parece que teve uma infância tranqüila e confortável, numa casa abastada, onde religião e arte eram assuntos de fundamental importância. A partir de 1462, passou a residir num casarão da Grote Market, a praça mais importante de 'sHertogenbosch, onde estava instalada a feira de tecidos, principal riqueza da cidade.

Os Van Aken mantinham estreitas relações com a Catedral de São João, edifício gótico que constituía um dos maiores orgulhos da população local. Anthonius recebeu encomendas para decorar peças de mobiliário e colorir estátuas, e é possível que Jan tenha pintado um afresco sobre a Crucifixão, datado de 1444.

Entre as escassas informações sobre a biografia de Bosch, nenhuma fornece indicações a respeito de seu aprendizado. Alguns estudiosos aventam a hipótese — não comprovada — de que tenha estudado em algum centro próximo, como Utrecht, onde teria entrado em contato com as iluminuras que influenciaram sua obra em determinado período. E mais provável, no entanto, que tenha se iniciado na arte sob a orientação do pai ou de um dos tios (o avô havia morrido na época de seu nascimento).

Por volta de 1480 ou 1481, Bosch possivelmente recebeu o grau de mestre na corporação dos pintores de 's-Hertogenbosch. Na mesma época, é citado pela primeira vez como marido de Aleyt Goyaerts van den Meervenne, com quem se casara em cerca de 1478. Alguns anos mais velha e proveniente de uma rica familia local, Aleyt sem dúvida favoreceu-o com polpudo dote e ajudou-o a estabelecer importantes contatos sociais. Através do casamento, Bosch tornou-se proprietário de terrenos na vila vizinha de Oorschot e vários outros imóveis, que lhe permitiram viver confortavelmente até seus últimos dias — embora também lhe causassem trabalho e preocupação. Sabe-se que por várias vezes precisou cuidar de questões referentes a esses bens e parece que em 1481 envolveu-se num processo legal com o cunhado. Tais problemas, contudo, não devem ter afetado sua vida conjugal, que, acredita-se, transcorreu feliz, num lar tranqüilo e sem filhos.

LIVRE ESPÍRITO E VIDA COMUM

A bizarra e fantástica natureza da arte de Bosch levou a algumas especulações extravagantes sobre sua vida. Uma das teses mais conhecidas, proposta por Wilhelm Frãnger, sugere que o pintor pertencia ao grupo Homines Intelligentiae, organização satélite da seita dos Irmãos e Irmãs do Livre Espírito, também conhecidos como adamitas. Esta seita herética surgira no século XIII e, durante o século XV, difundira-se pela Alemanha, Holanda e Bélgica. Para seus adeptos, toda a humanidade seria salva desde que recuperasse a inocência de Adão e Eva no Paraíso perdido, e o meio mais eficaz de atingir tal objetivo seria a prática do ato sexual em promiscuidade ritualística. De acordo com essa tese, o célebre tríptico O Jardim das Delícias focalizaria a orgia ritual de alguns adamitas de s-Hertogenbosch. Não há, contudo, prova alguma de que Bosch — ou qualquer outra pessoa da cidade — pertencesse à seita do Livre Espírito, nem que esta tenha sobrevivido até a época da elaboração do tríptico.

bosch orelhas enormes resize 2cacdOrelhas enormes

Muito mais viável é a hipótese de que Bosch tenha participado da Irmandade da Vida Comum, uma das muitas confrarias religiosas que proliferavam em 's-Hertogenbosch.

Criada no século XIV por Gerhard Grote, discípulo do grande místico e eremita flamengo Jan van Ruysbroeck, e levada para a cidade de Bosch na primeira metade do século XV, a Irmandade pregava um novo espírito de vida religiosa, combatendo ao mesmo tempo as seitas heréticas e a corrupção do clero. A firme devoção de seus adeptos levava-os a renunciar aos apelos do mundo e a partilhar tudo que possuíam. As idéias da Vida Comum devem ter exercido forte influência sobre a religiosidade e a arte de Bosch, que as teria apreendido tanto nas reuniões a que provavelmente comparecia como nas obras de místicos flamengos contemporâneos que também as adotavam.

A IRMANDADE DE NOSSA SENHORA

Foram possivelmente as mesmas idéias que ocasionaram profunda mudança na orientação da Irmandade de Nossa Senhora. Fundada em 1318, a Irmandade durante quase um século dedicou-se basicamente a tarefas ligadas ao culto, sobretudo ao culto mariano; seus membros, homens e mulheres, leigos e religiosos, tratavam, entre outros encargos, de providenciar novas composições musicais para suas missas diárias e encomendar obras de arte para adornar sua própria capela na Catedral de São João, onde mantinham uma imagem da Virgem tida como miraculosa. Talvez sob influência da Vida Comum, a partir do século XV a Irmandade passou a dedicar-se também a obras de caridade, ampliando ainda mais sua importância na vida da cidade.

Sabe-se que a mulher de Bosch era membro da Irmandade de Nossa Senhora, na qual o pintor ingressou em 1486 ou 1487. Seu nome, porém, começou a constar dos registros da confraria alguns anos antes. Estes informam, por exemplo, que em 1480/81 Bosch comprou da Irmandade dois retábulos que seu pai deixara inacabados; não há maiores explicações a respeito, mas é possível que tivesse adquirido as obras com a intenção de concluí-las. Mais tarde, entre 1488 e 1492, Bosch pintou as portas de um retábulo de madeira sobre Nossa Senhora, cujo painel central fora esculpido em 1476/77 por Adriaen van Wesel, de Utrecht. Em 1493/94, foi encarregado de elaborar o projeto de um vitral para a nova capela da Irmandade. Entre 1499 e 1503, os registros silenciam a seu respeito, supondo-se que, nesse período, Bosch tenha viajado para a Itália.

EXÉQUIAS PELO INSIGNE PINTOR

No início do século XVI, Bosch era já um artista conhecido dentro e fora de seu país. Em 1504, recebeu sua mais importante encomenda documentada. Filipe o Belo, Duque de Borgonha, encarregou-o de pintar um grande retábulo sobre o Juízo Final, que nunca foi encontrado. Alguns acreditam que haja um fragmento dessa obra em Munique e que o tríptico com o mesmo título conservado em Viena constitua uma versão menor do retábulo.

Em seus últimos anos, Bosch trabalhou assiduamente para a Irmandade de Nossa Senhora, para a qual, entre outras obras, projetou um crucifixo em 1511/12 e um candelabro em 1512/13. É tudo que se sabe sobre ele nesse período. A notícia seguinte informa que no dia 9 de agosto de 1516 foram celebradas na capela da Irmandade solenes exéquias pelo "defunto irmão Jheronimus van Aken, aliás Bosch, insigne pintor".

Fascinantes Lições de Moral

Dono de poderosa imaginação e austero código ético, Bosch criou

um universo fantástico, povoado de seres estranhos que a cada

gesto denunciam as falhas do homem e convidam-no a regenerar-se.

Fascinante e perturbadora, intrinsecamente original, a obra de Bosch desenvolveu-se fora de seu tempo, muito mais ligada ao espírito religioso da Idade Média que às idéias humanistas do Renascimento. Na verdade, Bosch mantém-se à margem tanto das inovações como das convenções de seus contemporâneos. Enquanto muitos destes abordavam temas bíblicos tradicionais, ele procurava enriquecer sua extraordinária inspiração nas mais diversas fontes — gravuras, esculturas, iluminuras, textos religiosos, provérbios populares, elementos de magia, alquimia, astrologia — para criar uma obra essencialmente moralista. Em seus painéis, sobretudo na fase da maturidade, explora, com requinte de detalhes, as regiões mais sombrias da psique humana e visualiza os tormentos que aguardam o pecador no outro mundo. No verdadeiro catálogo de loucuras contido em sua obra, fornece uma sátira negra da condição humana em toda a sua fragilidade moral.

Mas não era apenas a temática que isolava Bosch dos artistas de seu tempo: em termos de estilo, ele também se manteve à margem. Enquanto a maioria de seus colegas seguiam a tradição dos Van Eyck e de Van der Weyden, usando uma técnica lenta e meticulosa para criar formas tão realistas quanto possível, Bosch trabalhava depressa — com freqüência não fazia retoques — para obter efeitos oníricos.

Por vezes realizava esboços e desenhos a tinta, com pena e pincel, revelando-se desenhista exímio. Muitos desses trabalhos constituem estudos de mendigos, aleijados e monstros, e não totalizam mais que trinta folhas de papel.

Em geral, porém, Bosch fazia os esboços "diretamente sobre o painel de madeira, cobrindo-os a seguir com uma camada transparente de tinta cor de carne", informa o pintor e historiador de arte flamengo Karel van Mander. Olhando-se com atenção, muitas vezes é possível perceber sob as cores os traços negros do desenho preparatório, que também contribuem para criar o efeito final.

OS QUATRO PERÍODOS

É uma tarefa difícil traçar o desenvolvimento do estilo de Bosch. Nenhuma de suas pinturas é datada, e há poucas provas documentais que permitam estabelecer sua cronologia. Não obstante, alguns estudiosos procuraram delimitar períodos em sua evolução artística.

Para o historiador de arte espanhol Fernando Marías, existem quatro períodos. O primeiro mostra afinidades com painéis holandeses do final do século XIV e começo do século XV, bem como com antigas xilogravuras e gravuras em metal holandesas e alemãs. Interiores arquitetônicos, tão usados pelos Van Eyck e outros mestres, estão presentes nessas primeiras obras e apenas nelas —, mas não têm a perfeição das perspectivas de ponto de fuga único a que os flamengos haviam chegado empiricamente.

Suas cenas bíblicas lembram iluminuras holandesas da primeira metade do século XV, tanto nos horizontes altos — que ocorrem também em obras posteriores — como nos elementos da vida cotidiana que se incorporam.

Embora algumas obras desse período pareçam pouco mais que cenas de gênero, possuem um simbolismo que as distingue claramente das pinturas convencionais. Em A Extração da Pedra da Loucura, por exemplo, o livro que a freira equilibra na cabeça representaria a falsa doutrina; o punhal que atravessa a bolsa do paciente indica que o charlatão não lhe extrai apenas a "pedra da loucura" mas também o dinheiro. Temas como esse, da credulidade explorada pela esperteza, desenvolvidos com maestria em obras maduras, já estão presentes na primeira fase. A técnica, no entanto, é precária, com pincelada limitada, figuras achatadas e rígidas, composição esquemática.

bosch pedra da loucura resize 322cdA Extração da Pedra da Loucura

O segundo período situa-se aproximadamente entre 1480 e 1485 e constitui uma fase de transição. As figuras ainda são duras, mas já apresentam algum movimento, sobretudo nas dobras das vestes. A composição continua algo esquemática, porém a técnica mostra-se um pouco mais aprimorada. A grande novidade deste período está na ampliação da temática, apontando para os grandes painéis que estavam por vir e revelando uma capacidade cada vez maior de causar impacto. "O desenho torna-se cada vez mais fluido e expressivo", explica Fernando Marias, "porém ao mesmo tempo há lembranças de sua feitura juvenil, vacilante e audaz, sobretudo na paisagem ."

bosch jardim das delicias resize f41dbO Jardim das Delícias

O terceiro período, situado mais ou menos entre 1485 e 1505, inclui as obras da maturidade, entre as quais seus trípticos mais famosos: O Carro de Feno, O Jardim das Delicias e As Tentações de Santo Antão. Sua pintura agora é alia prima, imediata, e cheia de expressividade e ousadia. O tema central, informa Fernando Marías, "fracciona-se numa infinidade de subtemas alusivos em que as representações e símbolos se entrecruzam de maneira inextricável; cada figura tem um significado que a forma tende a sublinhar; em cada imagem, expressão alusiva de um símbolo, encontra-se, semi-oculto, um conceito". Os detalhes multiplicam-se, carregados de significado. A composição torna-se mais e mais audaciosa, organizando-se por meio de planos que se justapõem, de baixo para cima, num verdadeiro desafio para o observador.

bosch carro de feno resize 3f086O Carro de Feno


No quarto e último período, de 1505 até sua morte, a inquietação espiritual e artística parece acalmar-se. A paleta clareia, e as figuras muitas vezes crescem a ponto de converter-se em elementos únicos de atenção. Algumas chegam a ser majestosas e quase calmas; outras continuam disformes e horrendas, mostrando no aspecto repulsivo a maldade que as corrói por dentro. (Um padre espanhol do século XVII afirmou que a unicidade de Bosch estava no fato de pintar o homem como ele é por dentro, enquanto outros o pintavam como é por fora).

bosch tentacao santo antao resize e1ee2As Tentações de Santo Antão

A FORÇA DA FIGURA

Exceto nessas últimas obras e em várias do primeiro período, as figuras humanas parecem-se bastante entre si: esguias e quase transparentes, pequenas com relação às dimensões do painel, têm pouco "peso" e em nenhum momento Bosch parece interessado em fazê-las transmitir uma sensação de realidade corporal. No entanto, essas figuras diminutas e pálidas realizam ações vigorosas, adotando poses teatralmente exageradas. O rosto, em geral visto de perfil, apresenta expressão intensa e, quase sempre, feições grotescas. Bosch foi um mestre do grotesco e com freqüência usou a caricatura para mostrar o lado mais feio do homem.

Muitas de suas figuras são monstros e, para criá-los, Bosch complementou a própria imaginação com uma série de fontes, como, possivelmente, as esculturas e as gárgulas da Catedral de São João. Na galeria de seus monstros, há vários seres híbridos, misturas de animal e homem, que à primeira vista parecem puramente fantásticos; uma análise mais atenta revela, porém, que Bosch pintou cada uma das partes "naturais" observando acuradamente os modelos oferecidos e acrescentou as variações que a inspiração lhe ditava.

O extraordinário universo habitado por essas figuras levou os surrealistas a rotularem Bosch como "um freudiano antes de Freud" . Sua arte estaria, portanto, muito próxima do próprio princípio surrealista — expressar imagens de sonho por meio de livre associação de idéias —, que, por seu turno, se baseia em teorias de Freud. Na verdade, porém, a pintura de Bosch tem um significado muito definido — embora raramente claro — e está longe de constituir expressões do inconsciente.

GRUPOS TEMATICOS

Quanto ao tema, o historiador Fernando Marías distribui as obras de Bosch em quatro grandes grupos: a vida de Jesus, as cenas de santos, as visões apocalípticas e as alegorias de caráter moral. O primeiro grupo apresenta pouca variedade temática, girando principalmente em torno dos episódios da Paixão, nos quais o martírio de Cristo é apresentado como um processo que a maldade humana não deixa ter fim.

As cenas de santos propõem exemplos de ascetismo e devoção. procurando incitar o observador a renunciar aos prazeres mundanos para obter a salvação. As visões apocalípticas concentram-se em cenas do Juízo Final, mostrando o homem entre o Paraíso e o Inferno. Em seu Jardim do Éden habitam já seres malignos, indicando o pecado original e o destino pecador da humanidade. As alegorias freqüentemente se revestem de aparência profana ou até escabrosa, mas transmitem lições morais, por vezes inspiradas em provérbios populares ou narrativas de caráter didático, e sempre concebidas para mostrar ao homem suas falhas e seus pecados e convidá-lo a regenerar-se.

LIVROS DE GRANDE PRUDENCIA

A arte de Bosch é uma expressão do catolicismo fervoroso, como atesta sua popularidade no mais católico dos ambientes: a Espanha do século XVI. Filipe II, soberano austero e profundamente religioso, tinha em alta conta a obra de Bosch, da qual possuía vários exemplos.

No entanto, a maneira como esse mestre do fantástico propunha seus ensinamentos levou alguns críticos a considerarem-no pornográfico ou mesmo herético. Ainda no século XVI, o espanhol frei José de Sigüenza sentiu-se na obrigação de defendê-lo, afirmando em sua História da Ordem de São Jerônimo (1599): "Quero mostrar agora que suas pinturas não são disparates mas sim uns livros de grande prudência (...) uma sátira dos pecados dos homens" .