De origem humilde, confeiteiro e depois assistente de um pintor decorativo, Claude Gellée de Lorraine transformou-se num dos mais seletos paisagistas de seu tempo. Passou praticamente toda a vida em Roma, conhecido como Claude Lorrain, e trabalhando para os mais nobres clientes. Estudou à exaustão os efeitos da luz e a atmosfera dos campos vizinhos de Roma, e suas representações da luz resultaram em imagens espetaculares. Lorrain deu um sentido de seriedade moral à pintura de paisagens. A partir de intensa contemplação da natureza, destilou uma visão arcadiana ideal, que elevou seu estilo à grandiosidade da pintura histórica contemporânea. Suas paisagens imaginárias foram inspiração para outros pintores paisagistas da Europa, ao longo das gerações seguintes. Lorrain morreu em sua cidade adotiva, aos 82 anos.
Na Vida, Sobretudo a Arte
Uma vida longa, inteiramente dedicada à arte, aliada ao talento, fez de Claude Lorrain um dos maiores e mais profícuos pintores de seu tempo, influenciando gerações de artistas europeus.
Claude Lorrain nasceu Claude Gellée, em Chamagne, no ducado francês de Lorraine, em 1600. O nome Lorrain era empregado, em francês, para indicar seu lugar de origem. Sua existência não foi marcada por nenhum acontecimento de maior destaque, transcorrendo voltada sobretudo para a arte.
Orfão muito jovem, tudo indica que tenha iniciado sua vida de trabalhador como confeiteiro e, certamente, foi com muito esforço que, ainda adolescente, viajou para a Itália. Em 1613 estava em Roma, trabalhando como criado de Agostino Tassi. Logo seria também seu aprendiz, adotando o estilo de pintura desenvolvido por Agostino. Adotaria também os temas de seu mestre e patrão: Tassi era um prolífero pintor de marinhas e paisagens, cujos quadros sofreram profunda influência de paisagistas nórdicos em atividade em Roma, como Paul Bril. Claude Lorrain teria auxiliado Tassi em trabalhos de decoração na villa Lante, em Bagnaia, para o Cardeal Montalto. Ainda nesse período inicial de sua vida, passou dois anos em Nápoles, trabalhando com o artista paisagístico flamengo Gottfried Wals; e esteve durante um ano em Lorraine (1625/26), como assistente de Deruet, trabalhando nos afrescos decorativos da igreja carmelita de Nancy.
Exceto por esses trabalhos, suas obras iniciais ficaram perdidas no anonimato da escola de Agostino Tassi.
Ao contrário de outros artistas, como Deruet, que depois de uma temporada de estudos na Itália voltavam para a terra natal, Claude Lorrain estabeleceu-se em Roma pelo resto de sua vida.
Sabe-se ainda, de seus primeiros tempos, que executou afrescos decorativos no Palazzo Crescenzi. Depois dessa fase inicial, porém, Claude Lorrain iria dedicar sua carreira aos quadros de cavalete. Em meados da década de 1630 já se firmara como o principal pintor paisagista de Roma, trabalhando para clientes romanos e visitantes de toda a Europa católica.
Ele viveu praticamente toda sua vida numa casa ao pé da colina encimada pela Igreja da Santissima Trinità dei Monti. Nunca se casou, mas durante vinte anos morou com uma "garzone" chamada Desiderii e, até morrer, com a filha de ambos, Agnese, que nascera em 1653. Em 1660, dois sobrinhos de Claude Lorrain foram também viver com ele. Parece que gostava de trabalhar só, pois empregou apenas um assistente no período mais intenso de sua carreira e nunca dispôs de uma equipe de ajudantes, hábito comum entre os artistas bem-sucedidos da época.
Quase nada se sabe sobre sua personalidade, exceto que não era, ao contrário de seu amigo Nicolas Poussin, um artista erudito, mas um espírito contemplativo dotado de uma qualidade rara: a compreensão intuitiva de seus temas, aos quais adequava perfeitamente a paisagem.
A NATUREZA MAJESTOSA E ATEMPORAL
Um bom indício da reputação de Claude Lorrain foi a importante encomenda que recebeu do Rei Felipe IV, da Espanha, em 1635: nessa época o rei concluía os trabalhos de construção de seu palácio Buen Retiro, em Madri, e encomendou grandes telas paisagísticas a uma série de jovens nórdicos de Roma. Claude Lorrain contribuiu com pelo menos sete quadros de grandes dimensões. Todos com tema religioso, em moda na época. A grande escala das obras encorajou um estilo grandioso, arrojado e monumental, enquanto seus trabalhos iniciais haviam sido pequenos e detalhados.
Ele só deixava Roma para breves incursões ao campo, em busca de novas paisagens; seu biógrafo Sandrart relata as viagens que fizeram juntos por volta de 1630. Por vezes avançavam um pouco mais, até as montanhas, em busca de lugares mais pitorescos e selvagens, como Tivoli. Com seu famoso templo em ruínas, conhecido como Templo de Sibila, suas encostas acidentadas, cavernas e cascatas, Tivoli era um local popular entre os artistas desde o século XVI. Em suas pinturas dessa região, porém, Claude Lorrain optou por uma natureza mais serena e idealizada, descrevendo as vistas de Tivoli através da Campagna e abrangendo Roma e o mar.
Embora tenha preenchido seus cadernos de anotações com belos desenhos da natureza, seus quadros a óleo raramente retratam lugares reais: a intensa observação permanecia como a base de sua arte, mas Claude Lorrain preferia cada vez mais servir-se de sua imaginação para descrever a natureza num estado elevado ou idealizado. Suas paisagens da maturidade são grandiosas e serenas, um convite à contemplação de ume natureza, se não eterna, ao menos atemporal.
CLIENTES FAMOSOS
Claude Lorrain trabalhou sobretudo para os mais ilustres dignitários romanos — papas, cardeais e príncipes —, bem como para embaixadores e nobres estrangeiros. Seus dois principais clientes foram o rei da Espanha, Filipe IV, em 1635, e o Príncipe Colonna, depois de 1633.
A respeito de seus clientes, as informações são muitas, pois Claude Lorrain — após consolidar sua reputação — manteve um registro de suas obras em um elaborado caderno de esboços chamado Liber Veritatis, onde também anotava o nome dos compradores. O livro inicia com nomes desconhecidos, de moradores ou visitantes de Roma; mas, à medida que sua fama cresce, ali comparecem a nobreza e o clero privilegiado. No final de sua vida — mais precisamente nas duas últimas décadas — seus quadros eram menos numerosos e muito mais elaborados, destinando-se a uma clientela restrita e exclusiva. Desse período datam algumas telas cujos temas são raros, senão únicos na história da arte. Em geral eram os clientes os responsáveis pela escolha do tema, e alguns deles, como Camillo Massimi, o Príncipe Colonna, ou o Príncipe Gasparo Altieri, eram bastante cultos ou, então, dispunham de conselheiros eruditos. Para Altieri, Claude Lorrain pintou em 1675 a Paisagem com o Desembarque de Enéias em Pallanteum. Nesse tema incomum, retirado do épico Eneida, de Virgílio, o artista pintou os navios de Enéias portando o brasão da família Altieri; procurava, assim, associar a antiga e nobre família de seu cliente ao fundador mítico de Roma.
Os clientes de Claude Lorrain — e ele mesmo, provavelmente — parecem ter tido especial predileção pelos feitos heroicos de Enéias na fase final da carreira do pintor. Assim, em resposta a essa fonte literária, Claude Lorrain iria desenvolver na época um estilo épico ou heroico, em substituição à suavidade pastoral de suas paisagens.
Desde o início da década de 1660, preparou dez grandes telas para Lorenzo Onofrio Colonna, Duque de Paliano, Grande Guardião de Nápoles, que lhe encomendou temas incomuns como O Castelo Encantado, de 1664, e Ascânio Atirando no Veado de Silvia, em 1682, de estilo heroico ainda mais acentuado.
Foi uma longa vida de trabalho: esse quadro que seria o último, Claude Lorrain o pintou aos 82 anos, idade em que morreu. Foi sepultado na Igreja da Santissima Trinità dei Monti em Roma, sobre a colina em cujo sopé vivera.
Com os Olhos Voltados para o Céu
Baseando-se na observação da natureza, Lorrain criou paisagens imaginárias e idealizadas, cujos personagens vivem felizes sob a luz dourada que banha seu mundo perfeito.
Representante por excelência da paisagem clássica, a arte de Lorrain oferece uma concepção idealizada: com algumas exceções, seus quadros são sempre imaginários. Quase todas as suas telas foram executadas em pares, ilustrando o mesmo tema, nas mesmas proporções interiores, mas contrastam na composição pela atmosfera e pela hora. Na base desse contraste, a luz.
Lorrain foi um dos maiores e mais profícuos desenhistas de todos os tempos, e pode-se distinguir dois grupos principais entre seus desenhos: estudos segundo a natureza feitos in loco, numerosos em seus primeiros anos, e as composições executadas em estúdio, que caracterizam a evolução posterior do artista. Mas, quais quer que sejam eles, todos testemunham sua preocupação com a estrutura e seu efeito visual, constituindo obras acabadas. Os esboços rápidos são muito raros em Claude Lorrain.
As obras da primeira fase caracterizam-se, por sua vez, pelo emprego de motivos pitorescos, no estilo mais suave da paisagem pastoral ou de atmosfera grandiosa, como nos quadros de portos marítimos. Incluem caprichos arquitetônicos e geralmente se distribuem em linha diagonal para o centro da tela, criando um efeito de profundidade que se acentua pela luz solar. Os céus dessa primeira fase de Lorrain são grandiosos e impressionaram vivamente Wilson e Turner, exercendo neles grande influência.
Na década de 1650 Lorrain atinge a fase de maturidade, a mais fecunda, quando desenvolve um estilo monumental tanto nas dimensões propriamente ditas como na severidade da composição e na escolha do tema. Se esta fase, porém, tem sido definida como heroica, as duas últimas décadas, que marcam a realização suprema do talento de Claude Lorrain, são mais clássicas. Os quadros continuam grandiosos em sua concepção, mas tornam-se mais líricos no sentimento, mais delicados no detalhe. As composições são novas e arrojadas, como em O Castelo Encantado.
EM BUSCA DA PAISAGEM IDEAL
Claude Lorrain foi assíduo estudioso da natureza, particularmente nas primeiras décadas de sua trajetória, circulando pelos arredores de Roma, junto a artistas flamengos e franceses. Nesse momento, a pintura de paisagens era mais restrita aos artistas estrangeiros — do norte dos Alpes —, já que os pintores italianos, voltados para as ideias renascentistas, consideravam as paisagens apenas como elementos decorativos, carentes de conteúdo intelectual e de profundidade de sentido. Impermeáveis a esse ponto de vista, porém, os pintores do norte da Europa depararam com um mercado favorável e puderam, assim, explorar as próprias capacidades de observação e de imitação, bem como seu senso de espaço e de iluminação.
Mas Claude Lorrain ia além: suas obras não são meramente descritivas, e sim criações de sua imaginação fértil. À medida que avançava em sua carreira, tornou-se capaz de variar o estilo de suas paisagens, expressando uma incrível variedade de climas e mesmo de significados. Só que nunca dispensou uma estrutura geral, que de certo modo se repetia e que pode ser descrita de um modo amplo: o sombreado do primeiro plano caracteriza-se por uma vegetação detalhadamente reproduzida; as figuras principais estão no plano seguinte, compondo o centro da tela e ladeadas por árvores altas que emolduram a cena, num recurso tradicionalmente conhecido como repoussoir. Essa espécie de moldura também pode ser composta por ruínas — ou então por uma construção incluída na tela, mas que não faz parte da cena original. Conhecido como "capricho" arquitetônico, esse recurso seria usado por Canaletto (1697-1768) com absoluta liberdade.
No centro do quadro a paisagem contém ainda um pequeno agrupamento de árvores ou de construções e depois se abre para um panorama enevoado, culminando em montanhas distantes. Cada elemento é cautelosamente planejado no espaço, de modo que, como observou o pintor Richard Wilson, no século XVIII, torna-se bem possível ao observador "realizar um passeio através da paisagem". Essa forma de criar uma paisagem ideal fora estabelecida anteriormente, ainda no século XVII, pelo pintor histórico italiano Annibale Carracci. Menos interessado nos efeitos transitórios da natureza, Carracci recorria à ambientação paisagística para reforçar o significado e a emoção dos acontecimentos ali descritos. Claude Lorrain foi influenciado por essa abordagem intelectual e expressiva de Carracci e sua escola, mas acrescentou-lhe um senso mais agudo dos detalhes da natureza e do jogo de luz, um legado da tradição artística flamenga. Tal influência é particularmente evidente nas primeiras paisagens e nas telas de portos marítimos. Aqui se destacam, deslumbrantes, os céus de Lorrain: crepusculares, com o sol praticamente no centro do quadro, ou, então, com sua posição apenas indicada pela luminosidade — se a luz vem da esquerda, fria, indica a manhã; se vem da direita, quente, sugere o entardecer. E, sob ela, a agitação das pessoas no porto — sua variação da paisagem pastoral.
Essa visão poética e bastante pessoal, Claude Lorrain pode também ter herdado do pintor paisagista alemão Adam Elsheimer (1578-1610), enquanto seu uso da perspectiva, que resulta na impressão de profundidade espacial, foi certamente exercitado nas decorações ilusionistas sob a orientação de Agostini Tassi. Lorrain o aplicou particularmente em seus portos marítimos chegando à culminância artística e dramática em Porto Marítimo com o Embarque da Rainha de Sabá.
NA TELA, A POÉTICA PASTORAL
Quando não abordam um tema específico, como o bíblico ou o literário, as paisagens de Lorrain incluem figuras pastorais — vaqueiros ou pastores com seus rebanhos. Nos primeiros quadros, essas figuras usavam roupas contemporâneas e a paisagem era mais "natural"; já no início da década de 1640, porém, essa nota moderna foi abandonada e as figuras usavam indumentária clássica idealizada. Ao mesmo tempo, a paisagem tornou-se rarefeita e ideal. Nesse momento, Claude Lorrain cria um mundo pictórico equivalente ao da poesia pastoral.
Geralmente, porém, seus quadros têm inspiração literária, como as Éclogas, de Virgílio, celebrando uma natureza generosa, benévola, onde o homem vive feliz e satisfeito. Por vezes, as virtudes simples da vida rústica eram postas em contraste com a vida urbana e o mundo dos negócios — um modo de viver mais sofisticado, porém exaustivo.
Outra fonte literária de Claude Lorrain eram as Metamorfoses, de Ovídio, contos de amantes e de transformações mágicas de entidades mitológicas. A Paisagem com Narciso e Eco, por exemplo, é uma das mais poéticas, com ambientação perfeita. Aqui se evidencia o domínio da perspectiva, na forma como os elementos da paisagem vão pouco a pouco se suavizando, à medida que são absorvidos pela luz que impregna o todo. Com absoluto equilíbrio, Claude Lorrain não nos oferece a natureza como é, mas como "deveria ser". Seu ideal é "arcadiano", assim denominado a partir do país mítico dos poetas antigos: um lugar de satisfação no seio de uma natureza perfeita — o ambiente das divindades mitológicas.
A PAISAGEM MONUMENTAL
Na década de 1650, as paisagens de Claude Lorrain ganharam uma atmosfera grave, heroica, e dimensões maiores, como a Paisagem com o Parnaso, seu maior óleo remanescente. Data de 1652 e foi pintado para o Príncipe Camillo Pamphili. A composição é dominada pela montanha; na extrema esquerda, o templo e a densa massa de árvores compõem o local do encontro de Apolo com as nove musas. A ambientação clássica se completa pela presença de um deus em primeiro plano. Essa obra faz um paralelo com a de Poussin, e é possível que suas grandes paisagens clássicas tenham exercido alguma influência nesse novo estilo de Lorrain.
Finalmente, a Paisagem com Psiquê no Palácio de Cupido, conhecida como O Castelo Encantado, é uma das mais célebres evocações da atmosfera poética na paisagem de Claude Lorrain. Seu tema foi retirado das Metamorfoses, de Apuleio: Psiquê está melancólica nas proximidades do palácio de Cupido, que a expulsara. A atmosfera soturna expressa os sentimentos de Psiquê, sentada em abandono na orla rochosa, contemplando o palácio de seu amado. No entanto, ela desafiara a determinação do deus em não ser olhado, procurando-o numa noite enquanto ele dormia.
Claude Lorrain só teve um aluno, Angeluccio, que morreu jovem. Mas a influência de sua arte foi decisiva. Seu exemplo dominou toda a paisagem clássica do século XVIII e do início do XIX, passando pela França, Alemanha, pela própria Itália e pela Inglaterra.