A obra de Klee representa a mais rica variedade de estilos e tendências de que se tem noticia na arte ocidental. Ao contrário das diversas fases por que passou Picasso, com seus repentes, a evolução de Paul Klee é gradual, e sua pintura parece crescer como uma planta.
É significativo que ele tenha nascido na Suíça, no lugarejo de Münchenbuchsee, perto de Berna, num dia de Dezembro de 1879. desse país tão cosmopolita emergia o artista mais singularmente europeu e internacional do nosso tempo. Importante, também, a herança espiritual de seu pai, um professor de música, refletida na melodiosidade de sua pintura.
Bem cedo, o pendor para as artes endereça Klee a um grande centro cultural na Europa: Munique, capital da Baviera alemã. Aos vinte anos de idade, Paul já se inscreve no atelier do pintor Knirr, passando depois à Academia de Belas Artes, sob a tutela de Stuck.
Sua lenta formação é dinamizada por algumas viagens ao exterior. A primeira delas abrange os países mais próximos, inclusive a Itália. Fascinado pelos tesouros artísticos de Roma, Veneza, Florença e Nápoles, o estudante absorve as lições de arquitetura do Renascimento e da estatuária de Michelangelo.
Ao regressar a Berna em 1902, começa a fazer gravuras temperadas com águas-fortes, e entremeia a procura de um estilo próprio com novas temporadas em Munique. Ali, graças a exposições, trava conhecimento com a obra de Blake, Goya e Ensor. Ali, em 1906, desposa a pianista Lily Stumpf e inicia uma série de experiências gráficas que culmina com a ilustração do romance “Cândido” ou “O Otimismo”, de Voltaire, entre 1911 e 1912.
É uma fase de extrema receptividade da parte de Klee, que se deslumbra, em seguidas viagens a Paris, com as inovações trazidas por Van Gogh e Cézanne. Embora nenhum artista tenha influenciado diretamente sua arte original e autônoma, Klee assimilou muitos ensinamentos do Cubismo, do Expressionismo e do Primitivismo.
Neste período tão fecundo, ele se aproxima, no inverno de 1911, do grupo de pintores Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul). Assim principia uma longa amizade com Kandinsky, o “pai” da arte abstrata, e com Franz Marc, Macke e Jawlensky. Na primavera do ano seguinte, nova viagem a Paris o põe em contato com o pintor Delaunay e com trabalhos de Braque, de Picasso e Rousseau.
Em Munique, a exposição dos futuristas italianos, sob o fero comando de Marinetti, lhe proporciona também um relacionamento mais estreito com os expressionistas alemães, unidos sob a égide da revista berlinense Der Sturm (A Tempestade). Esse título, tão profético em relação à Primeira Guerra Mundial, assume um novo significado quando referido à trajetória de Klee. Porque é em 1914 que ele vai pela primeira vez ao norte da África, numa breve visita à Tunísia. Dá-se, então, a única transformação violenta da sua pintura. Embevecido pelo brilho e pela luminosidade daquele país mediterrâneo, Klee permite que suas telas sofram uma explosão cromática, deflagrada pelo esplendor de cores da atmosfera tunisina. Daí por diante, em plena maioridade artística, Klee se torna senhor de um estilo pictórico que concilia a mais livre fantasia com a mais sólida organização.
Durante o conflito, ele serve algum tempo no Exército alemão, perto de um aeroporto da Baviera. Mas no Natal de 1918, finalmente, volta a Munique para retomar sua carreira. Apesar da guerra, seu nome já é conhecido a ponto de, em 1920, o arquiteto Walter Gropius chamá-lo para lecionar na famosa Bauhaus. Assim de 1921 a 1930, ensina primeiro Weimar e depois em Dessau, para onde a escola se muda em Abril de 1925. São aulas que seus alunos recordam como “fascinantes”, versando sobre a pintura em vidro e em tecidos.
Outras excursões, sempre rumo ao sul e ao sol, o levam à Itália (1926), à Córsega (1927), ao Egito (1928). E no ano de 1931, quando o espectro de Hitler já se delineia sobre uma nova Europa convulsionada, Klee é convidado a lecionar na Academia de Belas Artes de Düsseldorf. Mas a reação nazista não tarda, e logo sua pintura é tachada de “bolchevismo cultural”, ao mesmo tempo em que o stalinismo acusava a pintura moderna de “fascismo cultural”.
Destituído do cargo, Klee retorna à Suíça como imigrante, iniciando em 1935 sua derradeira fase: com uma crescente economia de meios, elimina qualquer traço ou matiz supérfluo, e aumenta a dimensão de seus quadros. Paralelamente, combate uma insidiosa moléstia da pele, a esclerodermite, que lhe endurece os tecidos e dificulta o manejo do pincel. Após cinco anos de sofrimentos estoicamente suportados, morre Klee a 29 de junho de 1940, no mesmo mês em que tropas nazistas ocupavam a França, no inicio da Segunda Guerra Mundial.
Somando experiências, abrindo-se às grandes correntes estéticas do seu tempo e nunca se desligando das tragédias político-sociais que tanto o marcaram, Paul Klee elaborou intelectualmente uma arte nascida da intuição, da aliança emocional com a realidade externa, para transfigurá-la sob o primado de uma imaginação das mais poéticas na arte contemporânea.
Como trabalhava Paul Klee? Respondem suas próprias palavras: “Concebo um motivo muito diminuto e tento representá-lo de forma sumária por meio de “estágios”, mas de modo prático, isto é, armado de um lápis. Partindo dessa ação concreta, resulta algo bem melhor, dessa série de pequenos atos repetidos, que de um élan poético sem forma e sem figuração... todas as coisas pequeninas e justapostas umas às outras, estreitamente, formam um conjunto que em si constitui uma atividade real. Aprendo retomando desde o princípio, começo a formar alguma coisa como se eu ignorasse tudo sobre pintura. Porque descobri uma pequena propriedade incontestada até agora, um gênero especial da representação em três dimensões sobre a superfície”.
Sem renegar o naturalismo da arte chamada figurativa, que provocou a rebelião abstrata de Kandinsky, sem tampouco reduzir a pintura ao neoplasticismo de Mondrian, Klee vê na arte uma constante mutação, nervosa e sensível, angustiada e transcendente como o próprio destino do homem.
Sua vocação hesitou, no começo, entre a pintura e a música que envolvia seu ambiente familiar: o pai lecionava canto e a mãe concluíra cursos no Conservatório de Stuttgart. Mesmo sem compor, o jovem Paul tocava violino e conhecia perfeitamente uma partitura musical, de Bach e Stravinsky.
Quando se decidiu pelas artes plásticas, logo afirmou sua independência frente aos mestres consagrados: ele distinguia no Classicismo – ao lado das formas greco-romanas, de forte acento arquitetônico e voltadas para o terreno – um conteúdo religioso, de forte acento musical e voltado para o divino. “A terceira estrada consiste no aprendizado de um modesto e ignorante autodidata, um minúsculo eu sozinho.” Essa afirmação precoce num jovem de 23 anos, é a assinatura de sua autonomia espiritual, do caminho próprio e inconfundivel que se traçou no labirinto da arte moderna.
Mesmo em Munique, seu aprendizado é bastante acadêmico. Não desejando negar a natureza, como Kandinsky, e sim transformá-la através da sensibilidade e da imaginação, Klee pouco a pouco abandona uma fidelidade excessiva à representação do objeto, e vai encontrar em Van Gogh e sua deformação da linha um dos primeiros elementos do próprio estilo. Este também participa e fica eqüidistante, a um só tempo, das inovações cubistas e fauvistas de Cézanne e Matisse, respectivamente.
Sua auto-revelação adveio não do contato com obras alheias, mas da descoberta da luz mediterrânea. Ao deparar com a luminosidade mágica da Tunísia em 1914, ele reage assim: “Abandono o trabalho. As coisas me captam com plenitude e ternura. O que sinto agora me dá segurança, sem esforço. A cor me prende. Não preciso mais partir à sua procura. Ela me prende para sempre, eu sei. Eis o significado desta hora feliz: eu e a cor somos uma só coisa. Agora eu sou pintor”.
Klee renasce, e em “Diante das Portas de Kairuan” é capaz de tornar reconhecíveis, com poucos traços, a mesquita, as pessoas, os camelos e o burrinho. De breves anotações realistas, ele parte para uma abstração de linhas e cores sumamente passionais. Esta aquarela mostra o ritmo geométrico de Klee, organizado segundo valores genuinamente musicais por sua delicadeza.
Fica esquecido o estilo anterior, mais acadêmico e menos inventivo. Pirâmides, minaretes, estrelas, luas minguantes, cúpulas de mesquitas surgem então numa série de telas que conservam, ao lado da pura invenção sem lógica, um extraordinário equilíbrio racional. Deformação violenta, eclosão de cores e ruptura de formas, típicas do Expressionismo alemão, em sua tradução emocional da realidade, surgem combinadas com a organização mais cerebral e cartesiana da pintura francesa.
Esta síntese é bem ilustrada por “Kakendämonisch”. Enquanto as formas são francamente geométricas – triângulos, retângulos, cilindros – o tom geral é sombrio, cheio de mistério e angustia: a tela data de 1916, quando seus amigos Macke e Franz Marc haviam tombado nas trincheiras da guerra da qual ele, como cidadão alemão, tinha de participar, absurdamente separado dos seus amigos franceses ou radicados em Paris, como Picasso, Delaunay e Kandinsky.
Cessadas as hostilidades, Klee publica em 1920, com o título Schoepferische Konfession (Confissão Criadora), um verdadeiro evangelho artístico. Sua idéia central é de que “a arte não restitui o visível, ela torna visível”. Quanto mais o trabalho tender para o puro grafismo, diz o pintor, quanto mais ênfase se der aos elementos constituintes da expressão gráfica, mais se reduzirá o instrumento necessário à expressão realista das coisas do mundo exterior. O grafismo, por sua própria essência, conduz diretamente à abstração.
O fantástico e o imaginário são elementos cuja essência, seja ela fabulosa ou feérica, não deixa de se exprimir com a precisão de um rigor extremo. Como elementos formais do grafismo, cita Klee “o ponto e as energias que brotam da linha, do plano (superfície) e do volume (espaço)”.
A união de elementos concretos e abstratos na composição de um quadro com formas reconhecíveis – quadrados, losangos, etc. – misturadas a algarismos e letras constitui um substituto da natureza, mas um substituto apenas parcial: para Klee, o ilógico coexiste com o lógico, o irreal com o real. Assim Klee jamais poderia perfilar com os surrealistas ortodoxos, embora participando de sua primeira exposição, pois transformava o instituto em racionalidade, a fim sobretudo de “poder dialogar com os demais”. Em “Villa R” a letra é um elemento novo e autônomo que participa desse universo onírico e real ao mesmo tempo, junto com a estrutura da casa, o caminho, a lua, as montanhas.
Era normal que Paul Klee aceitasse o convite de Gropius para lecionar na Bauhaus, a partir de 1920. Havia propósitos comuns: estabelecer um nexo ativo entre a criação e a atividade social do homem, começando com a arquitetura, a mais estritamente social das artes, mas completando-se com outras formas.
A “Fuga em Vermelho” denota a impregnação desses ideais na sua pintura, principalmente através de um maior rigor na composição. O movimento das formas, expresso pelas gradações de tons sobre o fundo escuro, tem a severidade matemática de uma fuga de Bach: linguagem gráfica e musical, numa assimilação do desenho à melodia, da cor à harmonia, em que se acentua a preocupação de buscar o povo. Porque como dizia Klee em suas conferências, “o povo ainda não está conosco”.
No desenho em aquarela “Alvo Atingido” Paul Klee utiliza a seta, negra maior, como uma advertência simbólica da guerra, qual bomba lançada sobre uma cidade indefesa. As faixas horizontais, com suas cores nuançadas, emolduram formas geométricas ou quase arabescos de uma caligrafia sutil. Já “Construtive Impressive”, embora lembre um pouco a Wassily Kandinsky propunha na mesma Bauhaus onde também lecionava, reduz bastante as cores e as formas, retomando um motivo freqüente em Klee: o tabuleiro xadrez alternado com losangos, triângulos, retângulos e quadrados. E a composição paira entre a construção racional e a atmosfera sonhadora de objetos soltos no espaço.
Aproximando-se da técnica da gravura, “Uma Folha do Livro de Registro da Cidade” lembra uma escrita cuneiforme sobre pergaminho. À parcimônia de tonalidades somou-se uma livre arquitetura de formas, a recordar os prédios de uma cidade, encimados por um astro misterioso. Nessa tela acha-se misturado o primitivismo de um documento manuscrito com o requinte de um jogo animado por mãos de mestre.
Exemplarmente, “Tempo Variável” fica a meio caminho da representação e da abstração, enquanto “Crepúsculo no Parque” completa este salto.
No primeiro, formas simbólicas de uma nuvem, um sol e um barômetro se destacam na paisagem amarelada, rasgada por um largo relâmpago vermelho. No segundo, formas taquigráficas traduzem plantas, casas ou folhas, tocadas por diferentes graus de luminosidade, numa escuridão embrionária que tudo envolve.
Assim como altera ou simplifica as formas naturais, Paul Klee também inventa formas inexistentes, mas possíveis de existir: “Singularidade das Plantas” não é só uma alusão divertida a plantas marcianas, mas um desenvolvimento fantasioso que respeita plenamente a morfologia vegetal.
Ao voltar do Egito, em 1929, Klee realiza telas que lembram mosaicos bizantinos de cores translúcidas. Serve de exemplo “Estrada Principal”e “Estradas Secundárias”, uma autentica partitura cromática a transpor a luminosidade oriental em áreas geométricas que, ao contrário da rigidez ou frieza, sugerem os caminhos de um lirismo intensamente musical: tema e variações, numa orquestração sinfônica.
Entretanto, as experiências vanguardistas de Klee, juntamente com as da Bauhaus, seriam muito afetadas pela ascensão do nazismo. Em 1933, a escola fecha suas portas. Acusado de “judeu” e “decadente”, Klee tem 102 obras confiscadas e dezessete delas exibidas na tristemente célebre Exposição de Arte Degenerada (Munique, 1937).
Deixando a Alemanha, o pintor atravessa um período de angústia, e suas telas ganham nomes como “O Medo” ou “A Máscara do Medo”: não o terror impotente diante da tirania, mas a noção da fragilidade da arte diante das ditaduras. Seu mundo alegre e colorido cede lugar a formas arredondadas, em ziguezague, de limites imprecisos: são os quadros de seus últimos anos, dilacerantes por causa da doença da pele que o afligiu até a morte em 1940, numa clínica em Muralto, Locarno.
Concretizando a relação entre o mundo visível e a sociedade, entre a criação e sua consciência, a pintura final de Klee registra ainda melhor os abalos internos e externos. Continua, porém, aparentada com a música. Nos desenhos e parte das telas, a ausência de um ponto focal é análoga à falta de um centro tonal na música dodecafônica.
Há uma indeterminação gráfica pela qual não se sabe “onde começa” a obra. É um fragmento, um instante: o diminuto fragmento de uma vicissitude mais universal, da qual o artista somente fixou um instante. “E esse instante não tem centro nem dimensão precisa: está desfocado com relação ao tempo e ao espaço” (Gillo Dorfles). Tal “desfoque”, em Klee, é mais espiritual e menos mecânico que a similar multiplicação dos pontos de vista na perspectiva cubista.
A coletividade humana surge agora como máscaras torturadas ou fetos informes, incompletos: é o amargo simbolismo de “O Grupo dos Onze”. O sentimento de aflição e o clima de pânico acentuam-se na “Flora sobre a Rocha”, conjunto de signos em fuga desenfreada num espaço ameaçador, tecido com violentas cores primárias. E “Anoitece” introduz uma nota pessoal em meio a tragédia coletiva, durante o início da Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo tempo que as formas são maciças e tendem para baixo, dando um toque deprimente à composição, há refúgios de paz nos intervalos azuis. Diante dos conflitos maiores da humanidade, Klee pressente que a sua própria morte é insignificante e o seu depoimento está feito, agora que anoitece.