Miró foi um dos artistas mais versáteis e influentes do século XX. Embora originário de uma família de artesãos, ele se viu frustrado pela família em sua intenção de se tornar pintor, tendo sido forçado pelo pai a aceitar um emprego burocrático de guarda-livros, em Barcelona. Como resultado, Miró sofreu um colapso nervoso, o que na verdade apenas contribuiu para reforçar sua vocação artística. Assim, em 1919 foi para Paris, e a partir de então dividiu seu tempo entre a França e a Espanha. Anos mais tarde foi aos Estados Unidos, onde pintou murais para hotéis e universidades. O gênio alegre e o gosto pelo detalhe humorístico contribuíram para a popularização de sua obra, embora a selvageria e a violência da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial deixassem marcas em seu trabalho.
Simples e Verdadeiro
A natureza simples e taciturna de Miró abrigava uma grande criatividade.
Criou uma obra singular e volumosa que o projetou internacionalmente; nunca, porém, se deixou ofuscar pelo brilho da glória.
Joan Miró nasceu no dia 20 de abril de 1893 em Barcelona. A família morava na Pasaje dei Crédito, ruela estreita situada no coração da cidade, onde seu pai, Miguel, era um próspero ourives e relojoeiro. O talento para o artesanato estava presente também em seus ancestrais pelo lado materno, pois Dolores Ferrá, sua mãe, era filha de um exímio marceneiro. Desde os 7 anos de idade, Miró desenhava retratos e naturezas-mortas, mas tanto Dolores quanto Miguel viviam reprimindo suas ambições artísticas.
Miró revelou desde cedo sua intenção de tornar-se artista, mas seu pai não lhe deu ouvidos. O menino não possuía a menor aptidão para o estudo e era visto pelos colegas como um “bobão”.
E, em 1907, quando o jovem Miró entrou para La Lonja, a escola de Belas-Artes de Barcelona, seus colegas logo o descreveram como “um fenômeno do desajeitamento”. No entanto, seu tutor conseguiu enxergar laivos de originalidade e talento em todas as suas tentativas canhestras. E, sempre que o ansioso Miguel queria se certificar da incompetência do filho, era informado de que Miró tinha grande potencial para a arte.
Sem se deixar influenciar por essa avaliação, Miguel forçou o filho a aceitar um emprego respeitável como guarda-livros de uma farmácia local. Corria o ano de 1910. Miró obedeceu sem relutância, embora intimamente abalado. A monotonia do trabalho, em contraste com a efervescência artística em suas veias, levou-o a uma profunda depressão nervosa, agravada por um ataque de febre tifóide. Desesperados, os pais o enviaram para sua fazenda perto de Montroig, região montanhosa da Catalunha, para uma temporada de recuperação. O ambiente e a paisagem exerceram uma duradoura impressão no espírito do jovem artista, com posteriores reflexos em sua obra.
De volta a Barcelona, e já restabelecido, Miró não mais iria sofrer uma pressão cerrada contra sua escolha. Conseguiu autorização paterna para ingressar na escola de arte dirigida pelo artista liberal Francisco Galí e juntou-se aos artistas do círculo de Sant Lluch, alguns dos quais se tornariam seus eternos amigos como Joseph Lorens Artigas. Em companhia dos novos e boêmios companheiros, Miró começou a freqüen tar os cafés e clubes noturnos, sem contudo partilhar do mesmo estilo de vida. Era sempre o primeiro a ir para casa. Achava mais enriquecedor o contato com os artistas e poetas da vanguarda francesa que viajavam muito a Barcelona durante a guerra. Gostava também de freqüentar a galeria de arte de Joseph Dalmau, onde descobriu, fascinado, as pinturas fovistas e cubistas.
A SEDUÇÃO DE PARIS
Em 1918, Dalmau ofereceu a Miró a oportunidade de fazer sua primeira exposição individual. A resposta do público não foi satisfatória, mas o artista não se deixou abater, ciente de que o reconhecimento internacional e o sucesso que almejava só poderiam ser conseguidos em Paris. A capital francesa exercia nele uma grande atração e, em 1919, no imediato pós-guerra, decidiu ir para lá pela primeira vez. Nos anos seguintes passaria os invernos em Paris e verões tranquilos em Montroig, estabelecendo uma agradável rotina de trabalho.
Paris era uma cidade estimulante, embora um tanto cruel para artistas pobres e obscuros. Uma das primeiras providências de Miró ao chegar foi procurar seu conterrâneo, Picasso, que imediatamente comprou-lhe um auto-retrato para incentivar o novo amigo. A comercialização de suas telas, porém, não era muito fácil, e sua situação financeira tornou-se crítica. Os pais lhe enviavam muito pouco dinheiro, para mostrar que, de fato, estavam descontentes com sua carreira. Miró trabalhava num estúdio minúsculo e precário na rua Blomet, 45, perto de Montparnasse. Os vidros das janelas estavam quebrados e o fogão barato que comprara no mercado das pulgas não funcionava. Vivia num tal estado de penúria que só fazia uma única refeição satisfatória por semana.
Encontrava consolo junto ao círculo de intelectuais, poetas e pintores que conhecera por intermédio de seu vizinho, André Masson. Paul Eluard, Louis Aragon, Robert Desnos, Antonin Artaud, André Breton e o próprio Masson reuniam-se freqüentemente para discutir as idéias que Breton veiculava no primeiro Manifesto Surrealista de 1924. Miró ficou fascinado com as tentativas daqueles artistas em explorar o sub-consciente, quase sempre por meios artificiais e induzidos. Participava das reuniões e assistia aos discursos histéricos e alucinantes do dramaturgo e teatrólogo Artaud. Esses encontros estimularam Miró a abandonar a pintura da realidade cotidiana e a confiar mais na imaginação e nas sensações alucinatórias que experimentava quando passava fome. Ficava horas sentado, contemplando as paredes vazias do estúdio, desenhando as estranhas formas que lhe vinham à mente. Não tomava drogas, o que o tornava uma exceção no grupo, mas começou a expor junto com os surrealistas, mostrando suas novas “pinturas oníricas” na galeria de Pierre Loeb e na Galeria Surrealista.
Após o contrato com o negociante de arte Jacques Viot sua situação financeira melhorou. Viot conseguiu-lhe um estúdio em Montmartre, onde tinha como vizinhos Max Ernst, René Magritte e Jean Arp. Miró ficou muito amigo do grupo, em especial de Arp e Ernst.
Trabalhava compulsivamente, tornando-se cada vez mais reservado e misterioso em relação a suas telas. Mantinha-as viradas contra a parede, longe dos olhares curiosos de Ernst, que trabalhava no estúdio do andar superior. Certa noite, Ernst e mais alguns companheiros bêbados arrombaram seu estúdio e vasculharam todas as telas para descobrir seus segredos. Em seguida, amarraram uma corda no pescoço de Miró e começaram a enforcá-lo. Miró, que estava sóbrio, conseguiu livrar-se deles e fugiu, desaparecendo por três dias.
Entretanto, as loucuras provocadas pela embriaguez de Ernst não foram suficientes para abalar a amizade entre ambos, ou para diminuir a admiração recíproca. E ocasionalmente trabalhavam juntos. Aceitaram por essa época um trabalho conjunto para desenhar o cenário e o guarda-roupa do balé Romeu e Julieta, com coreografia de Diaghilev. Breton, líder dogmático do movimento surrealista, desaprovou com veemência o envolvimento de ambos no que dizia ser o “frívolo e burguês mundo do balé”. Na noite de estréia, organizou uma manifestação contra os dois e os denunciou em sua revista, La Révolution Surréaliste. Miró, contudo, jamais compartilhou dos dogmas intelectuais ou da autoridade de Breton, preferindo manter-se a distância sempre que lhe conviesse.
Em 1928, iria à Holanda para conhecer os instigantes interiores burgueses pintados pelos holandeses do século XVII, Vermeer em particular. Na volta trouxe consigo postais com reproduções, que utilizou como fonte de inspiração numa série de telas. Entre estas se incluía o Interior Holandês I, onde distorceu e reordenou todos os elementos contidos no original, com bastante senso de humor. Logo depois, Miró abandonou o encanto fácil de quadros como esse e iniciou uma série de colagens e construções a partir de fragmentos e lascas de entulho, quase sempre retirados de latas de lixo. Dispunha objetos e materiais de acordo com seu poder de choque. Queria “assassinar a pintura”, que, segundo dizia, “estava decadente desde a idade das cavernas”.
Os problemas que nesse momento afetavam Miró não tinham nenhuma relação com questões pessoais. Em 1929, com 36 anos de idade, casou-se com Pilar Juncosa, vivendo um casamento tranqüilo e harmônico. Dois anos depois, nascia sua filha Dolores. Entretanto, a década de 30 traria consigo traumas que se refletiríam agudamente em sua arte.
Por essa época, Miró passava a maior parte do tempo na Espanha, cada vez mais distanciado dos surrealistas em suas tentativas de se filiar ao Partido Comunista. Mas sua consciência social o alertava quanto à ameaça do fascismo. Seus quadros, aos quais denominou de “pinturas selvagens” continham distorções violentas e monstros agressivos, numa terrível premonição da catástrofe iminente. Ele já vislumbrava a guerra que estava chegando.
A DEFLAGRAÇÃO DA GUERRA CIVIL
Em 1936, começou a guerra civil na Espanha e Miró se viu obrigado a voltar para Paris. No ano seguinte, desenhou o cartaz Ajude a Espanha ao preço de um franco, como uma contribuição aos espanhóis em sua luta pela liberdade. Era um cartaz que mostrava um camponês catalão brandindo desafiadoramente o braço direito. Pintou também O Ceifeiro para o governo republicano da Espanha, que seria exposto ao lado de Guernica de Picasso na Exposição Internacional de Paris, e a dramática Natureza-Morta com Sapato Velho, onde uma maçã simbolizando a Espanha é agressivamente espetada por um garfo com dentes em formato de baionetas.
Mas o problema trágico da Espanha seria, no entanto, eclipsado pela Segunda Guerra Mundial. Paris já não era mais um lugar seguro e Miró encontrou refúgio temporário numa pequena casa de campo perto de Varengeville-sur-Mer, na Normandia. “Eu estava muito deprimido”, escreveu Miró mais tarde. “Acreditava na vitória inevitável do nazismo e temia que todos os nossos ideais e sonhos submergissem para sempre naquele abismo.” Meses depois, os bombardeios ameaçavam Varengeville, e Miró empreendeu nova fuga para o sul, via Paris, chegando à Espanha apenas alguns dias antes de os alemães marcharem sobre a capital francesa.
Estabeleceu-se temporariamente em Maiorca, onde pôde usufruir de muitas horas de tranquilidade na Catedral de Palma, quando, durante recitais de órgão, aproveitava para admirar a luz filtrada pelos vitrais da igreja. Em 1942, levou a família de volta a Barcelona. Persistia nele o ódio profundo pelo absurdo da guerra, sentimento traduzido em algumas litogravuras. Por essa época, encontrou também na cerâmica uma maneira de dar vazão à sua criatividade, ao lado de seu amigo de infância, Artigas.
Sua fama internacional já era bem grande, sobretudo nos Estados Unidos, onde sua obra era exibida regularmente na Galeria Pierre Matisse. Em 1947, fez a primeira de uma série de viagens aos Estados Unidos, a convite do Terrace Hilton Hotel, de Cincinnati, para pintar um enorme mural para o restaurante do hotel. Esse convite veio ao encontro de sua necessidade de comunicar-se com o grande público e de expressar-se em projetos monumentais. Visitou também Nova York: o ritmo excitante da cidade e o otimismo de sua gente lhe deram um novo sentido à existência. Quando retornou a Paris em 1948, foi recebido como herói, e sua exposição na Galeria Maeght foi um sucesso.
Miró viu-se logo assoberbado por encomendas vindas de entidades norte-americanas, francesas e espanholas. Era o reconhecimento oficial. Mas querendo trabalhar de forma mais efetiva para o grande público, cada vez mais ele dedicava energias para litogravuras, gravuras, desenhos e utensílios de uso popular, como vasos e pratos de cerâmica. De custo mais baixo, eram de mais fácil difusão. Em 1954 ganhou o Grande Prêmio de Gravura da Bienal de Veneza e recebeu das mãos do presidente Eisenhower o Grande Prêmio Internacional Guggenheim.
A FUNDAÇÃO MAEGHT
Para enfrentar o grande volume de encomendas e ter tempo disponível para a organização regular de exibições mundiais foi criada em 1964, em sua homenagem, a Fundação Maeght, em Saint-Paul-de-Vence. Incansável, Miró passou as duas últimas décadas de sua vida deslocando-se de Montroig para Paris, ao encontro de seus impressores. E se necessitasse de isolamento, corria para seu imenso estúdio construído perto de Palma de Maiorca. Foi o único estúdio de grandes dimensões que possuiu, provavelmente a realização de um sonho que nasceu quando trabalhava em precárias condições em Paris.
Até a data de sua morte, no dia 25 de dezembro de 1983, Miró trabalhou exaustivamente, aprendendo técnicas de monotipo quando contava já 84 anos. Aos 86 produziu seu primeiro vitral para a Fundação. Rico e famoso, esse modesto ancião permaneceu até o fim um homem simples, alheio às seduções da celebridade.