Um dos artistas mais conhecidos do século XX e representado nos principais museus do mundo, Salvador Dali exerceu influência significativa na arte desde seu aparecimento junto aos surrealistas, em 1929. Desenvolvendo a teoria do Surrealismo até as últimas conseqüências, chegou a simular uma forma de "loucura racional" que o tornou hipersensível ao significado oculto das imagens.
Apesar de tão fortemente identificado com o Surrealismo, desvinculou-se do movimento em 1938, voltando-se para o Classicismo, e descreveu essa mudança de direção como uma "Renascença religiosa baseada num Catolicismo progressivo". Fluente nas palavras como na própria arte, seus pronunciamentos contribuíram muito para intensificar a imagem de uma personalidade tão extraordinária quanto controvertida.
Excêntrico, irreverente e imprevisível, Dalí alimentou-se do espanto do mundo, forjando para si uma imagem insólita e irresistivelmente voltada para o espetacular.
Salvador Dalí nasceu em 11 de maio de 1904 na provinciana aldeia catalã de Figueras, na Espanha. Seu pai era um proeminente notário com idéias republicanas. Dali adorava a mãe, católica fervorosa. O nome Salvador fora dado a seu irmão, que morrera nove meses antes de seu nascimento, e os pais, para compensar a perda, nunca pouparam mimos ao novo filho. Mas sempre se sentiu um substituto e, em sua autobiografia, teceu um relato vivo de sua mórbida auto-identificação com o irmão morto e de seu insaciável desejo de atenção.
O interesse pela arte foi precoce e ele produziu o primeiro quadro em 1910, com apenas seis anos. Embora o pai não demonstrasse nenhuma objeção às aptidões do filho, insistia — como sempre — em que ele seguisse uma carreira acadêmica oficial. Após duas tentativas mal-sucedidas de educar o jovem Salvador em escolas locais, acabou se rendendo à evidência que o filho era dotado de uma personalidade extraordinária, mas anormal. Seu comportamento era sempre estranho e ele teimava em não aprender nada. Todos os acontecimentos insólitos ou fenomenais desses primeiros tempos de escola lhe eram atribuídos. "E realmente louco", diziam. E Dalí saboreou essa frase desde então. Mais tarde, afirmaria: "Com seis anos de idade queria ser cozinheiro. Com sete quis ser Napoleão. E minha ambição vem crescendo desde aquela época".
Em setembro de 1921, seu pai permitiu que ingressasse na Escola de Belas-Artes de Madri. Nessa época já pintara vários quadros, ganhara dois prêmios e estava autoconfiante.
Estabelecendo-se na Academia, Dalí dedicou-se aos estudos, a desenhar no Museu do Prado e a aperfeiçoar sua técnica. Conheceu Garcia Lorca, o grande poeta espanhol, e o cineasta Luis Buñuel, com quem colaborou mais tarde em dois dos filmes surrealistas mais notáveis, Un Chien Andalou (1929) e LAge d'Or (1930). Uma profunda amizade iria uni-los.
Não demorou para que Dalí se sentisse muito à frente da maioria dos outros alunos: estava familiarizado com os novos movimentos artísticos que afluíam de Paris, por intermédio de revistas como L'Esprit Nouveau e a italiana Valori Plastici, onde descobriu as obras cubistas de Pablo Picasso, assim como as pinturas de Giorgio De Chirico. As praças estranhas e desertas, as arcadas e torres italianas de De Chirico teriam grande influência nos primeiros trabalhos surrealistas de Dalí. Uma de suas mais importantes descobertas intelectuais foi A Interpretação dos Sonhos, de Freud, que explora o inconsciente. Dalí submetia cada evento do cotidiano, por mais acidental que fosse, a uma interpretação particular; e pelas teorias de Freud podia provar que seus sonhos e pesadelos mais turbulentos faziam sentido. Pouco depois, Dalí já se sentia insatisfeito também com o ensino da Academia. Em 1923, foi suspenso por insubordinação, voltando à casa de verão paterna em Cadaqués.
No fim do ano estava de volta a Madri, inteiramente preparado... para continuar seu antigo estilo de vida. Comprava os ternos mais caros, camisas de seda, abotoaduras de safira, debitando tudo na conta do pai. Freqüentava os cafés da cidade acompanhado de seus velhos amigos, participando de discussões artísticas e literárias. Sua reputação de rebelde e irreverente o levou diante de um comitê disciplinar que o expulsou da Academia. Para sempre.
VIAGENS DA AMBIÇÃO
Nos anos seguintes, Dalí passaria pelas experiências mais opostas: explorou a idéia de captar o movimento na pintura, após ver a obra dos futuristas italianos, voltando, depois, sua mente inquieta para as imagens enigmáticas de De Chirico. Tentou até mesmo pintar no estilo de Vermeer, ao mesmo tempo que prosseguia com os temas abstratos do Cubismo.
Em 1925, Picasso, quando em visita a Barcelona, viu e elogiou muito um quadro de Dalí. Era sua primeira mostra individual, exposta na Galeria Dalmau. Um ano mais tarde, Dalí decidiu fazer uma rápida visita a Paris para ver Picasso. Disse, cheio de respeito: "Vim vê-lo antes de visitar o Louvre" "Fez muito bem", teria sido a resposta do pintor.
Inspirado por Picasso, voltou para casa disposto a produzir uma série de amplas telas cubistas, mas, em contrapartida, sentia-se possuído por um desejo avassalador de aliar suas visões subjetivas à pintura, de imprimir à sua obra os "reais processos do pensamento". O Surrealismo, então, indicaria seu caminho.
Quando Dalí voltou a Paris, em 1929, já não foi para ver Picasso, mas seu amigo Miró. "Tem algum terno para noite?", perguntou-lhe Miró. Dalí comprou um no dia seguinte e assim fez sua rentrée na sociedade parisiense. Jantava com os ricos e famosos; o círculo social era infindável e Dalí rapidamente percebeu suas vantagens. "Senti que havia atingido a fama no momento em que cheguei na Gare d'Orsay, em Paris. Comecei a olhar em volta e daí em diante passei a considerar as pessoas que conhecia única e exclusivamente como criaturas que poderia utilizar como estações em minhas viagens de ambição", ele diria mais tarde, com uma sinceridade retórica, mas desconcertante.
O TOQUE DA LOUCURA
Conheceu os surrealistas e seu fundador, André Breton. Recém-chegado, Dalí participava das discussões do grupo e lia seus manifestos, colocando a serviço do movimento uma publicidade engenhosa e barulhenta. Era todo fanatismo, convicção, combatividade.
Quando Camille Goemans ofereceu-lhe uma exposição em Paris, voltou à Espanha para reunir seus trabalhos. Mas, em Cadaqués, seu primeiro pensamento foi o de captar as estranhas imagens que fervilhavam em sua mente. Sentia o toque da loucura. Nessa época, suas pinturas eram completamente automáticas, sem nenhuma intervenção consciente; ele reproduzia o fluxo da atividade mental com absoluta clareza e tão escrupulosamente quanto possível. Entre os muitos visitantes a Cadaqués, nesse período, estavam o poeta surrealista Paul Éluard e sua esposa Gala. Desse encontro iria emergir uma longa e intensa história de amor — obsessiva em Dalí. A partir desse dia, Gala seria para sempre sua musa e companheira. Quando Gala morreu foi sepultada nos jardins de um castelo com que a presenteara, ao lado de um túmulo que um dia viria a ser o seu.
Mas, voltando ao Dalí dos primeiros tempos, quando seus novos trabalhos chegaram a Paris, Breton escreveu no prefácio de seu catálogo: "É talvez com Dalí que todas as grandes janelas da mente estejam se abrindo", deixando clara a importância do pintor para o Surrealismo.
A imagística sistematizada em que Dalí agora mergulhava tinha suas origens na psicanálise — particularmente nas histórias de Freud e Kraff-Ebing. Pela primeira vez, no Surrealismo, alguém tentava empregar, ao mesmo tempo, o automatismo — que dominava o movimento desde os anos 20 — e a narrativa onírica.
Além disso, e numa tradição autenticamente renascentista, Dalí passou a se envolver com todos os aspectos do pensamento criativo. Fez poemas e ensaios, produzindo, em média, um livro a cada dois anos. A obra A Vida Secreta de Salvador Dali, onde ele não poupou os próprios segredos, foi definida por George Orwell como "um número de striptease sob refletor rosa".
Com sua inesgotável criatividade e seu gênero excêntrico, Dalí se destacava entre os surrealistas. Tudo nele era superlativo. Redescobriu a art nouveau, cuja arquitetura considerou "o fenômeno mais original e extraordinário na história da arte". Também desenvolveu o que chamou de "método crítico-paranóico" que expôs no livro intitulado Femme Visible (1930): trata-se de representar imagens suscitadas por livres associações de idéias, a partir de formas dadas pelo acaso.
Resolveu, também, pairar acima da posição política adotada pelos surrealistas contra a ascensão do fascismo, ao mesmo tempo que retratou Lênin de maneira pouco gentil e pintou uma suástica na braçadeira de uma enfermeira sentada numa piscina, em outro trabalho. Sentindo-se ultrajado, Breton convocou uma reunião de surrealistas e desfiou um rosário de acusações a Dalí: o Surrealismo não estava preparado para patrocinar suas obsessões particulares. Mas, como nem todos concordaram com Breton, o assunto caiu no vazio. Só que, a partir daquele momento, Dalí deixou de freqüentar as reuniões oficiais, embora continuasse a ser convidado e a contribuir para as exposições do grupo. Eterno "enfant terrible", obstinado em espantar, Dalí compareceu à Exposição Surrealista Internacional de Londres, em 1936, vestindo um escafandro, enquanto mantinha cães de caça russos em coleiras.
Ainda em 1936, conheceu Sir Edward James, que seria seu patrono e colecionador de importantes obras suas. Dois anos depois, conquistou sua ambição maior, a de conhecer Freud, que se fixara em Londres, fugido da Alemanha de Hitler. Após a saída de Dalí, Freud teria comentado com um amigo: "Nunca vi um exemplo mais arrematado de espanhol. Que fanático!"
Em 1934, ele havia feito sua primeira visita a Nova York, chamando-a de sua "campanha americana". Foi para continuá-la que, com o advento da guerra, chegaria a Nova York com Gala.
A publicidade sensacional dos surrealistas em Paris já atingira a América, e o apelo de Dali teve repercussão imediata. Seus modos teatrais logo o tornaram o assunto de Nova York, cidade que descreveu como "um imenso queijo roquefort gótico". Logo estava atendendo a encomendas para balés, palestras e roteiros cinematográficos. Criou a seqüência do sonho em Quando Fala o Coração (Spellhound), de Hitchcock, e pôs toda uma orquestra flutuando no mar sobre uma balsa, num filme dos irmãos Marx.
Com a eclosão da guerra, muitos surrealistas fugiram para a América. E rapidamente retomaram seus ataques a Dalí. André Breton, por exemplo, chegou a cunhar um anagrama com seu nome: Avida Dollars (Ávido de Dólares), em protesto contra as rentáveis extravagâncias do artista. E que, recorrendo a todas as fontes, Dali ostentava um gênio publicitário para entreter seu mito pessoal, abusando até mesmo de sua figura (quem não conhece os bigodes de Dali?). Mais que o acrobata, mais que o mágico, ele foi sempre o dono do espetáculo.
Arvorando-se ainda o único surrealista autêntico, Dalí continuou fortalecendo sua crença numa hierarquia católica e na monarquia. Começou a se referir a si mesmo como "O Cósmico Dalí". Escrevendo em 1959, disse: "E difícil manter o interesse do mundo por mais de meia hora seguida. Tenho feito isso, com êxito, a cada dia, durante vinte anos".
Em 1983, aos 79 anos, sempre inconsolável pela morte da única mulher de sua vida, Dalí conseguiu sobreviver a um incêndio em seu castelo na Espanha, mas continuou aguardando, obsessivamente, o tão esperado momento de se reencontrar com Gala, que chegou no dia 23 de janeiro de 1989, no hospital de Figueras, após sucessivos internamentos.