braque ee19b1882 - 1963

Georges Braque nasceu a 13 de maio de 1882 em Argenteil-sur-Seine, na Normandia, filho e neto de pintores.

Seu avô e seu pai eram donos de uma firma especializada na decoração de paredes. Em 1890, a família muda-se para o Havre, onde Georges freqüenta o liceu, pratica esportes – remo e ciclismo – e segue cursos noturnos de belas-artes. Aos dezessete anos, deixa os estudos regulares e passa a trabalhar na empresa familiar, entrando em contato com a técnica da pintura sobre paredes. Ao mesmo tempo, interessado em outras formas de expressão artística, toma aulas de flauta com o irmão de Raoul Dufy, o pintor que mais tarde seria um de seus bons amigos.

 Na virada do século, Braque toma a decisão de dedicar-se integralmente à pintura. O que significa deixar a província e ir a Paris. No mesmo ano de 1900, está na capital, pronto a trabalhar em arte. Mas é o serviço militar que primeiro usufrui da sua disposição. Só dois anos mais tarde é que Braque começará mesmo a concretizar seus planos, quando -desengajado – se inscreverá na Academia Humbert.

 

 Por essa época, faz seus primeiros amigos no mundo da pintura: Marie Laurencin e Francis Picabia, Othon Friesz e Raoul Dufy. E descobre os mestres mais admirados: Corot, Monet, Van Gogh, Seurat e – principalmente – Cézanne. Como era costume então, pinta ao ar livre e de tempos em tempos sai de Paris, trocando a metrópole pela paisagem das cidadezinhas balneárias. Em 1904, por exemplo, passa o verão em Honfleur, fazendo esboços e conversando sobre pintura com Dufy.

 O ano seguinte é de grande importância para os rumos de sua arte. Abre-se o Salão de Outono e nele expõe um grupo de jovens pintores rebeldes – os fauvistas: além de Dufy e Friez, Puvis, Rouault, Marquet, Van Dongen, Vlaminck, Matisse e Derain. Especialmente os dois últimos causam forte impressão em Braque. Não por coincidência, são os que defendem uma pintura de emoções comedidas, controladas, enquanto um Vlaminck dizia querer queimar a Escola de Belas-Artes com seus vermelhos e cobaltos.

 De qualquer forma, são as concepções fauvistas que presidem aos primeiros trabalhos verdadeiramente criativos de Braque, os quais marcam o fim da fase de aprendizado e o aparecimento de um pintor independente. No verão de 1906, passa várias semanas em Antuérpia, em companhia de Friesz. Dessa sua estada na cidade belga é o Porto de Antuérpia. Já aqui se percebe a marca singular do artista, apesar da afinidade com os companheiros fauvistas. Embora lhe falte ainda a coragem desenvolta de um Van Gogh ou de um Gauguin no uso das cores puras, suas tintas se espalham em piceladas largas, isoladas, bem identificáveis, que criam as imagens mais por sugestão do que por descrição. Calmo e equilibrado – como a própria personalidade de Braque – é o ritmo da composição.

 No mesmo ano, expões seis paisagens no Salão dos Independentes e passa o inverno em L’Estaque, no sul da França, onde durante muito tempo Cézanne costumava pintar.

 Sempre em movimento, vai a La Ciotat em maio de 1907, volta a L’Estaque em 1908. no começo, viajar era uma necessidade para a inspiração. Depois quando a paisagem deixa de interessá-lo, quando se afasta da natureza e medita no estúdio sobre formas novas e sobre a estrutura ideal de um quadro, ainda assim não cessa de se locomover, como forma de recreação.

 Paisagem de La Ciotat e Casas de L’Estaque são alguns dos quadros resultantes dessas viagens. No primeiro, diminui o número de pinceladas soltas, a cor – quase pura – se espalha em campos maiores e o desenho envolve elegantes arabescos em rápido ritmo. As tintas mudam e se fundem num único objeto, libertando-se completamente de toda e qualquer alusão às tonalidades realmente existentes na paisagem. A estilização lembra vagamente Gauguin. O outro, dominado por verde, terra e cinza, exprime as primeiras tentativas de uma nova linguagem pictórica. A partir das lições de Cézanne sobre a importância dos volumes numa tela, Braque lhe confere uma ênfase desconhecida na época. O Braque fauvista não mais existe. Mesmo num trabalho anterior, de 1907, Nu Sentado, nota-se que é de Cézanne a influência mais poderosa: nas tintas encorpadas e na textura que valoriza o volume, a solidez da figura.

 Braque está pronto para sua revolução. O Salão de Outono de 1908 recusa todos os seus quadros, mas o marchand Kahnweiler organiza-lhe uma exposição particular na Rue Vignon. O crítico Louis Vauxcelles, a quem se deve o nome de fauves (“feras”) dado aos jovens pintores do movimento de 1905, visita mais de uma vez a mostra e comenta a forma “que tudo reduz – lugares e figuras e casas – a esquemas geométricos, a cubos”, e fala, intrigado, das “bizarrices cúbicas” do artista. Estava batizado o estilo de pintura que se converteria num dos principais movimentos da arte contemporânea – o Cubismo.

 Cronologicamente, o Cubismo nasce com as Senhoritas de Avignon, pintado por Picasso entre 1906 e 1907. Comporta várias etapas ao longo de seu desenvolvimento: Cubismo analítico, Cubismo sintético, Cubismo hermético e Cubismo cristalino. Significa a destruição da realidade e sua reconstrução, segundo a lógica e a imaginação do artista. É uma linguagem pictórica profundamente pessoal, liberta de toda necessidade de representação comum, que elimina o supérfluo e dirige o pintor à busca da estrutura ideal da obra. Apollinaire o chamou “o científico assassínio da anatomia”.

 

 É preciso porém deixar de lado por ora as definições e buscar antes de mais nada os motivos e as sugestões que conduziram um pintor como Braque a exprimir-se dessa maneira. A seguir, investigar suas intenções, seus alvos enquanto artista, ou seja, o que pretendia fazer e através de que recursos. E, por fim, observar suas pinturas e constatar as eventuais discrepâncias entre projeto e obra realizada. O exame objetivo dos trabalhos deve sobrepor-se à análise das explicações fornecidas pelo próprio pintor. Georges Braque disse: “Quero fazer uma pintura diante da qual se fique sem idéias”. É uma frase de efeito, não pode ser tomada ao pé da letra, nem muito menos ser usada para explicar o Cubismo. Uma obra de arte é a realidade expressa – não a intenção comunicada pelo artista por outros meios. Além disso, existe na obra de arte um sentido cuja consciência clara muitas vezes o próprio artista não possui, ainda que não lhe falte lucidez na avaliação dos recursos por ele empregados.

 Foi da arte dos povos primitivos que Braque e Picasso retiraram as sugestões da revolução que empreederam. Em 1904 o Museu de Etnografia de Paris exibiu, para fins científicos, exemplos da produção artística dos povos africanos. A mostra foi visitada por muitos pintores e escultores que descobriram nas esculturas totêmicas uma maneira diferente de representar a figura humana, quase inteira em cada uma das quatro faces do totem.

 Essa descoberta foi enriquecida por outras: a arte pré-colombiana, a arte grega arcaica e outras manifestações, dispersas no tempo e no espaço, tornavam-se a cada dia mais familiares aos artistas do Ocidente. Tampouco ignoravam de todo as novas concepções da Física, o aparecimento da noção espaço-tempo como unidade de medida e não mais como duas categorias absolutas e independentes.

 Foi trabalhando sobre esses dados que Georges Braque e Pablo Picasso deflagraram a mais radical transformação experimentada pela arte européia. Conheceram-se em 1907, apresentados por Apollinaire, quando Picasso terminava As Senhoritas de Avignon e Braque desenvolvia de maneira original o caminho indicado por Cézanne. A amizade entre ambos, a inquietação comum, levou-os a se freqüentar o mais possível, sobretudo entre 1910 e 1914. Passam juntos em Céret o verão de 1911, juntos ficam no ano seguinte em Sorgues, após o casamento de Braque com Marcelle Lapré. Encontram-se quase diariamente para confrontar e discutir os respectivos trabalhos. Em mais de uma ocasião, pintam lado a lado, repartindo idéias e técnicas: as inovações de um serviam ao outro.

 Contudo, suas personalidades permaneceram diversas e as instâncias íntimas de cada qual jamais se confundiram.

O que existiu durante muito tempo, foi uma identidade de intenções. Partindo da premissa de que a pintura não é uma representação da realidade, mas uma realidade ela própria, entenderam que uma tela não deve conter profundidades ilusórias: os objetos existem na superfície plana do quadro, analisados em suas partes, do mesmo modo como os seis quadrados que formam um cubo podem ser destacados e representados numa superfície qualquer. Com uma diferença, porém: não haveria nenhuma seqüência ou ordem lógica nessa representação, nem interesse em reproduzir a totalidade inicial pela soma de seus componentes. Ao contrário, cada fragmento sugeriria ele mesmo as três dimensões do objeto.

 Tudo isso visava à sua quarta dimensão: a unidade espaço-temporal. Por isso escolheram para pintar objetos simples, facilmente decomponíveis – copos, garrafas - , além de instrumentos musicais, como alusão expressa à temporalidade da música. Tais soluções foram recebidas com espanto e desconfiança até por especialistas em arte.

 Às críticas, Braque respondia com um alçar de ombros e frases que em nada diminuíam a perplexidade causada por suas obras. Picasso, por sua vez, preferia valer-se de sarcasmos: “Compreendeis a língua chinesa? Ainda assim, é falada por meio bilhão de homens”.

 Em meio às polemicas, Braque prosseguia, tranqüilo, sua revolução. Em Violino e Cântaro mostra os dois objetos como que vistos num espelho estilhaçado.

Seus elementos, reconhecíveis, lembram ainda a preocupação do pintor pelo volume, aqui sugerido por pontos mais escuros. Por outro lado, o interesse do artista concentra-se tanto sobre as linhas, na composição, que a cor fica reduzida aos terras e aos cinzas.

 

 Já O Português é uma figura tão decomposta que se torna absolutamente irreconhecível. Exprime de modo característico a intenção de Braque de representar o objeto em si puro, fora das contingências que lhe conferem realidade. Na verdade, porém a representação está prejudicada. Resta apenas a estrutura formal.

 Contudo, se a natureza deixava de ser mostrada, algo de muito importante ficava explícito no Cubismo: a composição – desligada a forma das coisas, obediente apenas à concepção ideal do quadro, à sua arquitetura interior. E nesse ponto reside o mérito maior da arte de Braque na fase do Cubismo analítico.

 Nos anos seguintes, ou – mais precisamente – entre 1913 e 1917, o artista deixa de analisar os objetos com a minúcia de antes, não mais os despedaça, mas apresenta suas partes como uma síntese dos aspectos mais notáveis.

 É o Cubismo sintético. É o caso da Mulher com Violão e A Mesa do Músico. Voltam as cores, aparecem mais intensamente os papéis colados e a forma oval.

 É nesse período que as características gerais do Cubismo – comuns à arte de Braque, Picasso e outros que aderiram ao movimento – se tornam bem nítidas. Trata-se de dois pontos essenciais: a visão ideal e a pluralidade de pontos de vista. Visão ideal significa mostrar o que se conhece, não o que se vê. Ao apresentar um objeto com dois ou mais de seus lados, o artista substitui a visão fisiológica do olho pela visão ideal, produto do conhecimento. Essa solução implica, naturalmente, a pluralidade de perspectivas, no que vai contida toda uma valorização do movimento e da participação inteligente do espectador.

 Em 1914, a guerra interrompe as atividades artísticas de Braque. Mobilizado, parte para o front. Ferido em Carency, dia 11 de maio de 1915, sofre uma trepanação do crânio e dá baixa. Mas a experiência bélica se converte numa experiência pictórica, tal como ocorreu co Léger. Braque dirá anos depois que ao ver os armamentos camuflados com manchas, descobriu no campo de batalha que a cor, embora independente da forma, agia poderosamente sobre ela, podendo mesmo anulá-la. Dois anos depois de ser ferido, volta a pintar. Realiza A Musicista, onde os planos e seções do objeto ocupam áreas maiores, permitindo uma identificação mais fácil da figura. Braque chegara aos limites extremos da regra cubista. A cor – ganhando nova intensidade, a composição feita de planos verticais prenunciam o período seguinte da criação do pintor, que irá até 1930, caracterizado pelas naturezas mortas, como A Mesa de Mármore.

 Afastando-se do Cubismo ortodoxo, Braque pinta objetos com formas menos geométricas, mas individualizadas e espessas, que voltam a evocar as qualidades que eles possuem na realidade. Não se tratou porem de um regresso ao realismo dos anos de aprendizado. O artista continuará a modificar a forma das coisas, alterar suas cores, para adaptá-las plenamente às exigências formais da composição.

 Suas pinturas, no entanto, são fiéis a seu temperamento quieto, recolhido, avesso ao patético, à violência, às exclamações. Nada de audácia. Nada de transbordamentos sentimentais. Ao contrário, busca uma arte meditativa, voltada sobre si mesma, pontilhada por relações sutis, quase misteriosas, entre cores e formas, entre objeto lembrado e objeto pintado, uma arte em que “a norma corrige a emoção”, em que não se descreve o evidente, a percepção imediata dos sentidos, mas o conteúdo profundo que as coisas comunicam. Como se a emoção inicial fosse submetida a um processo de análise para ser depois devolvida sob outra roupagem. Em conseqüência dessa depuração, surge uma emoção – nova e comedida – guiada pelo equilíbrio e por uma secreta sintonia.

 Em 1925, Braque manda construir uma casa projetada por Auguste Perret, o arquiteto do teatro Champs-Elysées. Estavam longe os tempos quando o pintor precisava descer os sete andares do seu estúdio para beber um copo de água. Em 1930, compra uma casa de campo em Varengeville, perto de Dieppe, na Normandia. Entre essas duas residências, viverá até o fim de seus anos, dedicado quase exclusivamente à pintura.

 A década de 30 assinala justamente o período mais lírico da obra de Braque. Aparecem as mulheres de perfil, pretas, depois desdobradas em cores claras. Aparecem mesas e cadeiras e janelas imediatamente reconhecíveis. Da transição de A Mesinha Redonda, o artista chega ao intimismo de O Dueto e aos volumes simples e pacatos, severos mas suaves de O Salão (1944; Museu Nacional de Arte Moderna, Paris).

 Durante algum tempo, Braque parece ter encontrado por fim sua fórmula e nada sugere que introduzirá outras variações. Maso clima numa Europa conflagrada pela Segunda Guerra não favorece o lirismo, a meditação. A arte de Braque novamente se transforma. As formas voltam a perder volume, o desenho se faz mais amplo (O Bilhar). Recolhido a sua casa de Varengeville, o artista dedica-se bastante à escultura. Suas criações tornam-se quase abstratas. As formas estão reduzidas à sugestão de um perfil. Nas telas, o fundo é de uma só cor.

 Mesmo velho, Braque não cessa de produzir. Quase octagenário, dois anos antes de morrer, termina o Vôo Batido. O contorno de um grande pássaro ao lado da calma dos objetos. A sujestão do movimento contra o azul quieto do céu. Como um símbolo definitivo da obra e do temperamento do pintor: um pássaro fornece a imagem da ação. Leveza e silêncio. Poesia.

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