Kandinsky não foi só um dos primeiros pintores abstratos, mas um dos artistas mais importantes de nosso século. Revolucionou a linguagem pictórica calcamdo-a, de início, na representação simplificada dos motivos e, mais tarde, em formas puramente geométricas. Seu curso de Direito iria auxiliá-lo na formulação de teorias sobre pintura abstrata publicadas numa série de artigos e em livros.
Tinha enorme capacidade de trabalho: além de pintar e escrever, viajava muito e estava sempre engajado em movimentos artísticos. Voltou à Rússia após a Revolução de 1917, onde participou de inúmeros comitês culturais e ajudou a criar museus, mas abandonou tudo quando o Estado começou a interferir nos caminhos da expressão artística. Sua linguagem pictórica iria alterar o curso da arte do século XX.
O Pai da Arte Abstrata
Romântico e libertário, Kandinsky tem para a pintura moderna a mesma importância que Freud para a Psicologia e Marx para as Ciências Sociais. E o artista que abre novos rumos.
O pai viera da Libéria com a mulher e perambulou por algumas cidades russas, até fixar-se na capital, Moscou, onde se dedicou ao comércio de chá. Já havia feito fortuna, quando nasceu o filho, Wassily Kandinsky, no dia 4 de dezembro de 1866. O futuro artista passou a infância na cidade natal, que deixaria nele uma forte impressão. Amava as catedrais e os palácios moscovitas, as cúpulas douradas e os sinos repicando nos campanários: as cores e a atmosfera da cidade habitariam sua imaginação até o final de sua vida.
Em 1871, a família mudou-se para Odessa, na Ucrânia, e logo em seguida os seus pais se divorciaram. Sob a tutela de uma tia e da avó maternas, que lhe contavam histórias de fadas, O menino foi despertado para o folclore e para as artes. Como suas notas escolares em desenho e pintura eram boas, quando ele completou dez anos, o pai contratou um professor de desenho. Mas, para alívio da família, Kandinsky mostrou-se interessado em seguir uma profissão mais “séria”: foi um brilhante aluno no curso de Direito.
No íntimo, porém, ele sempre soube que a arte seria o caminho de sua realização pessoal e, finalmente, encontrou forças para assumir sua verdadeira vocação: recusou uma cadeira na Universidade de Dorpat, na Estônia, em 1896, abandonando o Direito para se dedicar à pintura. Estava com 30 anos.
Em 1895, realizara-se em Moscou uma exposição dos impressionistas franceses, e Kandinsky sentiu-se totalmente arrebatado pelo quadro de Monet Montes de Feno. Foi seu primeiro sobressalto artístico e ele não se conteve: "A pintura ali adquirira uma força, um esplendor fabuloso; e, sem que fosse imediatamente perceptível, até mesmo o objeto — considerado insubstituível — perdia o significado”.
Nascia, assim, nesse primeiro vislumbre de eliminação do objeto enquanto mera imitação, a arte que se chamava abstrata. Até esse momento, Kandinsky só conhecia a pintura descritiva da escola russa, e agora rendia-se ao poder dramático e expressivo da cor pura.
Era esse o impulso que lhe faltava para dedicar-se inteiramente à pintura. Arrumou as malas e partiu para estudar em Munique, acompanhado de sua prima, Anya Ticheyeva, com quem se casara em 1892.
Munique era para Kandinsky a materialização dos contos de fadas de sua infância. E ele desconhecia as dificuldades financeiras, pois seu pai lhe dava uma mesada generosa. Morava no bairro boêmio de Schwabing e estudava na escola de arte de Anton Azbe, a mais famosa da cidade naquele momento. Mas não tardou a se cansar das aulas de anatomia, preferindo pintar por conta própria ou sair pelas ruas do velho Schwabing para fazer desenhos e esboços.
Depois matriculou-se na classe de Franz von Stuck, da Academia Real de Munique, mas Stuck desesperava-se com as cores vibrantes e os efeitos exagerados que seu aluno produzia. - Ali, Kandinsky conheceu Paul Klee, que seria um de seus melhores amigos.
Apesar de sua natureza reservada, Kandinsky era hábil administrador e gostava de lidar com pessoas. Em Munique, devotou-se de corpo e alma a organizar associações de artistas e exposições. A primeira delas foi o grupo Phalanx, criado em 1901, que viria a ser o foco da vanguarda artística alemã, o Jugerídstil, equivalente ao movimento Art Nouveau em Paris. Em 1902 conheceu Gabriele Münter, que foi de início sua aluna e depois sua amante, contribuindo para o fim de seu casamento com Anya.
Como sua situação financeira continuava privilegiada, Kandinsky não tinha urgência em vender seus trabalhos; podia, então, enveredar pela experimentação em busca de novas técnicas e dedicar-se às viagens de que tanto gostava. Em companhia de Gabriele, costumava desaparecer por muitos meses em viagens pela Itália, França, Suíça, e até para a África. Entre 1906 e 1907, o casal instalou-se em Sèvres, nos arredores de Paris.
O MERGULHO DEFINITIVO NA COR
Em 1908, o casal mudou-se para um espaçoso apartamento na Ainmillerstrasse, em Munique; compraram também uma casa em Murnau, uma exótica e pequena cidade mercantil na Alta Baviera, onde o pintor russo Alexei vonJawlensky juntou-se a eles. Tendo estudado com Matisse, Jawlensky encorajou Kandinsky a pintar a paisagem à sua volta, simplificando as formas e utilizando as cores brilhantes e iluminadas dos fauves.
Foi então que se deu o mergulho. De volta a Munique, Kandinsky “retomou temas já trabalhados, simplificando-os de tal forma que as linhas e a cor, em vez dos objetos propriamente ditos, se tornassem o veículo para expressar suas emoções e sensações. Certa ocasião, ao entrar em seu estúdio no fim da tarde, ficou impressionado com uma tela cujo tema não conseguia reconhecer na semi-obscuridade, mas era um quadro de beleza indescritível, todo impregnado por um bruxuleamento interior, onde ele só percebia formas e cores e cujo teor lhe era incompreensível. Mas logo reconheceu nele um de seus próprios quadros... colocado de ponta-cabeça! “Desde então eu soube expressamente que os ‘objetos’ prejudicavam minha pintura.” Foi- nesse momento que ele saltou definitivamente na abstração. Compreendia, enfim, que a descrição realista de objetos comuns não tinha a menor importância para sua arte.
Os esforços de Kandinsky para aperfeiçoar a abstração em seus trabalhos não deixaram muito animados nem os críticos de Munique nem seus amigos. Depois de um desentendimento sério, abandonou um grupo que ele mesmo formara em 1911 e criou o Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), juntamente com Franz Marc. As duas primeiras exposições, em 1911 e 1912, foram retumbantes e mostraram “por meio de uma variedade de formas, as muitas maneiras pelas quais o artista manifesta suas emoções”. Ali havia de tudo: desde as pinturas abstratas do próprio Kandinsky até a singela arte do “Douanier” Rousseau. Entre os expositores também compareceu o compositor Arnold Schõnberg, que pintava apenas por hobby.
Da mesma forma que Kandinsky, Schõnberg desafiava as idéias convencionais da composição, e a partir desse encontro os dois se tornaram grandes amigos. Kandinsky, por sua vez, não só amava a música como também tinha amplos conhecimentos teóricos: em 1912 publicaria no almanaque do Der Blaue Reiter um artigo sobre música, além de uma melodia de sua autoria. Naquele mesmo ano publicou seu primeiro livro, Da Espiritualidade na Arte, onde defende sua teoria sobre cores.
Essa foi uma de suas fases mais ricas e produtivas. Sua simpatia natural, seu trato ameno e, sobretudo, sua perspectiva cosmopolita da arte e do mundo granjearam-lhe amigos a quem ele se prendeu tanto pela afinidade de propósitos como pelo afeto e admiração leais: Franz Marc, Paul Klee, Hans Arp e August Macke, que renovavam a pintura alemã e formavam, no plano europeu, o centro das artes complementar à escola de Paris.
No entanto, Kandinsky era alvo freqüente de ataques da crítica. Não que isso o preocupasse, sobretudo porque, nesse início da década de 1910, suas atividades se multiplicavam: viajava, pintava, lecionava, escrevia. Mas a guerra eclodiu em agosto de 1914, e Kandinsky viu-se forçado a sair da Alemanha num prazo de 24 horas. Deixou Gabriele e partiu, via Suíça e os Bálcãs, de volta à Rússia, onde chegou em 12 de dezembro. Pouco depois, fez uma rápida viagem até Estocolmo para participar de uma exposição, e foi ali que viu Gabriele pela última vez.
Kandinsky ficou na Rússia até 1921. Este foi um período de privações e dificuldades, devido à revolução que chegou logo depois da guerra. Havia escassez de suprimentos, e até mesmo a mesada generosa que recebia não era de muita valia, pois não podia comprar quase nada com aquele dinheiro: não havia o que comprar. Entretanto, todas aquelas dificuldades foram atenuadas pela presença de Nina Andreyewsky, uma bela moscovita, bem mais jovem que Kandinsky, com quem ele se casaria em 11 de fevereiro de 1917, e que ficaria sempre a seu lado.
A PASSAGEM FECUNDA PELA BAUHAUS
Kandinsky pintou pouco (faltavam-lhe tintas e telas), produzindo apenas quarenta quadros entre 1914 e 1921 — essa mesma quantidade ele havia produzido em apenas um ano no passado. De qualquer forma, mantinha-se ocupado, investido da responsabilidade de reorganizar a vida artística do novo Estado comunista. Em 1918, tornou-se membro da Seção de Artes Visuais no Comissariado para a Educação Popular. Contribuiu para a instalação de 22 museus nas diversas províncias e inaugurou o Instituto de Cultura Artística, em 1919, e a Academia Russa de Ciências Artísticas, em 1921. Mas seus ideais de rejuvenescimento espiritual por meio da arte foram postos por terra quando o governo comunista reprimiu o movimento russo de vanguarda, determinando que todo e qualquer movimento artístico deveria ser destinado ao proletariado: arte barata nas ruas, nas fábricas e para as casas dos trabalhadores; Kandinsky sentiu- se como um peixe fora da água.
Voltou para a Alemanha ainda em 1921, na esperança de poder viver com o lucro da venda de suas 150 pinturas, que havia deixado na Galeria Der Sturm. Mas descobriu que seus quadros já não valiam tanto assim, e, com a brutal desvalorização do marco alemão, viu-se praticamente na miséria. Perdera dois amigos na guerra, Franz Marc e August Macke, e as perspectivas eram sombrias. Mas seu velho amigo Klee conseguiu-lhe um emprego na Bauhaus, a escola modelo de Walter Gropius, em Weimar.
Kandinsky logo de início ficou impressionado pela aparência progressista da escola, onde ensinava pintura em mural e ao vivo. A partir de então recomeçou a pintar profundamente, e nesse período há momentos em que sua obra se assemelha muito à de Klee. Também estabeleceu seus princípios da construção geométrica no livro Ponto e Linha na Superfície, publicado em 1926. Esse período na Bauhaus foi o de produção mais intensa e também aquele em que seu gênio encontrou mais amplo reconhecimento.
Mas os dias da Bauhaus estavam contados. A organização foi rotulada de reduto da anarquia e do bolchevismo pelos mesmos políticos que mais tarde iriam se alistar no Partido Socialista Nacional de Hitler. Kandinsky e sua mulher, por serem russos, eram sem dúvida suspeitos. e foram injustamente denunciados por um jornal como agitadores. A escola Bauhaus foi forçada a deixar Weimar e transferiu-se para Dessau em 1925; mesmo assim, a perseguição nazista prosseguiu até 1933, quando o grupo foi forçado a se desfazer.
CONSAGRAÇÃO TARDIA
Em virtude do clima político tenso e instável, Kandinsky mudou-se para a França, onde passaria o resto de sua vida. Instalou-se num apartamento do Boulevard de la Seine, Neuilly, com uma linda vista para o Bois de Boulogne. Em sua casa, recebia amigos, a maioria artistas estrangeiros, trabalhando em Paris, como Jean Arp e Piet Mondrian. Tornou-se uma pessoa ainda mais reservada, embora estivesse naquele momento pintando com mais vigor e exuberância. Nessa época utilizava um conjunto de símbolos inventados, em forma de amebas, como se pode ver em Céu Azul. Quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial, em 1939, e os materiais ficaram novamente escassos, Kandinsky substituiu as grandes telas por cartolina e madeira. Em 1940, as tropas alemãs ocuparam a França, seguindo-se quatro anos de ignominioso domínio nazista. Kandinsky, com mais de 70 anos e recolhido em melancólica depressão, produzia esparsamente. Finalmente, sofrendo de esclerose, cansado e ainda não plenamente reconhecido, morreu em 13 de dezembro de 1944, poucos dias depois de completar 78 anos. Nesse mesmo ano, a França voltara a respirar, livre do jugo nazista. Com a paz e a liberdade reconquistadas pela Europa, a fama desse genial inovador alcançaria todas as dimensões. Embora tardia, sua consagração anunciava-se finalmente duradoura.