O mais célebre pintor vienense de seu tempo, Gustav Klimt foi um aluno brilhante e desde muito jovem fez desenhos para decorar edifícios públicos de Viena. Era, portanto, uma espécie de promessa como pilar das instituições artísticas tradicionais da Áustria. Mas tudo mudaria na década de 1890, quando praticamente liderou uma dissidência de artistas, e depois, ao escandalizar seus contemporâneos com as pinturas para o teto da Universidade de Viena. Erigia-se como um pilar, sim, mas da vanguarda. Suas obras são como objetos preciosos, ricamente decoradas. Mas sob tantos adornos desvenda-se o erotismo de uma sociedade neurótica e freqüentemente mórbida — uma visão que seus contemporâneos não conseguiram, a princípio, suportar. Sustentaram-no, porém, o próprio talento e uma rica clientela.
Um Homem de seu Tempo
Vivendo e trabalhando em Viena, Klimt provocou permanente controvérsia com suas obras e seu comportamento anticonvencional: tinha dentro de si um gênio inconformista.
Na mesma Viena do final do século XIX, enquanto Sigmund Freud sondava a mente humana, Gustav Klimt insinuava-se com igual profundidade no íntimo da agonizante sociedade vitoriana: suas telas revelavam a dimensão crepuscular do desencanto, o espanto diante dos mistérios da existência, a frustração antecipada ante o trágico infinito.
Esse homem barbudo, de olhar cintilante, baixo e atarracado, que avançava pela madrugada vienense como uma aparição estranha, foi o maior pintor de sua época e de seu meio. Ele captou a ambiguidade desse fin de siècle, aprisionando-a na definição lapidar da silhueta soterrada nos próprios ornamentos. E nessa tradução ilusionista dos corpos e das luzes, em tintas estranhamente ensurdecidas, atingiu um raro virtuosismo.
Gustav Klimt nasceu em Viena, em 14 de julho de 1862. Seu pai, Ernst, era gravador e ourives, originário da Boêmia. Gustav era o mais velho dos sete filhos de uma família talentosa: Georg, o irmão, seguiu a carreira do pai, como ourives, e o outro irmão, Ernst, logo revelou interesse pela pintura e pelo desenho. Assim, já no início da adolescência, Gustav e Ernst ingressaram na recém-inaugurada Escola de Artes Aplicadas, em Viena. Ali tiveram uma formação notavelmente abrangente, sob orientação do professor Ferdinand Laufberger. Aprenderam a dominar a pintura a óleo, as técnicas do afresco e do mosaico; ocupavam ainda o tempo livre para ganhar algum dinheiro extra desenhando retratos a partir de fotografias — o que iria aperfeiçoar nos jovens a habilidade em captar e reproduzir fielmente as pessoas.
Foi na Escola de Artes que fizeram amizade com Franz Matsch. Esses três talentos combinados impressionaram de tal modo o mestre Laufberger, que ele os indicou para uma série de encomendas de desenhos decorativos ainda enquanto eram seus alunos. E Gustav, aos 17 anos, foi convidado a colaborar nos desenhos do carro alegórico para as comemorações das bodas de prata do então Imperador Francisco José.
Em 1883 Gustav, Ernst Klimt e Franz Matsch deixaram a Escola de Artes para abrir um estúdio próprio; logo começaram a trabalhar em projetos decorativos para mansões em Viena e nas províncias. Não tardou para que fossem reconhecidos, e já em 1886 viram-se diante da prestigiosa tarefa de decorar o teto e as escadarias laterais do recém-construído Teatro Municipal de Viena. O tema escolhido foi a história do teatro e, de sua parte, Gustav retratou numerosas cenas históricas e alegorias clássicas, além de pintar a cortina do auditório. O êxito desse empreendimento — que lhe valeu a Cruz Dourada — o levaria à incumbência mais importante de sua juventude: completar a decoração da escadaria do novo Museu de História da Arte de Viena. Este projeto fora iniciado pelo principal pintor histórico de Viena, Hans Makart, mas sua morte prematura em 1884 deixou-o incompleto. Como eram grandes admiradores da exuberância e do floreado de Makart, foi com indisfarçável prazer que os irmãos Klimt e Matsch empenharam-se no trabalho: a Gustav coube preencher muitos dos espaços entre as colunas com figuras individuais que representavam a história da arte, desde o Egito Antigo até o Renascimento. Para isso ele mergulhou apaixonadamente nos livros de arte e percorreu museus para coletar idéias relativas a cada período. Esse zelo erudito teve sua recompensa, pois o resultado foi uma série verdadeiramente admirável de retratos em estilos diferentes, que variavam desde o desenho quase bidimensional de uma jovem egípcia até ao de uma jovem de aparência inacreditavelmente moderna para a Grécia Antiga, que já revelavam sua tendência fundamental: a definição lapidar da silhueta e seu gosto pela ornamentação.
UM TALENTO ORIGINAL ECLODE
Aos 35 anos, Gustav Klimt já acumulara um conjunto respeitável de trabalhos e via sua reputação crescer como um digno sucessor de Hans Makart. Tudo indicava que ele se transformaria num dos sustentáculos das instituições artísticas vienenses.
Klimt, porém, guardava em seu íntimo um gênio inconformista, amante e defensor da liberdade, com feições de um boêmio que se sentia mais à vontade sob sua túnica “de monge” do que no terno bem-comportado dos pintores de sucesso de sua geração. Por essa época, também entrava em contato com artistas e intelectuais progressistas que circulavam pelos cafés de Viena e com a obra de pintores impressionistas e simbolistas europeus em exposição na cidade. Essa ampliação de horizontes fomentou nele o descontentamento com as atividades conservadoras da Associação dos Artistas Vienenses, à qual se filiara. Assim, em 1897, junto com um grupo de amigos, demitiu-se para criar uma organização própria. Esse grupo — que seria conhecido como a Secessão — defendia novas atitudes em relação à arte e procurava combater o provincianismo voltado apenas para Viena, por meio de uma consciência cada vez maior do que acontecia no resto da Europa. Eleito presidente da associação, Klimt atirou-se com entusiasmo à primeira atividade: uma exposição, realizada na Associação dos Construtores de Jardins em janeiro de 1898; foi tão rendosa que permitiu à Secessão construir uma sede própria. Eram 49 associados austríacos e 39 estrangeiros.
Nessa época, porém, Klimt ainda tinha em mãos uma importante tarefa: em 1894 o Ministério da Educação o havia procurado e a Franz Matsch (Ernst Klimt morrera em 1892), com uma encomenda de desenhos para o teto do Grande Auditório da Universidade de Viena.
Depois de muitos debates, decidiu-se que Klimt se ocuparia dos painéis com os temas Filosofia, Medicina e Jurisprudência — representando as três faculdades da Universidade. Empreendimento gigantesco, foi uma espécie de desafio físico e artístico para o pintor. Um amigo que o visitou em seu estúdio durante o trabalho que ilustrava a Filosofia deixou esta impressão: “Era de tarde, 35° centígrados. Ele vestia apenas seu guarda-pó escuro de costume, sem nada por baixo. Passa a vida diante de gigantescas telas, subindo e descendo a escada, indo de um lado a outro, olhando, meditando, criando a partir do nada, experimentando e ousando. Parece cercado por uma névoa, lutando com esse elemento de incerteza, misturando-o, com ambos os braços imersos até os ombros...” Sua personalidade original eclodia. No entanto, os professores da Universidade, que naturalmente imaginavam esses painéis semelhantes a trabalhos anteriores de Klimt, chocaram-se diante da representação da Filosofia: uma espiral nebulosa, por onde uma humanidade nua ascendia a um firmamento estrelado junto de um imenso e enevoado rosto feminino. Concluídos nos anos seguintes, os outros dois painéis — Medicina (1901) e Jurisprudência (1903) — mais alimentaram a controvérsia, que se estendeu à imprensa e gerou reações hostis. Acusava-se Klimt de pornográfico e de perversor da juventude vienense. A despeito do tumulto, ele procurou continuar o trabalho, mas em 1905 sentiu-se tão desiludido que o abandonou, denunciando a censura e manifestando-se pela liberdade artística. O que lhe importava, agora, era a satisfação pessoal. Klimt estava com 43 anos e o novo século já se instalara.
Esse escândalo não teria, porém, efeito devastador em sua carreira. Evidentemente, deixou de receber encargos oficiais, mas havia muitos outros interessados em seu trabalho.
Procuravam-no como retratista e, tendo por modelo as abastadas damas vienenses, deixou livre a audácia de seu talento.
Ainda em 1905, junto com outros dezenove artistas, ele abandonaria a Secessão para formar o chamado Grupo Klimt — que em 1908 obtém sucesso sem precedentes em sua primeira exposição coletiva. Essa primeira década do século XX marca a vida de Klimt por seguidas viagens à Alemanha, Itália e França. E premiado em Roma (1908 e 1911), recusa um prêmio em Berlim (1905), tem uma sala especial na IX Bienal de Veneza e recebe a incumbência para decorar o Palácio Stoclet, em Bruxelas (iniciada em 1909). Não tinha, portanto, motivos para se queixar.
SUBITAMENTE, O FIM
Era o pintor favorito da sociedade vienense, retratando sobretudo modelos femininos que engrandecia em epidermes opalinas e profundos olhares cheios de melancolia, produzindo imagens ricamente ornamentadas, mas de elegância lânguida. Sabia lisonjear as mulheres na tela, certamente porque em seu sangue fervilhava um fascínio avassalador pelo sexo feminino.
Nunca se casou, embora tenha mantido uma longa relação com sua cunhada Emilie Flõge, proprietária de uma casa de modas em Viena. O casal não formalizou essa relação que se estendería por 27 anos, mas Klimt passou com Emilie praticamente todos os verões, ao longo de vinte anos, nas elegantes estâncias balneárias de Attersee, onde se entregava à sua paixão pela natação, pelo remo e pelos barcos a motor. Seria aqui, também, que suas habilidades artísticas se voltariam pela primeira vez para a pintura de paisagens.
Durante o inverno, em Viena, Klimt vivia uma rotina invariável: levantava-se cedo, tomava o desjejum no Café Tivoli e dirigia-se ao estúdio para um dia intenso de trabalho — só interrompia a pintura para executar algum desenho ocasional de um dos modelos que freqüentavam seu estúdio. Tarde da noite voltava ao Café, para a companhia dos amigos, que o tratavam por “rei” — era unanimemente reconhecido como o melhor pintor dentre todos eles.
A viagem de Klimt a Paris, em 1909, marcaria a superação do que se convencionou chamar a “fase dourada”. A visão do trabalho dos impressionistas, pós-impressionistas ou pontilhistas iria exercer nele uma irresistível influência. Embora continuasse com seus retratos, passou a dedicar-se cada vez mais à pintura da natureza. Seu sucesso financeiro lhe permitira adquirir um pequeno castelo junto ao lago Atter, onde passava as férias e onde, em contato com as árvores, as flores e a água, pôde estudar mais de perto os rumos que os parisienses seguiam.
Quando, ainda em 1905, Klimt e seus amigos deixaram a Secessão — depois da 18ª exposição coletiva da sociedade — ele se viu mais uma vez na liderança, como mentor de uma geração de pintores mais jovens. Dois deles se destacariam particularmente: Egon Schiele, cujas pinturas já traiam uma dívida enorme para com Klimt (mas a admiração era recíproca e cheia de incentivos), e pinturas já traíam uma dívida enorme para com Klimt (mas a admiração era recíproca e cheia de incentivos), e Oscar Kokoschka, que Klimt considerava excepcionalmente talentoso, embora não fosse bem recebido pelo público.
Após completar seu trabalho no Palácio Stoclet, Klimt prendeu-se cada vez mais a séus hábitos; só deixava Viena para desfrutar das águas de Bad Gastein ou para visitar seus amigos, os Primavesi, na Moravia, que anualmente ofereciam um churrasco a ele e a seu círculo.
Na manhã de 11 de janeiro de 1918, quando se preparava para sua caminhada diária até o Café Tivoli, foi acometido de súbita apoplexia. Hospitalizado, resistiría ainda três semanas, até que uma pneumonia o matou em 6 de fevereiro. Deixou obras inacabadas em seu estúdio, que foi arrombado enquanto ele estava no hospital. Os ladrões levaram muitas telas, deixando, entre outras, A Noiva: talvez a natureza abertamente erótica da composição os tenha chocado demais.