“A cada pintor seu paraíso”

Gastón Bachelard

A pintura de Fernando Coelho se apresenta a nossa contemplação como uma construção lúdica, cheia de efeitos cromáticos onde saber e afeto marcam presença. Um verdadeiro paraíso habitado pela passagem do tempo que imprime na tela, através do olhar desconfiado e da mão comprometida com a elaboração artesanal, imagens de uma infância que perdeu a ingenuidade, teme o futuro e a incerteza da vida. Assusta e fascina. O presente registrado na tela é um conjunto de elementos acumulados na memória. A pintura renasce da arqueologia da memória de um tempo imemorial carregada de sentimento humano, para o pintor, pintar e sonhar são motivos para viver e trapacear as maldades do mundo.

Figuras perturbadoras de desenhos lúdicos e expressionistas realizados cerca de trinta anos atrás, reaparecem na superfície das obras atuais. Entre a figura e a abstração, a pintura desse artista, nesse momento, com a utilização de recursos de colagens que foi um procedimento importante na evolução do cubismo, ritmo intenso e explosão cromática, alcança uma nova dimensão, afirma sua força diante das outras linguagens da contemporaneidade e exalta a atualidade desse velho suporte.

Composições densas, elaboradas, mas sem perder a espontaneidade. A luz transborda, a cor chega ao êxtase. Sem fazer concessão ao belo do senso comum, o artista despreza a realidade para refazer a pintura plena, onde nada ocupa o espaço sem uma razão, mesmo que paradoxalmente, esta seja da ordem da emoção. Os efeitos plásticos obedecem a uma organização própria.

Esse paraíso infantil e colorido com um jardim florido ao redor é um grito contra o desaparecimento do amor no mundo da máquina. No meio de tanta alegria e humor alguma coisa emerge do fundo do quadro que parece pressentir a ameaça do desconhecido, do futuro. Sem deixar de ser ao mesmo tempo um lugar artificial para responder às provocações especificas da forma, da cor, do gesto angustiado e o porquê da figura. Difícil identificar o que ocorre no interior de uma cabeça lamenta o pintor com suas cabeças fantasmagóricas e desajeitadas. As causas e os efeitos não estão evidentes, fazemos a identificação e arriscamos conclusões a partir de nossas próprias carências e da nossa vontade sempre renovada de ver.

A ação da cor fala, dá vida às formas e às imagens. O pintor desenhista, com toda sua sensibilidade para a cor, inventa outra natureza e outra anatomia, com uma gestualidade meio agitada para reverenciar o expressionismo. Tudo que está na tela quer ser visto de forma dramática, sem rejeitar as atribuições individuais de sentido. O espectador embriagado de tanto ver, descobre a euforia da infância e a solidão da velhice, registradas pelo devaneio do pincel do artista. Cada tela narra um sonho ou um pesadelo, com resultado estético capaz de fazer um convite para uma meditação sobre a natureza das coisas e da arte, como um processo aberto à vivência do sujeito.

As figuras aparecem não por acaso, elas existem no inconsciente do artista. Uma festa de referências infantis: jogos, máscaras, palhaço, maestro, fantasmas que falam de um passado não resolvido. A vida parece uma brincadeira, um instante que passa e deixa no ar um riso ou um gemido. Com toda sua autonomia pictórica, é impossível abstrair dessas pinturas as conotações fora do mundo da arte, mas elas não são pontos de apoio, são motivos para o sujeito experimentar e realizar o desejo de pintar. A subjetividade que emerge do fundo da tela, o que foi recalcado fica em segundo plano, os efeitos pictóricos falam mais alto.